«E, agora, digo-vos: não vos metais com esses homens, deixai-os. Se o seu empreendimento é dos homens, esta obra acabará por si própria; mas, se vem de Deus, não conseguireis destruí-los, sem correrdes o risco de entrardes em guerra contra Deus» (At 5, 38-39). Esta citação coloca-nos perante uma observação do fariseu, doutor da Lei, Gamaliel, a propósito da ‘nova religião’, que estava a emergir entre o povo judeu e que viria a ser designado de ‘cristianismo’. Este eminente membro do sinédrio dava aos seus pares um conselho, que, ainda hoje, está atual como critério de conduta, tanto ao nível comunitário como pessoal.
1. Quem é Gamaliel?
O nome ‘Gamaliel’ significa ‘Deus me fez bem’, é um fariseu, doutor da Lei e
apresentado como mestre de Paulo (cf, At 22,3), que o terá educado e instruído,
sendo ainda apresentado como um seguidor de uma linha menos rigorista da Lei...
2. Linhas da sua intervenção:
* Advertências sobre situações do passado sobre dois revolucionários,
anteriores a Jesus: Teudas chegou a ter cerca de quatrocentos seguidores,
prometendo, como Josué, fazer passar o Jordão a pé enxuto; foi liquidado e
todos os seus partidários foram destroçados e reduzidos a nada; Judas, o
galileu, nos dias do recenseamento (esse que levou Jesus a nascer em Belém, Lc
2,1-2), arrastou o povo atrás dele, morreu, igualmente, e todos os seus adeptos
foram dispersos.
* Proposta preventiva: «não vos metais
com esses homens, deixai-os. Se o seu empreendimento é dos homens, esta obra
acabará por si própria; mas, se vem de Deus, não conseguireis destruí-los, sem
correrdes o risco de entrardes em guerra contra Deus» (vv. 38-39).
* Consequências: foi atenuado o castigo aos discípulos, que, embora açoitados
por causa do Nome de Jesus, isso lhes provocou motivo de grande alegria por
serem dignos de sofrerem por Ele.
3. Qual o alcance daquela proposta de Gamaliel? Que lições podemos colher para
nós, como Igreja e pessoalmente? Teremos vivido suficientemente à luz desta
sugestão - diga-se inspirada - nas nossas coisas do dia-a-dia e com maior
significado na nossa vida?
Gamaliel deixou-nos um sublime critério de avaliação daquilo em que nos
metemos: se é de Deus ou não. Não percamos ainda de vista que os apóstolos,
depois de terem sido mais uma vez aprisionados, tinham dito ao Sinédrio: «importa mais obedecer a Deus do que aos
homens» (At 5, 29). Por isso, Gamaliel faz-se eco dessa leitura mais
profunda das coisas humanas: quem conduz - Deus ou os interesses mundanos?
Este critério de Gamaliel pode ser chave de leitura de tantas questões ao longo
da História da Igreja. Com efeito, pensemos em tantos projetos políticos, em
grandes impérios, nas ditaduras do século vinte (nazismo, comunismos,
socialismos ou maoísmo), que pensaram que iriam dominar o mundo e caíram.
Pensemos nos impérios de hoje, também eles cairão, se Deus não estiver
presente, porque a força humana não é duradoura...
«Pensemos na história dos cristãos, também na história da Igreja, com tantos
pecados, com tantos escândalos, tantas coisas ruins nesses dois milénios. E por
que não caiu? Porque Deus está nela. Somos pecadores e também tantas vezes
causamos escândalos. Mas Deus está connosco. E Deus nos salva primeiro, e
depois a eles; mas o Senhor sempre salva. A força é “Deus connosco”. Gamaliel
demonstra, citando alguns personagens que haviam se apresentado como Messias,
que todo projeto humano pode primeiro ter êxito e depois naufragar. Portanto,
Gamaliel conclui que, se os discípulos de Jesus de Nazaré acreditavam em um
impostor, eles estavam destinados a desaparecer no nada, mas eles seguiam
alguém que vem de Deus, é melhor desistir de combatê-los e adverte: “para que
não aconteça de serdes também achados combatendo contra Deus ” (At 5,39). Ele
nos ensina a fazer esse discernimento» (Papa Francisco, ‘Audiência geral’,
Praça de S. Pedro, 18 de setembro de 2019).
Não
deixemos que a sedução do efémero nos fascine, pois seremos vencidos como
tantos outros...
António Silvio
Couto
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