A
memória é aquilo que nos faz saber quem somos. Sem memória não saberíamos quem
somos nem quem são os outros. Memória é essa faculdade da nossa condição humana
que nos faz perceber o ontem no hoje e abrirmos às condições do amanhã.
Como
capacidade de armazenamento de informações e de factos obtidos através de
experiências ouvidas ou vividas, a memória é todo um processo que relaciona
conhecimentos e gera novas ideias, ajudando-nos a tomar decisões diárias.
Sem
pretendermos entrar em conceitos técnicos e noções mais ou menos científicas –
memória declarativa e memória não-declarativa – resumiremos, neste contexto, a
memória como essa capacidade de saber que algo se deu e ainda como é que isso
se deu… incluindo nessa compreensão factos, nomes, acontecimentos, que vamos
vivendo ao longo da nossa (mais ou menos breve) existência.
Ora,
nesta aprendizagem há uma razoável diversidade de vivências que podem
condicionar o nosso atuar presente, digamos que há ‘coisas’ – aqui incluímos
uma variedade de situações (reais ou menos percetíveis) e de pessoas – que nos
podem condicionar, na medida em que possam ter sido menos boas, senão mesmos
desagradáveis ou até traumatizantes…
Neste
sentido quando falamos em purificação da memória temos de entrar num outro
campo da nossa vida em que fomos desafiados a aceitar – numa atitude de
consciencialização – que no nosso quadro histórico pessoal ou familiar, social
ou coletivo podem ter acontecido vivências que nos deixam um tanto com
dificuldade em explicar totalmente o nosso comportamento…atual. Com efeito, há
imagens, figuras e pessoas que nos podem fazer recordar algo que nos ferir ou
magoou. Há, por vezes, odores e sensações que nos podem fazer lembrar algo que
nos condiciona até a nossa reação, veja-se a possível aversão a uma comida ‘só’
pelo cheiro que ela nos pode trazer à memória!
= Diante
destes breves (e um tanto superficiais) aspetos como poderemos entender – no
sentido mais psicológico-espiritual – a purificação da memória? Onde e como
poderemos incluir a função religiosa neste processo de purificação da memória?
Quais os aspetos da purificação da memória que têm implicações com o nosso
desenvolvimento humano e de maturidade? Até onde poderá ir a nossa capacidade
de enfrentamento das nossas condições psicológicas para conseguirmos uma melhor
purificação da memória?
Desde
logo todo este processo da purificação da memória é muito mais do que uma mera ação
de psicologismo, mas antes uma fundamental assunção dos nossos próprios erros
diante de Deus, para com os outros e até para connosco mesmos. À afirmação,
tantas vezes proferida, de que ‘não tenho nada de que me arrepender’, temos de
contrapor a humildade em assumir que erramos e que desses erros fazemos
reconhecimento e até confissão. Com efeito, na nossa história há, por certo,
muitas lacunas e falhas, diversas menos boas opções e até erros pessoais,
familiares e sociais.
«Purificar
a memória significa eliminar da consciência pessoal e coletiva todas as formas
de ressentimento ou violência que a herança do passado aí tenha deixado, na
base de um novo e rigoroso juízo histórico-teológico que funde um consequente e
renovado comportamento moral. Isto acontece todas as vezes que se atribui a atos
históricos passados uma diferente qualidade, comportando uma nova e diversa
incidência no presente com vista ao crescimento da reconciliação, na verdade,
na justiça e na caridade entre os seres humanos» (Comissão teológica
internacional, ‘Memória e reconciliação’, ano 2000).
-
Quantas vezes teremos de ser mais verdadeiros uns para com os outros para que
possam ser ultrapassadas feridas e momentos de dissensão entre pessoas e
famílias, entre povos e culturas, entre expressões religiosas e formas de
comunicação.
-
Quantas vezes precisaremos de olharmos mais ‘olhos-nos-olhos’ e à luz da aceitação
dos nossos erros e pecados para prosseguirmos um caminho que se deseja de
comunhão e em paz.
- Quantas
vezes será através do perdão dado e recebido que poderemos construir uma
sociedade mais fraterna, mais justa e mais solidária, aceitando-nos mutuamente
e reconciliando-nos na caridade.
No mais
profundo de nós mesmos todos estamos necessitados de perdão, de paz e de
purificação!
António Sílvio Couto
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