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quinta-feira, 14 de julho de 2022

Emoção na cobertura dos incêndios

 


Mais um dia de incêndios. As coisas não melhoram antes se complicam com a onda calor que varre o país há dias. Quase todos os canais de televisão fazem ‘diretos’ a toda a hora e momento. Eis que, num desses diretos, toca a um jornalista com quem tive contacto noutras circunstâncias…em razão sua atividade profissional. Chamado a falar percebemos que a voz é diferente e as condições pessoais do cidadão-jornalista estão sob bastante pressão. Depois de termos ouvidos um certo relato dos acontecimentos, ouvimos a referência ao irmão do jornalista, como tendo sido um daqueles que tinha estado no socorro àquelas populações. Ele não foi capaz de conter a emoção e sentiu-se destabilizado pela alusão às vítimas daquele incêndio…seus conhecidos, vizinhos, familiares e até à referência às perdas pessoais pelas chamas…

 1. Quase pela primeira vez senti que isto de ser repórter – neste casos de incêndios – fica condicionado quando isso nos toca de perto ou mesmo na própria pele. Nem tudo é indiferente, quando aquilo de que falamos nos emociona, nos faz cair a máscara da distância e vivemos a proximidade das situações, das pessoas e até nos faz cair na noção de perda ao vivo…

 2. A panóplia de intervenções em maré de incêndios – é assim todos os anos – por parte de alguns jornalistas dá a impressão de fazer da maioria uma espécie de autómatos sem sensibilidade, truncados de sentimentos e numa quase-frieza a roçar o desumano. O enfoque das reportagens deixa um pouco a desejar sobre se não estaremos com pessoas que não passam de pés-de-microfone debitando números, casos ou possíveis intrigas. 

 3. O excesso de imagens, de perdas, de misérias, de consequências trágicas…sobre os incêndios parecem retratar um mundo onde os sentimentos foram narcotizados por uma espécie de espetáculo entre o tétrico e o feérico. Por muito que se pretenda fazer da informação quanto ao incêndios um espetáculo de baixa moral, não podemos pactuar com o recurso até à exaustão de quanto magoa e fere quem é vítima – direta ou indireta – dos incêndios de verão, cada ano e em cada época.

 4. Embora possa ser considerado de algum interesse público os incêndios não podem ser aproveitados só para trazer à liça as povoações onde eles acontecem, pois, se não aparecessem as localidades onde ocorrem, ninguém falaria daquelas terras, perdidas o resto do ano no esquecimento, no abandono e na desertificação crescente. Tenho a impressão – há longo tempo – que a maioria dos incêndios não se dariam com tanta vulgaridade, se deixassem de ser noticiados e de serem referidas as terras onde se verificam… Nalguns casos parece mais uma publicidade barata e com descontos…ao longo de algum tempo.

 5. Um problema se coloca em cada ano; qual a origem dos incêndios? Serão ‘naturais’ ou terão origem criminosa? Haverá quem ganhe com estas tragédias recorrentes em cada verão? A serem – como parecem na maior parte dos casos – de incidência humana, como poderão ser essas pessoas salvaguardadas do perigo na época dos incêndios? Não haverá alguma displicência, por parte das autoridades, com a desculpa do tempo quente-e-seco para deixar tudo na mesma, ano após ano? Por que não questiona a panóplia de meios exigidos de combate (carros, meios aéreos, pessoas e recursos) com tão reduzidos resultados?

 6. Neste fatídico ano de seca extrema, continuo a não compreender que se façam tantos momentos de diversão, quando uma significativa parte do país, sofre com os resultados dos incêndios. Tenho a impressão que será preciso mobilizar muito mais para a comunhão de sentimentos entre todos e não deixar à solta uns tantos que se consideram acima do resto, num misto de sobranceria e de insensibilidade ao sofrimento alheio: festivais e concertos, arraiais e romarias, foguetório e religião à mistura…dão a impressão de que o mundo rural, agrário e florestal é o parente pobre de um país vazio de critérios humanos, de posições cívicas e de espaços de compromisso de tudo com todos…

O jornalista em lágrimas deveria merecer mais atenção e consideração!

 

António Sílvio Couto

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