Tomamos este título da
realização recente do encontro diocesano de um movimento da Igreja católica, na
diocese de Setúbal.
Mais do que um slogan,
este tema pode e deve levar-nos a refletir sobre a família, a misericórdia e a
sua vivência numa atitude de santificação.
Tentaremos abordar esta
problemática tendo em conta, essencialmente, a nossa raiz judaico-cristã,
discernindo, por entre tantos sinais de interpretação contrária, o que a
família pode ser, sabendo que há cada vez mais pessoas feridas na sua vivência
mais simples e cujas mágoas se estendem a situações mais ou menos mal
resolvidas, senão mesmo adiadas ou ofendidas...dentro e fora de portas.
Como alguém dizia: uma
família começa a construir-se três gerações antes de efetivamente os cônjuges
se matrimoniarem – dizemo-lo ainda num conceito religioso – e a vermos pelos
factos que por agora ocorrem, a família já está em crise desde há muito
tempo...
= Família: o que é, o que foi ou o que deve ser?
Poder-se-á dizer que
nenhuma outra instituição humana está tão sob fogo do que a família, sobretudo
atendendo a uma certa noção que ainda vamos tendo na memória.
À (dita) família
tradicional surgem hoje muitas de diversas sugestões de família. Percorramos
algumas das modalidades: família nuclear (pai, mãe e filhos... normalmente
agora no singular), família alargada (onde se envolve para além da
conjugalidade, a conexão com ascendentes e descendentes), monoparentais,
disfuncionais (destruturadas), reconstruídas...singulares, homoafetivas, etc.
Sobre a família deixou da
haver consenso, seja de forma e quase de conteúdo, pois, muitas vezes, cada um
fala daquilo que viveu – mal ou bem – e cria uma ilusão sobre aquilo que
gostaria de conseguir, ao menos como suplência do não-vivido, mas onde o que
transporta é a experiência do já vivido...Assim corremos o risco de dizer o que
a família é, à luz do que vivemos e de querermos ter o que não conseguimos
viver.
= Casa: lar, refúgio ou santuário?
Cada um de nós tem a
experiência da sua casa, onde aprendeu com o pai e com a mãe a ser homem ou
mulher, vendo neles as referências humanas, afetivas e morais. Por isso, a casa
onde cada um de nós nasceu, viveu e/ou foi educado deixou marcas indeléveis
para a nossa vida. Também nestes aspetos as envolvências cénicas nos
influenciaram. Com efeito, se fomos educados com a presença (ou ausência) de
sinais (ditos) religiosos, isso faz de nós pessoas com alguma sensibilidade (ou
não) às dimensões da crença, da fé e mesmo do cristianismo.
Falar da família como
‘santuário’ como que pode desencadear na nossa memória efeitos de respeito, de
oração, de prática religiosa e mesmo como espaço onde se aprendeu a conviver
com o mistério dos outros: pai ou mãe, os irmãos, os vizinhos, a natureza
(animais, plantas, e minerais), numa conjugação entre todos e os demais.
= Família – santuário de misericórdia: como?
Será, então, na família
onde todos se cuidam e se deixam cuidar, se amam e se deixam amar, se acolhem e
se deixam acolher, se perdoam e são perdoados que poderemos encontrar a
resposta a este desafio: ser e viver a misericórdia na família.
Com tantas pessoas
feridas nas experiências de família, esta poderá ser ainda hoje espaço de
misericórdia dada e recebida? Como incluir os elementos dispersos e enquadrar
os cacos esfrangalhados? Como envolver os marginalizados e ajustar os
marginais? Como curar as feridas e sarar as mazelas mais profundas? Como fazer
de cada lar um espaço de partilha e não, de forma ocasional, um tempo de mesa à
pressa?
Temos todos uma tarefa de
grande valor e de enorme esforço. Queira Deus que nos ajudemos a olhar o futuro
com esperança, confiança e coragem!
António Sílvio Couto
Em análise da frase: "uma família começa a construir-se três gerações antes (...)"
ResponderEliminarO grupo familiar é composto: a partir do casal, e a partir daí ocorre uma interação entre várias pessoas e diversas gerações, construindo se assim um caminho para transmissão psíquica. As mudanças nos sistemas de transmissão psíquica e socioculturais, assim como suas feridas, trazem um lado negativo, que é aquilo que fica oculto, não dito ou “mal dito”, atravessando as gerações em um processo transgeracional. Quando é marcada pelo negativo, observamos que o que se transmite é aquilo que não pode ser detido é o que
não encontra registrado no psiquismo dos pais e é depositado no psiquismo da criança: os lutos não realizados, os objetos desaparecidos sem traço nem memória, a vergonha, as doenças e a falta (CORREA, 2003).