Esta confissão do centurião romano só nos aparece nos evangelhos sinóticos.
Os evangelhos sinóticos caraterizam a morte de Jesus na cruz como um
acontecimento cósmico e litúrgico: o sol escurece (1), o véu do templo
rasgou-se (2), a terra estremece e os mortos ressuscitam (3)
Mas, mais importante do que o sinal cósmico é um processo de fé, que se
desenvolve diante e em consonância com tudo isso: o centurião – comandante do
pelotão romano da execução da morte de Jesus – abalado com tudo isso reconhece
que Jesus é o Filho de Deus (4). Junto da cruz de Jesus, a partir daquela morte
tão especial e interpelativa, tem início a Igreja dos pagãos, isto é,
espargindo da cruz de Jesus, o Senhor reúne os homens para a nova comunidade da
Igreja universal (5)…O centurião romano convertido torna-se presença e sinal de
tantos outros ‘pagãos’ e ‘gentios’, que abrirão o cristianismo à universalidade
de todos os tempos e lugares.
Que lições de vida – simples e concreta, humana e cultural, aberta e fecunda –
podemos colher desta revelação ao centurião e deste ao mundo de hoje? Depois
das provações da pandemia, qual é o Deus que vemos e que reconhecemos? De
verdade, não vai ficar tudo igual.
Eis um excerto de uma audiência do Papa Francisco, quando ainda estávamos a
tatear sobre o entendimento da recente pandemia.
«O povo, depois de ter acolhido Jesus triunfantemente em Jerusalém,
perguntou-se se ele finalmente o libertaria dos seus inimigos (cf. Lc 24, 21).
Esperavam um Messias poderoso, triunfante, com uma espada. Em vez disso, chega
um manso e humilde de coração, convidando à conversão e à misericórdia. E foi a
precisamente multidão que o tinha aclamado quem bradou: «Seja crucificado!» (Mt
27, 23). Aqueles que o seguiam, confusos e assustados, abandonaram-no. Eles
pensaram: se este é o destino de Jesus, não é Ele o Messias, porque Deus é
forte, Deus é invencível.
(...) Quando Jesus morre, o centurião romano que não era crente, não era judeu,
mas pagão, que o tinha visto sofrer na cruz, o tinha ouvido perdoar a todos,
que tinha constatado o seu amor sem medida, confessa: «Verdadeiramente este
homem era o Filho de Deus» (Mc 15, 39). Ele diz exatamente o oposto dos outros.
Ele diz que Deus está ali, que é verdadeiramente Deus.
Hoje podemos perguntar-nos: qual é a verdadeira face de Deus? Normalmente
projetamos n’ Ele aquilo que somos, até ao limite do nosso poder: o nosso
sucesso, o nosso sentido de justiça e até a nossa indignação. Mas o Evangelho
diz-nos que Deus não é assim. Ele é diferente e nós não O podíamos conhecer com
as nossas próprias forças. Foi por isso que ele se aproximou de nós, veio ao
nosso encontro e precisamente na Páscoa se revelou completamente. E onde é que
ele se revelou completamente? Na cruz. Nela aprendemos os traços do rosto de
Deus. Não esqueçamos, irmãos e irmãs, que a cruz é a cátedra de Deus» (6).
1. Sol eclipsado, expressão da linguagem
apocalíptica (Is 13,10). Outro sinal da importância da morte de Jesus na
História da Salvação foi o rasgar do véu do templo, que separava o Santo dos
Santos do resto do santuário (Ex 26,33.36-37); era presságio do fim do templo e
anúncio da entrada dos pagãos na salvação (1,95). Vide nota a Lc 23,41, na
Bíblia Sagrada dos capuchinhos.
2. O véu do templo rasgou-se. O Santo dos Santos era a parte mais recôndita do
templo e morada de Deus. O rasgar da cortina que resguardava este lugar
significa que a Aliança antiga cede lugar à nova, de livre e fácil acesso à
divindade, mediante Jesus Cristo que é, ao mesmo tempo, o rosto humano de Deus
e o companheiro amigo das pessoas (Mt 27,51-53; Lc 23,45). Vide nota a Mc 15,38
na Bíblia Sagrada dos capuchinhos.
3. Se por véu do templo se entende a cortina que separava o pátio do templo
propriamente dito, quer dizer que a morte de Jesus permite o acesso dos pagãos
à presença de Deus; se se entende a cortina que separava o lugar sagrado do
Santo dos Santos, então a morte de Jesus significa o fim do sacerdócio da
Antiga Aliança (Ex 26,31-375. Jr 31,31-37; Ez 16,59-60. Os elementos
descritivos dos v.51-53 faziam parte das profecias tradicionais que anunciavam
o dia do julgamento final (9,37; 24,28). Vide Nota a Mt 27, 51-53, na Bíblia
Sagrada dos capuchinhos.
4. O título de Filho de Deus, atribuído a Jesus no começo do Evangelho (1,1), é
significativamente proclamado pelo centurião no momento supremo da morte; esta
aparece como selo de garantia, prova certa de que Jesus de Nazaré é
verdadeiramente o Messias anunciado. Nesta declaração do militar romano, se não
é claro que ele afirme a filiação divina, é, pelo menos, inegável que reconhece
o carácter sobre-humano de Jesus. Com o centurião, representante dos não
judeus, cumpre-se a palavra de Jesus: o Reino de Deus será dado aos gentios, a
um novo povo (12,9; Mt 21,43). Vide nota a Mc 15,9, na Bíblia Sagrada dos
capuchinhos.
5. Cf. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém
até à Ressurreição, p. 183.
6 Cf. Papa Francisco, ‘Audiência geral’, Palácio apostólico, 8 de abril de
2020.
António Sílvio Couto
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