Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

‘Ficar em casa’, espiolhando a vida alheia?

 


Estamos a viver mais um tempo de confinamento obrigatório. As causas prendem-se com os números astronómicos de infetados e de mortos, pelo ‘covi-19’, no nosso país, respetivamente, mais de quinze mil e quase trezentos… Números que nos colocam na vanguarda negativa da Europa e do mundo.

Diz-se que ‘morre um português em cada cinco minutos’ devido a este maldito vírus, que, entretanto, tem tomado várias mutações, sendo cada uma mais fatal do que outra.

Tem sido complicado convencer uma boa parte da população a conseguir ficar em casa, mesmo que seja essa a forma de controlar com mais eficácia a propagação do vírus, bem como um meio de tentar suster a iminente rutura dos hospitais.

– Quedando-nos pelo cumprimento das normas de confinamento, surge uma questão algo complexa: que fazer em casa, se não há hábitos de controlo sobre as saídas ou se, usando os meios de comunicação (televisão, internet ou telefone), não foi adquirida a contenção nos gastos ou mesmo na moderação do manuseamento?

De muitas e variadas formas os programas televisivos – sobretudo nos ditos canais abertos – da manhã ou da tarde, diariamente ou ao fim-de-semana, vão seduzindo os telespetadores a entrarem nos ‘concursos’ ou auspiciando conquistar prémios. As operadoras de telecomunicações engordam com tais iniciativas e, pé-ante-pé, as pessoas ‘investem’ aquilo que gastariam nos jogos-de-sorte-e-de-azar… na rua. Isto já para não falar nos casinos virtuais e até noutras roletas bem mais viciadoras.

 – Desde há duas décadas que vimos a assistir, muitas vezes de forma quase-acrítica, a programas pretensamente de entretenimento, onde se vai espiolhando a vida dos outros. Sobretudo os dois canais comerciais têm andado em disputa de qual é a reprodução por cá do que mais baixo se importa – qual enlatado de má qualidade – para durante meses ‘prenderem’ os seus espetadores, os anunciantes e, numa palavra, um público sem critérios nem valores… que não sejam os dislates dos concorrentes, as tropelias dos incautos ou mesmo a baixeza moral dos (pretensos) mais ousados.

Entretanto, foi-se apurando isso que, em tempos e com termos mais ruralistas, se chamava ‘espreitar pelo buraco da fechadura’. Agora são as designadas ‘redes sociais’ que fazem esse indiscreto papel. Com maior ou menor regularidade e/ou conhecimento as pessoas tentam saber da vida alheia.

Em círculos mais pequenos sempre houver a intromissão e a maledicência de uns para com os outros. Espaços havia onde era propício e quase-fatídico falar ou ser falado: o lavadouro da aldeia; a soleira da porta, em especial ao sol ou à sombra, conforme a época; a taberna, a tasca ou o café; o adro da igreja ou mesmo certos espaços acrescentados… onde, quantas vezes, se desenterravam mortos e se sepultavam vivos, numa cultura de proximidade, que antes era de conflitualidade…latente ou explícita.

 – Se há quem pretenda ser discreto e passar o mais possível desapercebido, outros como que cultivam o seu contrário, dando tudo o que podem – por vezes é bastante pouco e irrisório – para serem falados, nem que seja pelas piores razões. Admira-me que ainda haja pessoas que submetem àqueles concursos-de-vida-a-descoberto, denunciando-se e sendo denunciados mais pelas fraquezas, banalidades e lacunas do que pela coisas boas, aceitáveis e de bom senso.

Embora cada pessoa procure vivenciar o que lhe faz estar bem enquadrado no meio em que vive, torna-se essencial saber o que se deve dizer ou calar, mostrar ou encobrir, dar a conhecer ou fazer mistério. Deixo neste sentido uma citação bíblica: «tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar e tempo de curar; tempo de derrubar e tempo de edificar; tempo de chorar e tempo de rir; tempo de se lamentar e tempo de dançar; tempo de atirar pedras e tempo de as ajuntar; tempo de abraçar e tempo de afastar o abraço; tempo de procurar e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar; tempo de amar e tempo de odiar; tempo para  guerra e tempo para a paz» (Ql 3,1-8). Aprendamos a viver o nosso tempo!

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Sabemos para onde vamos?


 Recordo com vivo interesse um ensinamento apresentado por um norte-americano, há cerca de duas décadas, que dizia: tal como John Wayne, nos seus filmes do far west, de mão em riste, apontado em frente, dizia ‘let’s go’ (vamos), assim João Paulo II, por ocasião do ‘jubileu do ano 2000’ e com a ‘nova evangelização’ estava a dizer à Igreja católica: vamos, em frente, rumo à meta…

Vem isto a propósito – mais por ausência ou falência do que por realidade – daquilo que podemos perceber a falta de quem nos aponte o caminho a trilhar, bem como de uma mensagem mobilizadora de todos.

Nesta partilha – algo inquieta, mas não-ansiosa – vou percorrer alguns campos de intervenção, sem perder de vista, essencialmente, o âmbito eclesial.  

 = Leitura algo preocupada dos resultados das eleições presidenciais

Sendo este ato eletivo mais pessoal do que partidário, vimos figuras um tanto desarticuladas do significado de propaganda, servindo-se da máquina de outras ocasiões; invetivando mais a faceta da ideologia, no sentido governativo do que na consonância da presidência; mais ataques de combate à pessoa, numa espécie de assassínio de personalidade, do que às ideias; recurso a clichés já abandonados no resto da Europa, mas fomentadores de conflitualidade social em arquivo de memória; exaltação mais daquilo que divide do que o que une e congrega…

A maioria dos candidatos teve a resposta que merecia: mínima, insuficiente, nalguns casos ridícula…mesmo que tendo pessoas em volta, não passavam de figuras solitárias e mesmo isoladas. Ficará na memória destas eleições presidenciais, o vencedor a deambular sozinho nas ruas da capital, fazendo tempo e ouvindo os discursos dos vencidos. Mas teremos reconhecido nele um guia das hostes lusitanas para os próximos tempos? Sendo agora ‘presidente’ sê-lo-á ‘para todos’, dado que nem todos nele votaram? Como poderá o reeleito presidente continuar a ser fiel aos seus valores, critérios e propostas, sem esquecer a fé católica que sempre assumiu? Continuará a dar cobertura às tropelias governativas, mesmo as mais esconsas e atentatórias da dignidade das pessoas, sobretudo das que têm iniciativa não-estatais nem estatizantes?

Gostaria de lembrar, no registo da História, estes anos duros de pandemia como tempos de aferição aos valores humanos mais elementares e essenciais!

 = Como servir os homens de hoje, levando-lhes Deus?

Esta é uma preocupação que me parece fundamental para entender o papel, a missão e o compromisso da Igreja católica, particularmente no nosso país. A submissão às diretrizes governamentais, em matéria de gestão da pandemia, quase fez dos cristãos/católicos uns cordeirinhos servidores dos intentos seculares. Em certos momentos fomos mais seguidistas das orientações das autoridades de saúde do que das normas eclesiais: a dispensa da missa dominical, o fechamento (é mais do que encerramento) das atividades pastorais, a suspensão da maioria dos sacramentos, a exclusão de alguns setores sociais das propostas de evangelização… e tantas outras subtilezas cumpridoras das ordens mundanas. Tudo isto se pagará por largo tempo: a ausência das crianças e adolescentes, a acomodação às missas on-line, a desabituação da componente comunitária na prática religiosa… a rutura das finanças das paróquias e dioceses, o excesso de virtualidade das coisas da fé…’à la carte’.

Estaremos a saber servir a mensagem do Evangelho no seu confronto com os problemas que temos e os que nos são colocados? Não teremos descaído na ousadia do anúncio e até esmorecido na dinâmica profética? Não nos inquieta que destes tempos fique um razoável silêncio do nada, como se fosse um vazio? Já começamos a discernir aquilo que Deus nos diz, por entre os seus sinais algo difíceis de compreender?

 = A vida será só economia e finanças?

As medidas propostas, as decisões apresentadas, as regras e os métodos têm privilegiado a ‘economia’, como se ela fosse a resposta para todos os problemas. Desgraçada cultura que se configura pelo material, o materialismo e consumismo. De facto, Deus conta pouco ou quase nada…até para os ditos cristãos!

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

… E o povo falou

 


Acabado que foi o espetáculo – nalguns casos mais triste do que alegre – das ‘eleições presidenciais 2021’ há que recolher as lições, expressadas de variadas formas, com diversos sentidos e, sobretudo, com múltiplas implicações no presente e para o futuro.

Desde já uma nota: mesmo que sufragado com maioria, o presidente não é ‘de todos’ os portugueses, pois uma boa parte – dizem as cifras um tanto erróneas com mais de sessenta por cento – nem votou, e os que se dignaram pronunciar-se, cerca de quarenta por cento, escolheram outros pretendentes. O presidente tem de ser, sim, ‘para todos’ os portugueses, tenham-no ou não plebiscitado…este termo quer ainda dizer que o reeleito foi avaliado sobre os cinco anteriores anos de mandato, logo bem acolhido, aceite e com condições para continuar mais outros cinco anos, assim tenha vida e saúde.

Dos resultados da noite de 24 de janeiro, em que o sábio povo português falou, podemos/devemos tirar as seguintes lições:

* A maioria dos eleitores não se considera extremista nem de esquerda e tão pouco de direita… sejam estes antagónicos aquilo que deles quisermos atribuir-lhes;

* Alguns dos competidores – com largos orçamentos – porque não atingiram cinco por cento dos votos expressos, não recebem comparticipação nos gastos, tendo-os de suportar a expensas próprias ou do partido;

* O chip ideológico parece estar a mudar nalgumas regiões, particularmente no Alentejo, considerado, abusivamente, reduto de certas forças, pois os conotados com a barreira contrária, foram os segundos em todos os distritos…para confusão de certos analistas sócio culturais do sistema;

* Alguém acredita que há, em Portugal, quase meio milhão de xenófobos, de racistas, de populistas ou de extremistas da (dita) direita? De facto, parece ser mais fácil rotular do que combater as ideias; parece mais cómodo ilegalizar do que reconhecer os erros; parece dar jeito ser mais rápido em ver os efeitos do que em encontrar as causas desse fenómeno, que pode ter tanto de emergente quanto de inconsequente;

* Mais do que arietes de regime (republicano, laico e rotulado com fés de antanho), os candidatos deveriam ter sido proponentes de ideias, de valores e de critérios na conduta da política. Com efeito, foi pensoso e quase-desagradável ver um ‘vencedor’ andar às voltas solitário, nas ruas de Lisboa, podendo isso retratar o que não temos visto noutras horas de vitória, onde uns tantos se colam a quem ganha ou se esgueiram quando os seus apaniguados perdem…

= Os próximos tempos – dias, meses e anos – são de uma grande incerteza, dada a configuração da pandemia. Por isso, não podemos descrer da nossa capacidade pessoal e comunitária. As sombrias nuvens que pairam sobre as nossas cabeças precisam de ser aliviadas com serenidade, determinação e unidade. Aos ‘velhos do restelo’ – e são tantos e tão espalhados por aí – talvez lhes reste ficarem nas bordas da praia a lamentarem-se sobre os sucessos alheios. Cuidemos de que possa haver mais justiça com verdade, honestidade com trabalho, competência sem resignação.

À boa maneira do cowboy do far-west do nosso imaginário infantil, que haja um John Wayne – civil, político, religioso ou eclesial – que nos aponte o caminho e diga: ‘let’s go’! Vamos, para a frente é que o caminho!...       

 

António Sílvio Couto

domingo, 24 de janeiro de 2021

Alugar cães para desconfinar

 


A notícia foi dada pelo autarca de Barcelos, que deu nota de que havia naquela cidade quem alugasse cães para permitirem que os ‘donos’ possam sair de casa, por ocasião do confinamento mais recente.

O edil deu ainda referência a que alguns dos animais davam a entender, pelo cansaço manifestado, que seriam obrigados a irem à rua mais do que uma vez por dia…

Numa avaliação desta esperteza – costuma apelidar-se de ‘saloia’, mas aqui foi praticada por minhotos – daqueles concidadãos, o autarca não deixou de estranhar a habilidade, condenando mesmo tais expedientes.

 = Aquando do confinamento do ano passado escrevi (28 de março de 2020):

«De entre as exceções à condição de emergência, em que estamos a viver, sobressai a possibilidade de levar a passear o cãozinho (ou canzarrão) à rua. Essa poderá ser uma razão ou até uma desculpa para infringir o dever de recolhimento para muitas pessoas e uma boa parte de insatisfeitos com aquilo que se está a vivenciar.

Que dizer, então, da confluência de arejamento, quando duas ou três ‘vizinhas’ (ou vizinhos) se encontram à esquina da rua e, colocando os ‘lulus’ (de estima, de companhia ou de substituição) à distância de segurança (pelo menos dois metros), se colocam na conversa – a tal treta – sustida pela trela dos seus argumentos para saírem de casa? Será esta mais uma das habilidades, à portuguesa, para tornear as regras e fazer-de-conta que está tudo normal? Quantas vezes e por quanto tempo se pode usufruir (usar ou abusar) deste regime de exceção por dia? Não andaremos a explorar os animais com os ‘nossos’ descuidos e subterfúgios de ocasião?».

 = Efetivamente somos suficientemente ‘inventivos’ para levarmos a bom termo os nossos intentos, desde os básicos até aos mais complexos, procurando qualquer nesga da regra (lei ou normativa) para por aí exprimirmos a nossa habilidade mais subtil. Isto será uma forma de estar e/ou de desenrascar-se? Será o modo de ser ou uma forma de estar?

Por muito ou pouco cumpridores que nos consideremos, parece que há um quê de rebeldia em cada um de nós…português/portuguesa: subverter a lei emerge com muita facilidade ou com mais regularidade do que seria desejável. É de razoável riqueza o nosso léxico, manifestando este património imaterial da cultura popular. Vejamos algumas dessas expressões mais significativas: esperteza saloia, chico-espertismo, desenrascanço, espírito de improviso, saber safar-se, viver de expedientes…realçando mais as nossas capacidades encobertas do que as possibilidades explícitas dos outros, sejam simples cidadãos ou mesmo autoridades.

Qual o alcance de cada uma destas ‘expressões’ ou palavras? Que revelam elas da nossa identidade pessoal ou nacional? Que manifesta isto da nossa esperteza individual sem menosprezar a inteligência alheia? Até que ponto sabemos tornear as questões sem deixar (quase) nada que nos possa comprometer?

‘Esperteza saloia’ tem a ver com a necessidade de defesa de uns tantos, os saloios – cultivadores da terra e sem grande instrução – perante os outros (‘alfacinhas’) ; aqueles usavam de esperteza para vencer a argúcia destes…antecipando-se por habilidade, isto é, enganando antes de virem a ser enganados. O pior é quando os ‘saloios’ (no sentido pejorativo) se multiplicam noutras latitudes…  

‘Chico-espertismo’ configura idêntica capacidade de não deixar a descoberto as suas (naturais) debilidades, enfatizando mais aquilo que lhe dá proveito do que é (possível) prejuízo… Segundo alguns momentos de dificuldade, o chico-esperto tenta subverter o que outros aceitam como regra, que ele faz exceção para ser a ‘sua’ regra…até que se venha a descobrir.

 Desenrascanço/improviso/safar-se – coisas em que o português médio é mais ou menos perito, sobrevoando sobre a concorrência e saindo-se bem sem para isso estar preparado. Dizem que somos bons a safar-nos e nem sempre quando temos de prestar contas, isto é, se as coisas estão mais programadas… Isso era! Também temos capacidade de desenvolver ações previstas, mas temos, por excelência, uma habilidade que suplanta outros povos e até culturas… Até quando?     

 

António Sílvio Couto

sábado, 23 de janeiro de 2021

Do ‘milagre’ à insubordinação


 Em finais de abril falava-se que havia, em Portugal, um ‘milagre’ nestas coisas do ‘covid-19’. Escrevi num artigo, em 28 desse mês: ‘quem ouviu o presidente da república a falar na convocação para o 3.º ‘estado de emergência’ ter-lhe-á ficado no ouvido a referência em que ele acentuou o ‘milagre português’, naquilo que ele interpretava como a chave do (aparente) sucesso – ou melhor, no tão não-pior cenário – de combate à disseminação do ‘covid-19’ entre nós... Reportando-se aos números das vítimas do ‘covid-19’, o presidente fez-se eco, no seu discurso de 16 de abril, da forma como os portugueses foram ‘solidários e mobilizados, com disciplina, com zelo, com determinação, com coragem’, suportando fortes privações neste caminho a que tantos estrangeiros chamam ‘o milagre português’. Explicando esta expressão, o presidente considerou ainda que ‘se isto é um milagre, como lá fora dizem, então nós, povo português, somos um milagre vivo há quase nove séculos. Se isto é um milagre, o milagre chama-se Portugal’. 

Temos vivido várias fases desta pandemia...e estaremos a entrar numa 4.ª fase. Se nos anteriores momentos fomos vendo alguma responsabilidade por parte da população, nos tempos mais recentes somos confrontados com atitudes de enorme irresponsabilidade pessoal e coletiva, desde a banalização no convívio social até à falta de respeito pelo distanciamento higiene-sanitário e outras medidas mínimas neste combate do qual não se vislumbra o final.

 = Quando podemos constatar que esta epidemia é bem mais profunda e larga do que se imaginava não será minimamente sério não considerar que esta dita ‘terra de Santa Maria’ – onde Nossa Senhora se veio manifestar há mais de um século – parece estar a pagar a fatura de se ter vindo a afastar dos valores da fé cristã/católica.

Temos visto pouca – ou quase nenhuma – referência à mensagem de Nossa Senhora, em Fátima, no projeto de chamamento à conversão e à penitência. Pelo contrário, parece que estamos a propor uma visão/vivência algo light daquilo que deveria ser, assumidamente, um apelo à releitura da nossa vida – pessoal, familiar e comunitária – por estes sinais bem incisivos de Deus para connosco.

Sem reconhecermos a falência dos nossos projetos, anseios e realizações de âmbito tão mundano como que será difícil de captarmos a onda de comunicação de Deus connosco. Nas leituras e nos entendimentos de tantos dos nossos responsáveis – até eclesiais – esta provação do coronavírus – tenha as mutações que lhe quisermos atribuir – ainda dá a impressão de que somos capazes de enfrentar, só pelos nossos meiso, esta onda de morte que se tem espalhado pela face da Terra.

Tenho para comigo que não levamos ainda Deus a sério, pois queremos responder com armas humanas àquilo que pode muito bem ser algo da mensagem divina, num mundo tão fora de Deus e da sua Lei. Reparemos na incongruência de tantos – senão de todos – em tentarmos salvar vidas nos serviços hospitalares, mas discute-se, aprova-se – e já só falta promulgar – a possibilidade matar de forma legal através a eutanásia. Não será este mais um sinal da esquizofrenia cultural em que entramos, sem arrepiarmos caminho contra a Lei de Deus? A quem interessa fascinar com os avanços da ciência e da medicina em particular, se não for para fazer da vida o maior valor, sobre o qual assentam os outros direitos e deveres?

= Uma das provas de que somos excessivamente egoístas e rebeldes é essa referência à falta de cumprimento das regras de confinamento de todos, tentando suster a onda de contaminação crescente com os resultados cada vez mais catastróficos e dramáticos pagos com vida, com contagiados e com internados nos serviços de saúde ultra-saturados. Porque será que não obedecemos a quem manda? Teremos nós conhecimentos e dados para sermos tão contumazmente desobedientes? A quem interessa salvar a economia senão houver quem dela usufrua? Quem corre os riscos para nos facultarem os bens essenciais não merece mais respeito do que o pagamento dos serviços prestados?    

Afinal, o ‘milagre’ de abril está a tornar-se drama onze meses depois… Precisamos de ser mais cidadãos educados pelo bem-estar mas também pela conformidade aos valores humanitários, onde Deus é sujeito da nossa vida e não mera nota de religiosidade…

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Distribuindo o livrinho…

 


Teve algum sinal de revivalismo vermos um candidato às eleições presidenciais andar a distribuir livrinhos – tão pequenos e de bolso, quanto desejável de larga mensagem e talvez de expansão – nas sessões de propaganda… De cartilha/catecismo alçado para não deixar fugir tanto daquilo que escapa ao mínimo denominador comum.

Quem não se lembrará de idêntica atitude de outros ‘educadores’ do povo: Mao Tsé-Tung, Che Guevara, Fidel Castro, Hugo Chavez… catequizadores de um livro só…por acaso todos mentores de ideologia ou de ‘religião’ social uniformizada.

O ‘nosso’ mentor/educador/ideólogo distribuía exemplares da Constituição da República Portuguesa, não se sabendo qual a versão, se a inicial de 1976 – ultra-ideologizada – se alguma das outras oito revisões ‘corrigidas’, simplificadas ou mais limpas do teor dialeto-marxista…que quem o apoia nunca aprovou!

Quem terá já lido – sem ser para prestar provas ou por necessidade de consulta ocasional – toda a dita Constituição? Nela podemos ver, encontrar e compreender diversas camadas de mentalização coletivista, que nela desejaram verter os mais ‘avançados’ projetos…porque se adiantaram aos menos politizados. Por isso, vir de Constituição em punho como que me soa a um novo processo revolucionário em curso recauchutado. Para esse peditório já demos há muito tempo…

= No contexto europeu e até do mundo ocidental o caso português é de digno de ser estudado. O que explica um certo recrudescimento de teorias marxistas – e até trotskistas – na nossa sociedade? Quando, em tantos países, as fações dialético-marxistas hibernaram, por cá pareceram reflorescer dumas cinzas alimentadas com luta e ignorância? Em certas culturas emergiram tentáculos com nova tonalidade, por cá renasceram conjunturas que fizeram questionar – na minha leitura e/ou confusão – alguma da nossa sanidade política. Não haverá, entre nós, uma certa sobranceria de algumas forças que gostam de ganhar na rua o que não conseguem nos votos? Repare-se nos resultados das eleições autárquicas – há casos de vitórias com maioria, onde não se pronunciou sequer um terço dos inscritos. Legitimidade têm, mas credibilidade apresentarão? Com tantas autarquias-empresa, não se verifica uma ditadura de quem prende os trabalhadores pela boca, isto é, porque te pago, votas em mim ou podes perder o emprego? A quem interessa manter este ‘status quo’, de reinar sobre as condicionantes dos mais frágeis da sociedade? Não seria preferível dar ferramentas para as pessoas pensarem e decidirem por si mesmas do que ‘obrigá-las’ a estarem caladas por medo de serem elas mesmas à custa da grandeza de uns tantos manipuladores (ditos) democratas? O melhor democracia não escolherem o que nós queremos, mas saber decidir pelo que é mais importante para todos… Muito pior do que os democratas de papel são os democratas de cordel!

 = Para quem já fez a cobertura de alguma campanha e de eleições presidenciais – fi-lo em 1986 entre Mário Soares e Freitas do Amaral…na maior crispação jamais verificada em Portugal – o tipo de refrega destes dias soa a quase-brincadeira de jardim-de-infância em maré de fim-de-ano…pois as ofensas só atingem quem delas se deixa melindrar e os ataques, na maior parte das vezes, servem para encobrir a falta de ideias e, sobretudo, os argumentos de quem, mais do que ganhar, deseja não-perder…por muitos.

Desgraçado país e tão enferma nação, que se deixa cativar por quão maus concorrentes e, particularmente, por representantes de baixa índole e mais infetada proposição para o nosso futuro.

- Não será de livrinho em punho que criaremos riqueza nem sequer competição, pois quem se cristalizou naquela fase da Constituição pouco terá a dar, hoje.

- Não será de livrinho em destaque que iremos convencer quem quer que seja para vir investir num país onde quem deseja ser empresário é combatido por forças que só desfazem e destroem…a iniciativa privada.

- Não será de livrinho em consulta que iremos fascinar os minimamente ousados em criar emprego, pois se podem tornar, na curva seguinte, inimigos da ‘classe trabalhadora’…    

    

António Sílvio Couto

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Densas sombras e ténues luzes

 


O paradoxal momento que estamos a viver desta pandemia pode – ou será que deve? – provocar em nós (pessoal, familiar ou socialmente) uma leitura de contrastes: densas e profundas sombras/trevas cobrem o nosso ‘eu’ coletivo, enquanto ténues e frágeis luzes parecem despontar…

Numa quase ousadia, cito um documento da Igreja católica de meados do século passado, mudando a tónica para a enquadrar nas emoções dos nossos dias: «as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história» (Vaticano II, Constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ sobre a Igreja no mundo atual, n.º 1).

Retiramos no documento citado as referências às ‘alegrias e esperanças’ e deixamos dele a alusão às ‘tristezas e angústias’ deste tempo de provação que estamos a viver…com razoável intensidade. De facto, esta comunhão nas angústias e nas tristezas é, hoje, maior do que nunca. Vejamos, então, algumas sombras, tentando ainda descortinar possíveis luzes de esperança.

 * Sinais de densas trevas/sombras: temos no nosso país mais de dez mil infetados por dia de ‘covid-19’, centena e meia de mortos/média diária na última semana; somos o país do mundo com mais mortos por cem mil habitantes; temos o sistema de saúde em colapso… Os profissionais de saúde estão exaustos, os hospitais saturados…já não se pode estar doente (seja de que maleita for) nem ter qualquer acidente, a capacidade de absorção entrou em rutura… Nos lares de idosos rebentou a bolha – onde ela ainda existia – e utentes, funcionários e outros colaboradores estão infetados, em risco ou assintomáticos, criando um ambiente de suspeita, de medo ou mesmo de ansiedade… Pela segunda vez, desde março passado, o país foi colocado em ‘estado de confinamento’ – embora se notem bastante pouco os efeitos, as atitudes e nos comportamentos – social, económico e sanitário… As exceções – mais de cinquenta – permitem que uma boa parte da população tente tornear os constrangimentos, colocando, no entanto, tudo e todos em risco, senão mesmo em perigo crescente e descontrolado… À boleia da pretensa ‘atividade política’ – em tempo daquilo que desejavam que fosse a tal companha eleitoral – vemos as maiores tropelias, os erros agravados e até as insinuações sobre os outros, sem repararem antes nos seus…

Quando vamos parar para aceitarmos que caminhamos para o atoleiro sem regresso? Para quando vermos responsabilidade em cumprir e fazer respeitar os outros, sem andarmo-nos a ludibriar capciosamente?

Dizem e com razão: quem viveu na pele ou naqueles que lhe são próximos os efeitos deste fatídico vírus, que as pessoas mudam. Não poderemos aprender sem precisarmos de sentir as consequências das nossas más ou negligentes opções?

 * Ténues luzes de esperança – num tempo quase recorde surgiram diversas vacinas…depois de alguma incerteza sobre as etapas, as prioridades ou mesmo as quantidades disponíveis, já se começam a vislumbrar alguns efeitos da vacinação…com três semanas de processo dá a impressão que ténues luzes se acendem, no horizonte ou ao fundo do tal túnel. Os múltiplos cuidados recomendados deveriam ser mais bem aceites e/ou assumidos. Se em muitos casos tem havido excesso nas exigências, noutros é fundamental que as pessoas se não sintam tão invulneráveis, pois um leve sopro – o termo é literal – ou descuido poder-nos-á ser fatal.

Em todo isto – já decorreram dez longos e penosos meses – tenho sentido muito pouca referência a Deus. Noutras épocas sentir-se-ia isto como um castigo divino. Agora qual a razão para não colocarmos a dimensão divina, que nos veio (vem) corrigir e até unir na fragilização? Não será que a nossa prosápia humanista não nos deixa ver a humilhação humanitária? Não somos donos de nada, tão pouco de ninguém e nem de nós mesmos.

Rezamos neste domingo: ‘concedei a paz aos nossos dias’… Que paz? Dada por Quem? Em quantos dias?     

 

António Sílvio Couto