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quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Obrigadar-se em excesso


 De uma forma um tanto recente temos visto crescer uma tendência em certos setores – onde se inclui a dimensão religiosa – de estar num contínuo ato de agradecer: a presença das pessoas, a participação, algo mais específico ou mesmo pela simples razão de que fazerem aquilo que, simplesmente, lhes competia... Por estes dias fui confrontado com a observação de que deveria ter agradecido algo que as pessoas fizeram por direta obrigação ou dever, mas não usam de idêntica atitude de retribuir, agradecendo, o que lhes foi facultado em razão de um serviço livre e direto...

1. Intitula este texto a palavra ‘obrigadar’, numa espécie de neologismo composto a partir da palavra ‘obrigado’ e numa tentativa de querer acentuar que, quem recorre ao ato de dizer obrigado, se estará a obrigadar, no sentido reflexo do mesmo. Assim ‘obrigadar’ será a insistência em dizer obrigado de uma forma exagerada, excessiva ou talvez inoportuna. Dizem que a expressão ‘muito obrigado’ será a abreviação de uma frase mais completa: ‘sinto-me muito obrigado a agradecer’... exprimindo gratidão para com alguém por algum favor ou atenção que teve para com quem agradece...

2. Dizer ‘obrigado’ faz – ou devia – parte de um trato de convivência social e mesmo cívica. Ora, uma coisa é ser educado, outra bem diferente será o exagero – conheço alguns casos – que podem constituir uma forma de estar sem nexo e quase desconexo. Com efeito, muitas coisas e atos que são aparentemente agradecidos não passam de que, cada um, cumpra o seu dever e este é bem mais sério do que a bajulice de certos agradecimentos. Por vezes a longa lista de agradecimentos pode deixar de fora alguém que se sentiria no direito em ser agradecido. Nisto como em tantas outras coisas o correto condimento é saber não exagerar, pois, se de menos faz mal e a mais pode ser ainda pior.

3. Cristamente, nesta matéria, escuto, muitas e muitas vezes, essa frase bíblica - «assim, também vós, quando tiverdes feito tudo o que voi foi ordenado, dizei: ‘somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’» (Lc 17,10). Eis o critério máximo de tudo quanto possamos fazer. Por isso, fico confundido com certas observações e penachos de agradecimento. Cumprir o dever é o melhor reconhecimento de quanto foi realizado. Comendas e medalhas, aplausos e destaques, títulos e agraciamentos... podem ser cultivados pelas forças do mundo, mas não deveriam ter espaço nem lugar para um cristão minimamente com fé amadurecida...

4. Em linha de conta com o desenvolvimento dos dons e qualidades de cada pessoa assim deveríamos situar-nos nas instâncias de vida cristã. Se tal acontecesse esfumar-se-iam as invejas e contendas, as maledicências e as conversas nas costas - quantas vezes associadas ao elogio em presença, mas à ruindade na ausência... As imagens do corpo – apresentada por São Paulo em 1 Cor 12 – ou da orquestra – aduzida pelo Papa Francisco, por estes dias para falar do espírito do Sínodo - fazem-nos refletir sobre a consonâmcia e articulação de todos e de cada um no espetro social e eclesial. Se cada um souber o espaço que lhe compete e o respeitar, deixará aos outros o seu devido lugar e tudo correrá em harmonia... Os exageros em agradecer podem deitar estas intenções a perder.



António Sílvio Couto

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