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quinta-feira, 8 de junho de 2023

Num país de ironias

Dá a impressão que vamos tendo capacidade para viver ironizando, isto é, por mais graves que possam ser as situações encaramo-las na perspetiva de não vermos só a faceta mais difícil ou de termos uma outra visão mais light dos problemas. Só que a ironia exige inteligência de quem faz e de quem escuta, de quem vê e de quem aprecia. A ironia, por vezes, associa-se ao humor e este, nalguns casos, pode ser mordaz e corrosivo, sobretudo, se for retirado do contexto… Há casos que não se resolvem com ironia ou mero bom humor, mas outros poderão ter nestes itens solução.

1. Certos políticos – desses profissionais e do governo – parece que tentam resolver as coisas com laivos de ironia e colocando as questões entre a desculpa e a falta de memória, quando perguntados sobre os problemas em análise. As tentativas de querem ser irónicos podem decorrer das maiorias recentes, mas que se estão a esfumar, tanto mais quanto essas atitudes de sobranceria não jogam com a qualidade dos intervenientes. Nota-se uma razoável falta capacidade de enfrentar os problemas, refugiando-se os irónicos no adiamento da assunção de responsabilidades, tanto mais quanto as pontas soltas deixam a perceber que se pode enganar por algum tempo, mas será difícil de mentir sem ser descoberto…

2. Vem dos arcanos da nossa literatura a capacidade de comunicar com subtileza e, por vezes, com grande ironia. Referimo-nos depois das ‘cantigas de amigo’, as ‘de escárnio e maldizer’, onde, entre muitos fatores, se fazia do humor e da ironia algo que tentava concretizar a visão de Cícero: a rir se corrigem os costumes (‘ridendo castigat mores’). Foi com humor e ironia que Gil Vicente – pai do teatro português -- difundiu a sua mensagem numa linguagem que ainda hoje nos faz admirar e aprender… Para atalhar percurso será digna de consideração a subtil forma de fazer ‘teatro de revista’ . Acertar com a linguagem é bem mais sublime do que entender as ‘piadas’ político-sociais, pois, num trejeito poderá contida uma mensagem de largo e profundo alcance. Se no regime anterior tudo era pensado para fazer refletir, agora falta quem saiba elaborar os textos que façam pensar muito para as banalidades e algumas brejeirices à mistura.

3. Sente-se uma espécie de nostalgia para tentarmos descodificar as ironias e habilidades do humor: ancorado em clichés ideológicos, as ironias de hoje deixam muito a desejar, tanto pela forma como pelo conteúdo. Alguns dos comediantes de serviço pavoneiam-se pelos espaços televisivos como se fossem novos gurus de uma mentalidade do faz-de-conta. Quantas vezes é preciso grande inteligência para faz os outros atingir o que, de modo subtil e quase-capcioso, há de levar os ouvintes a rirem-se e achar graça, no meio diz-se, piada. Os artistas do ‘stand up comedy’ proliferaram, mas bem depressa caíram na vulgaridade, pois o que diziam nem engraçado era, quanto mais teria potenciar para ter graça, humor ou ironia. Imagens de arquivo como que fazem ter vergonha das salas cheias (de norte a sul do país) e daquelas graçolas insonsas e grotescas…

4. Longe vai o tempo em que as piadas de um programa televisivo se tornava veículo de comunicação e em que gaffes de uns criavam moda no tecido de humor e ironia. Com a dispersão de meios de entretenimento caiu a sagacidade da ironia e só em bolhas circunstanciais (locais, de grupo ou regionais) se arrancar algum sorriso dos comparsas. Certos meios de comunicação, além da atrofiarem a ironia, foram cerceando a capacidade de usar o humor como meio de castigar e corrigir, sem moralismos mas com ética, bom senso e esperteza.

5. Num tempo em que cada eu é intocável, sem termo de comparação e numa exaltação hiper-egoísta, torna-se quase impossível aceitar os seus defeitos, embora os pretenda apontar aos outros. Pois é na captação dos defeitos que a ironia e o humor crescem, tornando-se quase inverosímil rir-se de si mesmo e das correções que nos queiram permitir. Desgraçado país onde a ironia não seja levada a sério, mesmo nas fases cinzentas da sociedade, como é esta em que estamos a viver… Ironia, com respeito e responsabilidade, precisa-se!



António Sílvio Couto

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