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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Testemunho em tempo de seminário


Por ocasião da ‘semana dos seminários’ deixo um breve testemunho sobre essa etapa que reputo de importante da minha vida… Republico um texto de há cerca de dois anos atrás.  

- Sair de casa aos dez anos – procurando concretizar o sonho de vir a ser padre, fui para o seminário com dez anos, a 5 de outubro de 1969. Esta opção exigiu da família sacrifícios, tendo a minha mãe posto na penhora o cordão em ouro, que era a honraria e resguardo de qualquer mulher no contexto rural, por forma a conseguir angariar os meios suficientes para preencher o enxoval obrigatório para entrar no seminário…Simbolicamente o meu número da roupa era o ‘60’ [este texto saiu quando completei sessenta anos de idade], que minha mãe aprendeu a bordar nas várias peças de roupa…

- Entrar em falso…para caminhar melhor – com grande tristeza e ríspido corretivo reprovei logo no primeiro ano do seminário… a francês e a matemática. As férias de verão foram passadas a trabalhar no monte de castigo e sob intenso sol…Nada de facilidades, pois não tinha direito de gastar as poupanças que tanto custavam a conseguir pela família: os outros três irmãos não podiam ser condicionados pela preguiça do mais velho. Foi uma lição aprendida na humilhação…

- Apanhados pela revolução de abril de 74 – estava quase no final do seminário menor – era até ao quarto ano (hoje oitavo da escolaridade) e com mais de quinhentos alunos no conjunto – quando surgiu a revolução de 1974… tinha quinze anos. Nessa época da adolescência recebíamos lições de espiritualidade que marcaram a minha personalidade: os padres jesuítas inculcavam em nós a vivência da virtude da castidade, como a ‘pérola das virtudes’, num apelo contínuo ao discernimento da vocação ao sacerdócio ministerial. Era algo intenso e assumido: Deus valia a nossa entrega absoluta! Não consigo explicar, mas bem cedo senti o atrativo a sentir-me esclarecido das opções partidárias nacionais, sem esquecer a conjuntura internacional, ao tempo dominada pela guerra colonial e os conflitos da ‘guerra fria’ entre ocidente mais ou menos democrático e o leste europeu dominado pela ideologia marxista…com certos tentáculos na América Latina…

- Perda do pai… – no início de 1976, inesperadamente, morreu o meu pai de ataque cardíaco…Os colegas do seminário – das áreas de humanidades: 6.º e 7.º anos (hoje 10.º e 11.º) – estiveram presentes no funeral. Foi algo de complexo e confuso para um adolescente, questionando a continuidade no seminário sem meios suportados pelo pai. Aí surgiu uma voz e a correspondente intervenção de alguém, a quem recorri noutro momento de viragem – será assinalado com relevo – que auspiciou que não seria por falta de meios económicos que se perderia uma vocação… Desde essa data – só me apercebi disso mais tarde – deixei de pagar o sustento/pensão, assegurando os gastos com os livros…até final do curso.

- (…) Ao conhecimento do RC – foi algo de importante e marcante ter conhecido o renovamento carismático católico em finais desse mesmo ano de 1976. Era um movimento novo, com raízes bíblicas para que pudesse haver na Igreja ‘um novo Pentecostes’… foram anos de aprendizagem, de aprofundamento e de abertura focalizada na vivência teológica, eclesial e espiritual dos carismas pessoais e comunitários. Não tenho dúvida este foi o meu underground pastoral e teológico, sem registos de anormalidade, mas antes num compromisso contínuo e que, talvez me possa ter custo – sobretudo depois de ser padre – uma possível ‘carreira’…sobretudo no contexto da diocese de Braga.

- Iniciação na escrita pela ‘escola’ do Cenáculo – entrei para este projeto totalmente gerido pelos alunos do seminário conciliar em finais da década de 70. À boa maneira dos iniciadores desta aventura após a segunda guerra mundial, o Cenáculo era uma escola onde se aprendia a escrever – tal era a exigência de quem acompanhava e dos ínclitos antecessores, onde se situavam já bispos, cónegos, professores e tantos outros bons escritores – com critério jornalístico e sensatez de opinião. Sem qualquer prosápia de vaidade poderemos considerar que os colaboradores do Cenáculo eram (tinham sido) ‘la crème de la crème’, quase intelectual de estudantes…do seminário. Desde esse tempo, em 1979, que venho a escrever com regularidade, ao meu estilo e segundo um critério que poderei explicitar posteriormente…

- Aprender a estudar para servir – o tempo de estudo da filosofia/teologia (dois mais quatro anos) foi algo de intenso, interessante e proveitoso. Os professores eram exigentes – alguns em final de carreira e outros a iniciá-la – e as matérias um tanto complexas, pois se tratava de aprender a traduzir Deus e os seus mistérios em linguagem humana. Gostei muito de estudar teologia, mas ainda mais da sagrada escritura… Ao longo dos anos de estudo passava, pelo menos um mês das férias de verão, como amanuense na cúria diocesana, preenchendo centenas de processos de casamento, ao tempo como grande procura. Foi aí, na prática, que fui entrando na complexidade dos processos e nas linhas cruzadas das relações humanas e sociais… Era duro viver só um mês na cidade, que, ao tempo, se esvaziava para os lugares de veraneio e a canícula estival retorcia até as pedras dos passeios…

- Ver nos outros como não fazer – com o desenrolar do tempo de preparação para o exercício do ministério sacerdotal fui-me apercebendo do significado da frase: que padre quero ser? Com efeito, via nos que já eram padres certas coisas que achava pouco adequadas à identidade sacerdotal. Se havia no meu imaginário um modo de ser, notava que outro tanto rejeitava o que não queria ser assim. Não havia conflito, mas antes um desejo de não querer usufruir dum estatuto social, quando o que era (ou viria a ser) somente tinha sentido pela vocação acolhida, aceite e correspondida…Nessa época – década de 80 – como que se vivia uma espécie de rejeição às fardas…não podemos esquecer que estávamos no rescaldo da revolução de abril e na tentativa de implementar as normas saídas do concílio Vaticano II. Deste modo muito poucos usavam o colarinho eclesiástico, nem mesmo uma boa parte dos superiores… Foi um modo de estar, que apreendemos…naturalmente! 

- Pela ordenação estar ao serviço – a caminhada rumo à ordenação tinha (e tem) as suas etapas, desde os ministérios instituídos até à ordenação diaconal e presbiteral: em cada passo um degrau não de ascensão, mas de consciencialização para estar ao serviço dos outros em Igreja… Concomitantemente a este percurso fui amadurecendo, sobretudo à luz da vivência orante – pessoal e em grupo – do renovamento carismático, essa descoberta inebriante de que o que se diz nas Escrituras não é do passado, mas pode ser vivido no presente: muitos dos carismas não são de antanho, mas que estão a ser renovados na vida e no ministério da Igreja em expressão católica…Vi e vivi isso de forma intensa numa época de fascínio da Igreja católica, tanto ao nível nacional como noutros países e situações de fé…

(Cf. Remar e cavar… hoje como ontem, Prior Velho, Paulinas, 2018, pp. 140-144).

 

António Sílvio Couto

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