Há
expressões recorrentes, nalguma linguagem religiosa, mesmo em contexto católico
de semana santa, que não estão adequadas à realidade teológica e espiritual.
Uma dessas expressões é: ‘enterro do Senhor’, que poderá caraterizar uma certa
devoção, na sexta-feira santa, ao fazer uma procissão como se fosse o enterrar
de Jesus, numa alegoria à sua sepultura.
Pessoalmente
deixa-me um amargo psicológico ver pessoas que vão ao ‘enterro do senhor’, mas
ignoraram todas as outras celebrações anteriores, como a ‘adoração da cruz’ ou
mesmo iniciativas de índole pessoal ou comunitária, como a via-sacra ou
momentos litúrgicos relevantes da paixão-morte do Senhor.
Pior
ainda quando vejo participantes em conversa pegada ao longo da dita ‘procissão
do enterro’, isto para não repudiar os tocantes da banda, que quando não
executam as ‘peças’ musicais se entretém perturbando com barulho menos
adequado…
1. Em passagem alguma dos textos
bíblicos se diz que Jesus foi enterrado – colocado na terra – mas antes
colocado num túmulo – daí tumulação – ou sepultado – decorrendo sepultamento –
de Jesus após a sua trágica morte de crucificado. Pior ainda: os enterros a que
vamos são irreversíveis, isto é, o morto não sairá de lá, muito menos com vida.
Ora Jesus foi colocado no túmulo (cf. Lc 23,53) na esperança da ressurreição,
confirmada pelo túmulo vazio e as manifestações d’O ressuscitado. Continuar a
usar uma linguagem incorreta pode induzir em erro e, sobretudo, num
faz-de-conta que não se passou com Jesus…
2. Embora possa ser (infelizmente)
atrativo de algum ‘folclore’ religioso, seria de razoável proporção – além de
explicar que a expressão está fora do espírito católico de fé celebrada e
vivida – ir banindo das ‘cerimónias’ populares algo que contradiz a nossa fé
mais básica e essencial. Precisamos de encontrar – usando os meios atuais de
comunicação – novas formas de ocupar esse espaço de expetativa entre a adoração
da cruz e a celebração da vigília pascal, com as suas quatro liturgias – da
luz, da palavra, batismal e eucarística. Por que não ler e meditar, refletir e
interiorizar os textos do sepultamento em condições que nos permitam rezar,
mais do que desfilar pelas ruas em caminhada de entretenimento… como vi nalguns
momentos da (dita) procissão do ‘enterro do senhor’? Por que não darmos mais espaço
à interioridade do que às coisas tradicionais mais ou menos anódinas,
repetitivas e insossas de fé e de compromisso?
3. Para quem ainda promove as
‘cerimónias da semana santa’ – seja lá onde for e com que objetivos – talvez
seja chegada a hora de questionar quem a elas vai ou mesmo quem nelas
participa. Onde estão os jovens? Não foram para as ‘viagens de finalistas’,
deixando a descoberto o lugar nas assembleias de domingo a que ainda vão, às
vezes? Por que sairão tantos portugueses para as tais ‘férias de páscoa’,
trocando os locais celebrativos por espaços de veraneio? Não andaremos a
engordar a religião, depreciando os sinais centrais do cristianismo? Agora que
a pandemia parece dar indícios de menor incidência, como poderemos criar
condições para fazer melhor e mais conscientemente o que devíamos já ter feito?
4. Sacudidos pela indiferença
fortemente promovida, alimentada ou quase-incentivada pela pandemia precisamos
de encontrar novas formas de celebrar os mistérios pascais, limpando teias de
comodidade ou mesmo rituais sociais gastronómicos, pois que significará ‘comer
o cabrito (ou o cordeiro)’, se ele não representa mais do que uma iguaria desta
época? Qual o alcance da doçaria – profusa e simbólica – se ela não significar
a terra prometida dada a um povo que passou das trevas para a luz? Haja verdade
e não aproveitamento consumista!
5. Afinal, a Páscoa não se reduz à
visão castrante de ‘ovos-e-coelhos’ de chocolate (ou em papel pintado), mas antes
vida nova em Deus, celebrada na comunhão da Igreja! A Páscoa é, acima de tudo,
a festa da vida, não da rastejante e sem saída, mas da verdadeira porque
fundada sobre a vitória de Jesus sobre a morte e o pecado…para sempre!
António Sílvio Couto
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