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sábado, 14 de novembro de 2020

A pandemia da solidão


«O individualismo, em particular, está na raiz daquela que é considerada a doença mais latente do nosso tempo: a solidão». Esta breve frase aparece-nos na carta ‘Samaritanus bonus’ da Congregação para a Doutrina da Fé, tornada pública a 14 de julho passado e refletindo sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida.

Agora que estamos em mais uma fase de confinamento – não se vislumbrando quando poderá terminar – por causa do ‘covid-19’ torna-se, então, essencial percecionar as causas mais do que as meras consequências daquilo que estamos a viver de forma acelerada, difusa e precipitada!

Naquela frase citada da carta da Congregação para a Doutrina da Fé faz-se uma alusão a um outro pensamento do Papa Bento XVI na carta encíclica ‘Caritas veritate’: «uma das pobrezas mais profundas que o homem pode experimentar é a solidão. Vistas bem as coisas, as outras pobrezas, incluindo a material, também nascem do isolamento, de não ser amado ou da dificuldade de amar» (n.º 53).

Ainda recentemente dados divulgados pelas forças de segurança diziam que, em Portugal, há 42.439 idosos isolados… E quantos outros, mesmo que acompanhados, estarão em solidão?

De facto, a solidão é hoje algo atroz não só para os mais velhos, mas também para os mais novos, pois estes, apesar de manipularem com destreza os meios de tecnologia, dá a impressão que se refugiam nesses mesmos instrumentos, fechando-se aos outros…a começar na própria família. Com efeito, é perfeitamente habitual vermos isso, à mesa do restaurante ou do café, no mesmo carro ou em circunstâncias diversas, e constatarmos que as pessoas podem estar próximas, dedilhando ao telemóvel, mas muito longe desses que poderiam ser seus interlocutores de convívio, de partilha ou mesmo de simples conversa…  

 

= Reportando-nos novamente ao documento da Congregação para a Doutrina da Fé, ‘Samaritanus bonus’’ e ainda à encíclica do Papa Francisco, ‘Fratelli tutti’, poderemos encontrar breves sugestões para o combate desta pandemia da solidão, que, por certo, faz mais vítimas silenciosas do que o ‘covid-19’. À luz da figura do bom samaritano podemos encontrar, então, essas diretrizes de luta contra esta pobreza psicológica, moral e espiritual:

* Um coração que vê – é necessário converter o olhar do coração, porque muitas vezes quem olha não vê. Sem compaixão, quem olha não se comove com o que vê e passa adiante; ao contrário, quem tem um coração compassivo deixa-se tocar e comover, para e cuida. «Crescemos em muitos aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima» – Francisco, ‘Fratelli tutti’, n.º 64.

* Atitude de cuidar a vida toda e a vida de todoso bom samaritano não só se faz próximo, mas cuida do homem que encontra quase morto ao lado da estrada. «Que a sociedade se oriente para a prossecução do bem comum e, a partir deste objetivo, reconstrua incessantemente a sua ordem política e social, o tecido das suas relações, o seu projeto humano» – Francisco, ‘Fratelli tutti’, n.º 66.

* Sem máscara assumir as fragilidades pessoais e alheias – tal como o bom samaritano devemos cuidar «da fragilidade de cada homem, cada mulher, cada criança e cada idoso, com a mesma atitude solidária e solícita, a mesma atitude de proximidade do bom samaritano. (…) A fé cumula de motivações inauditas o reconhecimento do outro, pois quem acredita pode chegar a reconhecer que Deus ama cada ser humano com um amor infinito» – Francisco, ‘Fratelli tutti’, n. os 79 e 85.

= Por entre tantas ocupações e preocupações urgentes, precisamos de detetar quais são as propostas e ações mais necessárias para que não andemos a resolver problemas de sirene ligada – confundindo barulho com eficiência – em vez de darmos tempo e condições de escuta a tantas pessoas que precisam de falar connosco mais do que ouvirem as nossas ‘lições’ moralistas e, possivelmente, fastidiosas, repetitivas e sem esperança.

Numa palavra: talvez nos tenhamos por boas pessoas, mas não sejamos bons cristãos, com olhos atentos, ouvidos abertos, boca fechada e de passos lentos para acolher e lestos para resolver o que possa dignificar quem Deus coloca no nosso caminho… tal como o ferido da parábola do bom samaritano (Lc 10,29-37).

 

António Sílvio Couto

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