Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sábado, 16 de janeiro de 2021

Bâton vermelho…sob a máscara

 


Quando o uso da máscara uniformizava e favorecia tanta gente da nossa praça, eis que foi introduzido um tema algo esquizofrénico, tanto na forma como no conteúdo: o bâton vermelho.

Efetivamente o uso da máscara como que tornou tantas pessoas menos feias, pois as feições escondidas, de algum modo fizeram com que não se visse o que destoava, inclusive fez com que certos adornos – essencialmente – femininos não precisassem de ser cuidados, poupando tempo e dinheiro. Por isso, uma tirada – dizem que foi algo ofensiva – de um candidato presidencial sobre uma outra concorrente fez com que a máscara caísse e o tal bâton vermelho emergisse como fator de tema político-cultural.

 - As reações ao ‘caso’ tornou-se um fenómeno de e nas redes sociais e vimos tanta gente que devia ter juízo – tem idade, devia ter perfil, dado o lugar que ocupa e as pretensões que auferem – a sair do armário da inconveniência, tornando o episódio um facto político de relevo. Triste país que em enguiça com expressões inflamadas e inoportunas de campanha eleitoral… Quem as não tem? Pobre nação que se rege por estes mentores de segunda, que não passarão de figurantes da história em rodapé. Miserável estado que patrocina tais intervenientes…pois os votos que auferirem serão bastante bem pagos…se tiverem cinco por cento dos votos expressos!

 - Dirá alguém com o mínimo de senso: os dois intérpretes merecem-se. O pior de tudo isto são os alardes proferidos, as conjeturas pronunciadas e mesmo os ódios latentes espoletados.

Fique claro: do pronunciador não comungo da maior parte das ideias, tão pouco das invetivas da pronunciada, mas sobretudo fico preocupado com a baixeza – de nível e de categoria – intelectual da maioria dos contendores. Se é deste modo que querem um futuro saudável para o nosso país, então, mais vale fechar para saldos e venha construir quem seja capaz de saber mandar e de ser obedecido. Não será uma revelação de falta de ideias, este ‘fait divers’ de faz-de-conta à portuguesa? Ou será esta uma forma de recriarem, na rua, uma nova forma de revista comediante?

 - Que razão há para tais quezílias, se estamos num estado de pandemia catastrófico? Os milhares de mortos e de infetados, as centenas de internados e de confinados não merecem mais respeito e consideração? Quem cuida da nossa saúde merecerá ser exposto e explorado como alguns têm pretendido?

Por favor coloquem corretamente as máscaras e deixem-se de brincadeiras quase-infantis, pois o ‘show must go on’!

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Está a caducar!

 


Escutei, de repente, esta frase-chavão num diálogo de telenovela: está a caducar!... numa explicação sobre o interlocutor, que estaria a dizer coisas que não batiam bem com aquilo que era mais acertado, ao momento e muito menos à conveniência.

‘Caducar’ poderá ser uma forma verbal que nos vem do substantivo ‘caduco’ – ‘caducus’, ‘que cai’ – podendo significar ‘cair de velho e falho de forças’, ‘ir acabar, declinar’, ‘ser anulado’, ‘deixar de estar em vigor’, ‘prescrever’, ‘terminar o prazo de validade’, ‘tornar-se, mentalmente, perturbado por efeito do envelhecimento’…

Vejamos situações/sinais/resultados deste efeito tão visível, quão manifestável em consequências:

 * Está a caducar – é isso que me ocorre referir ao ouvir tantas das intervenções dos ‘nossos’ concorrentes às próximas eleições presidenciais. Refiro-me às ‘intervenções’ também de muitos dos (pretensos) apoiantes. Com efeito, certos argumentos – feitos de casos e casinhos, de episódios e façanhas, de tiradas e declarações – estão fora do tempo e, sobretudo, desarticulados no desenrolar da história: o guião foi um tanto mal escrito e a suscitada correção foi pior do que o original. Desenterrar ‘coisas’ do passado resolverá problemas do futuro? Não estará a caducar quem, contestando tanto a União Europeia, dela se serve – temos dois candidatos nas presidenciais – e aufere aí bons proveitos? Não será indício de pré-caducação esse de propor a ilegalização infetada de partidos, quando o que se deveria era combater as ideias, sem respaldo de constitucionalidades prévias?   

* Está a caducar – eis como interpreto o descalabro da nossa frágil e insignificante economia, feita mais de subsídios do que de investimentos. Não será caduco querer intentar soluções no século XXI que faliram já no século XIX? A ideologia dialético-marxista, que fez mergulhar na desgraça tantos povos e culturas, como poderá servir de aliciante na atualidade? A caduca ‘luta de classes’ não serviu para aprenderem que as ‘classes’ só servem para favorecer oportunistas e camuflados de democratas, hoje como ontem? Não será sintoma de quase-caducação esse desejo de querer acabar com os ricos em vez de combater, de facto, os pobres nas suas mais variadas, sensíveis e ignoradas manifestações?

 * Está a caducar – serve-me de ponto de referência para certas discussões verbais em temas desportivos, na medida em que se gasta tanto tempo a deslindar conjeturas, quando os participantes nunca foram árbitros de nada, nem dos seus fantasmas trazidos à luz da incompetência. O futebol falado é algo atroz na complexidade dos fenómenos sociais mais vulgares. Quantas horas em discussão e o problema foi resolvido com singelas palavras de conciliação! Certos figurões ainda não perceberam que, nos botões do comando televisivo, há um com que se faz zapping e deixámo-los, caducamente, a vociferar para o boneco…

 * Está a caducar – poderia ser uma razoável pista de leitura para justificar algumas das atitudes, das vivências e das desculpas na prática religiosa, tanto cristã/católica, como de outra qualquer expressão de fé. De facto, há trejeitos religiosos que não passam de artefactos de antanho – rituais, rotineiros ou quase-humanos – mas que deixam algo a desejar sobre as implicações da fé na vida e mesmo no compromisso sociopolítico. É fundamental e simples ver, crer e viver, dando testemunho em cada dia. Não podemos deixar que a nossa fé seja confinada aos desígnios humanos simplórios e fundamentalistas. Por onde anda, então, a ousadia da fé e a audácia da confiança? Bastará quedar-nos pelas exceções para nos empenharmos, efetiva e afetivamente, nas soluções?  

 * Está a caducar essa época onde os valores tinham significado e os princípios marcavam a vida de todos. Seremos, então, capazes de não deixar crescer a decrepitude, mesmo que os eflúvios do ‘covid-19’ possam turbar tantas mentes? Por onde têm andado os ‘intelectuais’ da nossa praça, quando os resultados da pandemia nos obrigam a entrar num novo confinamento, mais duro e complexo? Os sabedores da matéria, afinal, não parecerão mais charlatães do que peritos convictos, claros e convincentes? Estarei, afinal, a caducar?

 

António Sílvio Couto


terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Fado – fenómeno artístico de onde?


 Com o desaparecimento recente de mais um fadista de renome e a apresentação de peças de fado no concerto de abertura da presidência portuguesa semestral da UE, senti que poderia dar algum espaço à reflexão sobre o tema do fado.

Desde logo uma breve referência ao título deste texto: a palavra ‘fado’ explicitada no resto da frase, usando as palavras como iniciais do termo – fenómeno artístico de onde…com a interrogação. São estes vários itens que iremos tentar abordar.

Qual a origem da palavra ‘fado’? Há quem a considere como proveniente do latim – ‘fatum’, destino; outros consideram que poderá ainda ter origem na palavra escandinava ‘fata’, que significaria ‘vestir’ numa alusão ao termo francês ‘fatiste’, poeta… Diversas procedências para tentar falar de uma forma de – ‘fenómeno’ como se diz no título deste texto – exprimir algo com (possível) dimensão ‘artística’…segundo uma roupagem mais ou menos poética!

 = Numa espécie de historização do fado poder-se-á dizer que este teve início por volta de 1840, nas ruas de Lisboa, um tanto ligado às lides marítimas, sendo o ‘fado do marinheiro’ como que o protótipo de quantos vieram depois dele…sem esquecer o ambiente das tabernas e outros espaços de diversão, na maior parte dos casos, noturna. Associado a este ‘género’ musical – onde a guitarra se destaca – apareceram os fadistas com um traje e linguajar próprio…pouco convencional e um tanto quezilento. Foi, sobretudo na primeira metade do século vinte, que o fado foi adquirindo uma forma caraterística, com a rádio, o teatro e o cinema a fazerem dele promoção como cantiga para o grande público, surgindo a figura do fadista como artista. Das ruas e vielas, o fado passou a ter espaço em lugares apropriados – as casas de fado – com adereços que o farão algo mais reconhecido como canção muito típica da capital…estendendo a sua influência à volta. Os fadistas trajam de negro, como que se fossem reflexo do ambiente da noite, com temas de sabor assaz sentimental, à mistura com o sofrimento, a saudade, a desgraça…com críticas à sociedade e algum toque de melancolia… Não podemos esquecer o regime que vigorava no nosso país: os temas, as letras e tudo o resto estava sob a alçada da censura, ficando fora da temática o que falasse de problemas sociais ou políticos…

Não fazemos, propositadamente, uma lista de fadistas, mas poderemos, mesmo assim, destacar Amália Rodrigues, expoente no campo internacional do fado, tendo ela – e outros na sua senda – cantado letras de autores da nossa literatura e, desta forma, tentando subverter o controlo do regime. Em certos meios ‘artísticos’ – mais contestatários e politizados – isso terá contribuído para conotar um tanto fado com o regime então em vigor… Aliás o ‘fado’ teria feito como que parte do tríptico sustentador do regime – Fátima-futebol-fado…

Para além do fado com base em Lisboa – nos seus arredores há uma nítida veneração e imitação daquele estilo de cantar, de tocar e de interpretar – podemos encontrar o fado de Coimbra, mais ao jeito trovadoresco, continua a ser cantado e tocado só por homens e com o traje académico. Vivido nas ruas – repare-se no aspeto de serenata – tem os seus instrumentos ‘afinados’ pelas intenções da sua conceção e interpretação. Foi mais no seio do fado de Coimbra que apareceu alguma contestação ao regime anterior ao 25 de abril, tanto nas letras como nos seus cantores…

 = Será, então, o fado um nicho de arte mais lisboeta do que do resto do país? O reconhecimento do fado como ‘património imaterial da Humanidade’, em 2011, fez dele, de verdade, uma canção nacional? Não andará subentendido no resto do país que o fado tem sido uma colonização da capital a tudo e a todos? À semelhança das marchas-populares, não andaremos a imitar uma certa ‘cultura’ de regime exportado da capital? Perante outros fenómenos artísticos/musicais – veja-se o cante alentejano, os diversos folclores ou as bandas musicais – não será exagerado fazer do fado a expressão da música portuguesa com maior incidência popular? Mesmo que de forma incipiente e quase lateral, o fado não tem tido expressão musical na liturgia católica. Não seria de o ‘cristianizar’ mais clara e assumidamente, envolvendo-o nas expressões de fé, ao menos onde tem algum significado popular e ‘culto’?    

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Diretrizes para a proteção de menores e adultos vulneráveis

 


Com data de meados de novembro, mas tornada publica no dia um de janeiro, a Conferência Episcopal Portuguesa apresentou as diretrizes sobre a ‘Proteção de menores e adultos vulneráveis’.

O documento, num total de trinta pontos, tem: uma introdução (n. os 1 a 5); os princípios inspiradores (n. os 6 a 8); âmbito de aplicação (n. os 9 a 10); a formação dos candidatos ao ministério ordenado e à vida consagrada (n. os 11 a 12); agentes pastorais (n. os 13 a 15); atividades pastorais (n. os 16 a 22); comissões diocesanas (n. os 23 a 25); prevenção de casos de abuso (n. os 26 a 27); tratamento de casos de abuso sexual de menores e adultos vulneráveis (n. os 28 a 29); promulgação (n.º 30).

«Os Bispos portugueses desejam reiterar um renovado compromisso de fazer tudo o que esteja ao seu alcance para que os fiéis, a começar pelas crianças, adolescentes, jovens e pelos mais vulneráveis, possam encontrar na Igreja um ambiente sadio e seguro, onde o encontro com Deus, com a sua Palavra e com a sua presença viva e real na Eucaristia possam transmitir a sua graça e beleza sem quaisquer obstáculos» (n.º 3).

Traçado, de algum modo, o objetivo-geral deste documento da CEP podemos esmiuçar alguns aspetos nele contidos.

- Desde logo estas diretrizes «pretendem ser um instrumento à disposição da Igreja em Portugal para a aplicação das normas pastorais e jurídicas publicadas desde 2012» (n.º 4). Efetivamente a década decorrente entre 2010 e 2020 foram um trazer à luz do dia de tantos dos tristes casos de ‘abuso sexual de menores’. Isto foi de tal ordem que, de alguma forma, levou Bento XVI a resignar em 2013, alquebrado pelo peso de tantas situações em diversas partes do alcance católico!

- Quais os princípios inspiradores do combate a esta ‘chaga fétida’ na Igreja? Condenando a «abominável realidade do abuso sexual de menores e de adultos vulneráveis, e as terríveis consequências que esta realidade teve e continua a ter na vida das vítimas desses abusos» (n.º 6), faz-se um apelo ao testemunho de vida de quantos «exercem alguma função ou prestam a sua colaboração» na Igreja, por forma a serem promovidas «condutas que assegurem a todos um ambiente absolutamente seguro, transparente, alegre e cheio de esperança» (n.º 7). Alicerçando estas diretrizes no magistério pontifício mais recente há uma referência «à colaboração com as autoridades civis e recorrendo a especialistas qualificados de várias áreas disciplinares», propondo «a urgência de promover uma formação específica dirigida aos agentes pastorais», tendo ainda presente «a necessidade de tratar, com mecanismos eficazes... desde o momento da sua sinalização ou denúncia até à conclusão dos procedimentos canónicos, civis e pastorais previstos», sem nunca esquecer «a importância de dar prioridade à prevenção de abusos» (n.º 8), na sociedade e na Igreja.

- O âmbito de aplicação destas diretrizes são: «as dioceses, paróquias, pessoas jurídicas canónicas e demais instituições eclesiais, incluindo os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica... Todos os clérigos, religiosos/as e leigos/as consagrados/as a exercer o seu ministério e a sua atividade pastoral em território português; os leigos/as, na medida em que participem no âmbito das iniciativas ou atividades promovidas pela Igreja Católica em Portugal» (n.º 9).  

- Dá-se uma nota específica sobre os candidatos ao ministério ordenado e à vida consagrada, referindo que «devem adotar-se os meios necessários para o conhecimento aprofundado das pessoas que se apresentam como candidatas ao sacerdócio e à vida consagrada no âmbito eclesial e ter-se um cuidado particular na sua admissão aos seminários e a outras casas de formação» (n.º 11). Estamos no âmbito da prevenção, tanto na seleção como no discernimento. Talvez seja preciso ser mais exigente!

- Dado que os ‘casos’ aconteceram na designada ‘vida pastoral’, o documento tenta definir quem são os agentes pastorais e aquilo que se entende por atividades pastorais. A escolha de agentes pastorais (clérigos ou leigos) deverá ter em conta «uma análise da idoneidade dos candidatos a interagirem com menores e adultos vulneráveis» (n.º 13), sem ser descartada a possibilidade de requerer atestados civis ou certidões de registo criminal, Os tais agentes devem receber formação em como prevenir ou identificar possíveis casos, «bem como promover um ambiente sadio dentro das atividades promovidas pela Igreja» (n.º 14). Quanto às atividades pastorais, «nas quais tomem parte menores e adultos vulneráveis, tutelar a sua segurança deve ser uma prioridade de todos» (n.º 16), tanto pela prudência no como trato ou pela informação e respeito entre todos.
Depois de elencar uma série de proibições na relação entre os agentes pastorais e os menores e os adultos vulneráveis – de não castigar (corporal ou psicologicamente), de não descrimnar ou até de fotografar/filmar sem consentimento explícito dos pais ou tutores (n.º 17) – refere-se que «as atividades pastorais devem ter lugar em locais adaptados às idades e à situação dos menores e adultos vulneráveis» (n.º 18)... à vista de tudo e de todos! É ainda recomendado que «todos estes mecanismos devem respeitar a normativa canónica e civil aplicáveis, nomeadamente no que se refere ao tratamento e proteção dos dados de todos os envolvidos» (n.º 22).
- Das comissões diocesanas...à prevenção (denúncia!) de casos – «cada Bispo dote a comissão diocesana de proteção de menores e adultos vulneráveis de pessoas verdadeiramente especialistas nas várias áreas que envolvem a prevenção, formação, acompanhamento e escuta, tanto dos menores e adultos vulneráveis como dos seus responsáveis» (n.º 23). Por seu turno, sobre a pretensa prevenção, diz o documento da CEP que «a Igreja, a nível local, procure estabelecer parcerias em colaboração com outras instituições, no âmbito da educação, da assistência social e da cultura de modo a fomentar, em toda a sociedade, uma consciencialização da necessidade de prevenir comportamentos de risco no que se refere à proteção de menores e adultos vulneráveis» (n.º 27).
- Como resolver/tratar os casos das vítimas de abusos? Diz-se: «todos os membros da Igreja, [devem estar] disponíveis para escutar, acompanhar e garantir uma adequada assistência médica, espiritual e social às vítimas dos abusos e aos seus familiares, no âmbito das atividades eclesiais» (n.º 28).

Temos as orientações. Assim as saibamos ler, interpretar e cumprir dentro da justiça cristã e da misericórdia divina!

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Décadas e contraciclos…na política portuguesa

 


Não será difícil de resumir a nossa vida política nacional – depois da revolução de 25 de abril – à configuração das décadas na Presidência da República e dos contraciclos governamentais na relação entre os ocupantes do Palácio de Belém e a residência de São Bento.

Em quase cinquenta anos de ‘democracia’ tivemos quatro presidentes eleitos, em dois mandatos cada um, e o quinto parece estar prestes a iniciar o segundo mandato, após reeleição. Tirado o primeiro dos eleitos que veio da via militar, os outros têm saído dos dois maiores partidos da nossa (dita) ‘democracia’: dez anos com dois procedentes da área socialista e depois outros dois conotados com a social-democracia…à nossa maneira.  

Numa análise mais ou menos objetiva poderemos considerar que o eleitorado português tem sabido conciliar um ditado basicamente correto: ‘não colocar os ovos todos no mesmo cesto’, isto é, a cor ideológica não ser a mesma na presidência e no governo…com breves exceções assim tem acontecido.

Vejamos o quadro, excluindo o tempo de presidência do militar (1976, eleição, 1980, reeleição), os dados indicam-nos (sobretudo tendo em conta o início do mandato):

* Mário Soares, eleito a primeira vez em 1986, era primeiro-ministro Cavaco Silva, que ocupava o posto também à data da reeleição, em 1991;

* Jorge Sampaio, escolhido a primeira vez em 1996, tinha, em São Bento, António Guterres, que continuava no lugar à data da reeleição, em 2001;

* Aníbal Cavaco Silva, eleito em 2006, era primeiro-ministro José Sócrates, que continuava em São Bento em 2011, na reeleição;

* Marcelo Rebelo de Sousa, eleito em 2016, encontrou como primeiro-ministro, António Costa e, se for reeleito no final deste mês de janeiro, continuará a tê-lo em São Bento.

Em resumo: à exceção do tempo de Jorge Sampaio-António Guterres, os presidentes eleitos tiveram como interlocutores no governo, à data das eleições, figuras de cor diversa da sua, se bem que, tanto Sampaio como Cavaco pouco tempo depois de chegarem a Belém tiveram mudanças: Sampaio com Durão Barroso, em 2002 e Cavaco com Passos Coelho, em 2011…mas sempre em tempo de segundo mandato.

 = Por entre tantas e tão díspares situações socioeconómicas, politico-financeiras, vivências culturais e históricas – neste tempo decorrido tivemos: a adesão à CEE, em 1986; a queda do muro de Berlim, em 1989; a independência de Timor-Leste, em 1999; a entrega de Macau à China, em 2001; o europeu de futebol, em Portugal, em 2004; a crise do sub-prime, em 2007 e vinda da troika para recuperar o país endividado, de 2011 a 2014; a solução da geringonça no governo, em 2015; a vitória no europeu de futebol, em 2016; os fogos florestais que mataram dezenas de pessoas, em 2017… e batemos de frente com a pandemia do ‘covid-19’, em 2020…

Seremos, como dizia o tal general romano sobre este povo nas franjas da Europa: um povo que não sabe nem se deixa governar? Não teremos sabido menos valorizar o que somos e mais o que de nos dizemos de mal? Depois das grandes figuras da política nacional – de que os Presidentes da República e os primeiros-ministros podem ser exemplo pela positiva – haverá, nas gerações mais jovens, quem deseje servir e não meramente servir-se da vida politica? A avaliarmos pelos cinco presidentes e os vinte e dois governos constitucionais, em democracia, não teremos vitalidade suficiente para termos futuro? Os derrotistas e os cobardes terão ainda lugar?

 = Deixo uma citação de um documento recente da Conferência Episcopal Portuguesa: «Sem a escuta atenta dos jovens, sem a sua visão da Igreja e do mundo, não haverá adequada renovação e conversão pastoral [acrescento: política]. O domínio do digital dá-lhes uma forma nova de ver a realidade. Além disso, são peritos na abertura à novidade, ao diferente, às pessoas e aos povos. Com eles a fraternidade é mais possível. Nasceram já numa cultura de grandes preocupações ambientais e defesa da natureza» – Desafios pastorais da pandemia à Igreja em Portugal, n.º 50.   

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Conferência Episcopal apresenta ‘guia’ com 53 orientações


 Com data de meados de novembro, mas só tornada publica no dia um de janeiro, a Conferência Episcopal Portuguesa exarou uma reflexão sobre os ‘Desafios pastorais da pandemia à Igreja em Portugal’…num total de 53 pontos.

Eis um breve sumário do texto:

- Cap. I – a Igreja e a pandemia; introdução (n. os 1 a 3); uma Terra em agonia (n. os 4 e 5);

- Cap. II – desafios pastorais: introdução (n. os 6 a 9); a solidão (n. os 10 a 12); a inclusão e a solidariedade

(n. os 13 a 14); a Igreja doméstica (n. os 15 a 18); sacerdotes, profetas e reis (n. os 19 a 20); as relações (n. os 21 a 22); a vida comunitária (n. os 23 a 25);

- Cap. III – um novo anúncio do Evangelho: introdução (n. os 26 a 28); construir a fraternidade universal (n. os 29 a 30); comunicar nos ambientes digitais (n. os 31 a 32); o primado da Palavra (n. os 33 a 34); celebrar é evangelizar (n. os 35 a 36); novos desafios de serviço e missão (n. os 37 a 40); partir das periferias (n. os 41 a 43);

- Cap. IV – a paróquia comunidade sinodal: introdução (n.º 44); dois ou mais (n. os 45 a 46); paróquia, célula da ‘Igreja em saída’ (n.º 47); paróquia, ‘casa do povo de Deus’ (n.º 48);

- Cap. V – olhar o futuro (n. os 49 a 53).

 = Neste longo tempo de pandemia, a Igreja católica, em Portugal, através da Conferência Episcopal, foi tentando orientar os seus fiéis (leigos, padres e diáconos e religiosos) publicando orientações. Depois do cardápio de (72) regras a 8 de maio, após a reunião plenária de junho, a CEP publicou uma nota sobre ‘Recomeçar e reconstruir – reflexão da CEP sobre a sociedade portuguesa a reconstruir depois da pandemia covid-19’, temos estes ‘desafios pastorais’.

Respigamos alguns aspetos deste documento, tentando perscrutar quais as orientações a serem seguidas…nos sublinhados que colocamos em cada número desta reflexão:

1. A Igreja em Portugal, através dos seus bispos, sente-se unida a quantos foram diretamente atingidos pela pandemia e sofrem...Partilha, igualmente, a dor das famílias que perderam os seus entes queridos.
2. A Igreja quer manifestar reconhecimento e gratidão a todos os que mais de perto têm tido a missão de conduzir o país, mesmo com decisões difíceis.
3. O primeiro desafio que se coloca à Igreja e ao mundo é saber “habitar este silêncio”.
4. Olhando a natureza doente, podemos mesmo perguntar: “onde foi parar o ser humano?
5. Não é possível falar em proteção ambiental sem que esta envolva também a proteção do ser humano.
6. O cuidado para com a pessoa doente implica igualmente restaurar e curar a vida espiritual e suscitar esperança.
7. Quais as consequências para a qualidade do serviço de saúde público e privado?
8. As questões levantadas por esta pandemia (...) devem ser ocasião para provocar uma mudança de mentalidade e uma reviravolta cultural.
9. Não se pode abandonar na solidão quem está nos momentos mais exigentes e decisivos da vida.
10. Devemos isolar de nós o vírus e não o idoso, tornando-o desumanamente solitário.
11, O lugar ideal para vencer a solidão é a família.
12. As comunidades cristãs devem ser estimuladoras de uma cultura de proximidade, organizada e proativa, que anime os sós.
13. Com a pandemia arriscamo-nos a deixar para trás faixas da população que já eram frágeis e que viram agravar a sua situação.
14. Só uma sociedade com alma pode ser inclusiva, solidária e justa.

15. Se na paróquia é necessário haver um lugar de oração, é também importante valorizar formas concretas de exercer a diakonia ou o serviço da evangelização.
16. A primeira catequese [talvez] seja a que é feita em casa, pelos pais, avós, tios, irmãos. Temos a oração da Eucaristia, mas há também a oração da manhã, da noite, antes das refeições e o terço, entre outras.
17. Para viver, a Igreja tem necessidade da Igreja doméstica, pois esta é a chave da transmissão da fé.
18. Precisamos de passar de uma pastoral familiar de eventos para uma pastoral de processos. (...) Precisamos de uma pastoral “com” as famílias.
19. São inúmeras as circunstâncias da vida em que os leigos podem exercer o sacerdócio comum.
20. É bom voltar à igreja e redescobrir a preciosidade da Eucaristia, da comunidade cristã, do serviço dos sacerdotes.
21. O amor vence a tentação do “confinamento em si mesmo”, pois tem o poder de ensinar como “se vive o outro”.
22. A Igreja é chamada a viver em comunhão com todos.
23. Muitos cristãos tendem a gerir a sua vida espiritual de forma cada vez mais privada.
24. A comunhão fraterna “atraía a atenção” por simpatia e não pelo proselitismo.
25. O campo da missão alargou-se, requer pessoas com paixão comunitária e estilo missionário.

26. O anúncio do Evangelho pede aos cristãos a coragem de habitar “novos areópagos”.
27. O primeiro anúncio precisa de uma linguagem simples, compreensível e direta que conte como Deus é Amor e ama cada um.
28. Evangelizar é [saber] como anunciar o Evangelho (...) dentro da mesma cultura.
29. Haverá melhor modo de apontar o futuro [sobre a fraternidade e a amizade social], em tempos de crise planetária?
30. A palavra “todos” começou a usar-se mais no nosso léxico, como sinónimo de humanidade inteira, sonho de percursos comuns, de esforços, consensos e soluções globais.
31. Os meios digitais podem tornar o virtual “quase real” e servir para aproximar, partilhar, construir laços e até “tocar” o coração do irmão.
32. Os meios digitais são um contributo pastoral [catequético] subsidiário.
33. Explicar o Evangelho é falar de Cristo como contínua surpresa que convém suscitar.
34. No primado da Palavra, é relevante a formação, a comunicação, a linguagem.
35. A liturgia pode e deve ser evangelizadora, desempenhando um papel de iniciação para muitos que, sem formação, participam nas celebrações em momentos especiais da existência humana.
36. A celebração da liturgia comunitária é uma experiência única numa sociedade onde prevalece o egoísmo e o individualismo.

37. Todos os serviços e ministérios na Igreja, tanto os existentes como os que possam ser criados, devem estar impregnados por um profundo dinamismo missionário.
38. Saber acolher é uma arte que evangeliza (...) Um serviço de acolhimento e integração na comunidade que deve ser retomado e alargado a outros momentos, para além da Eucaristia.
39. No âmbito do novo anúncio do Evangelho, adquire especial destaque pastoral o serviço da comunicação....nas redes sociais e no uso dos meios digitais...pelo diálogo com a sociedade civil e instituições diversas.
41. Se se trata de recomeçar, que seja sempre, como no Evangelho, a partir dos últimos.
42. Importa é que as pessoas sejam o centro e o amor o betume que une a missão comum (...) Como vamos criar uma cultura de proximidade e de novas vizinhanças?
43. Que se iniciem percursos sinodais de escuta prolongada, autênticos laboratórios de reflexão em ordem a uma “nova etapa da evangelização”.
44. Numa paróquia que seja verdadeira comunidade, não deve entrar a disputa, a discórdia, os interesses pessoais, os desejos de afirmação ou poder; não deve haver autoritarismos, críticas, invejas, ciúmes; o que se faz deve ser direcionado a todos, deve haver comunhão na diversidade.
45. A sinodalidade exige a humildade de “ir lado a lado”, com o Mestre em companhia. Evangelizar numa paróquia sinodal passa por “ir dois a dois”!
46. Na sinodalidade, vale mais o menos perfeito em unidade que o mais perfeito em desunião.
47. Passar de uma pastoral de manutenção a uma pastoral missionária é uma conversão que vai durar o seu tempo.
48. Descrevendo a comunidade como Igreja “que saiba acolher com sentimentos maternos, mostre ternura com todos, saiba olhar para o futuro com esperança, cultive a memória de povo de Deus”.
49. A mudança está sempre no ADN do jovem.
50. Sem a escuta atenta dos jovens, sem a sua visão da Igreja e do mundo, não haverá adequada renovação e conversão pastoral.
51. Jovens, a Igreja entre nós, mais ainda pela preparação da Jornada Mundial da Juventude em Portugal em 2023, está ciente de quanto podeis ser agentes da evangelização, trazendo o vosso modo de ser, agir, pensar, servir e amar.
52. Que [Deus] nos conceda a coragem de olhar para além das chagas abertas por esta pandemia e descortinar uma aurora de esperança capaz de nos lançar decididamente numa “nova etapa da evangelização”.

53. Todos irmãos e irmãos de todos.

 = Da leitura desta reflexão da CEP recolhemos como temas mais percetíveis e questões recorrentes:

* Família como espaço, realidade e sinal…alvo de evangelização e também ela evangelizadora;

* Mudança cultural e de mentalidade – em proximidade, pelo acolhimento, vivendo em afetividade, opção pelos mais fragilizados, aprendendo um novo silêncio;  

* Que Igreja somos, que queremos ser e de que forma? Uma nova visão e enquadramento de paróquia

* Comunicação em ambientes digitais…

 

António Sílvio Couto

sábado, 2 de janeiro de 2021

Virá, de verdade, a esperança?

 


Depois da vaga de desânimo que se abateu, inapelavelmente, sobre a Humanidade pela pandemia do vírus, quando a economia quase colapsou e socialmente tivemos de estar confinados, agora as pessoas começaram a ser vacinadas contra o ‘covid-19’, ouve-se falar de esperança, num misto de anseio e de expetativa, à mistura com uma visão algo transcendente…mesmo que de forma tácita.

Mas o que é a esperança? Que cor do cardápio da paleta terá a dita esperança? Onde e como podemos viver essa tal esperança? Haverá níveis de esperança para quem tem ou não tem fé? Como se pode ou deve testemunhar a esperança, se esta for vista como virtude cristã?

= Se recorrermos às línguas clássicas – grego e latim – encontraremos os seguintes vocábulos de ‘esperança’: ‘elpis’, em grego, significa ‘atitude de quem espera ou aguarda algo’; ‘spes’ em latim, significa ‘confiar em algo positivo’… Em hebraico ‘hatikvah’ (a esperança) é o tema do hino nacional de Israel…

No contexto judaico-cristão, a esperança aponta-nos para uma perspetiva teísta, onde Deus é a origem e o termo da própria esperança. Se recorrermos às fontes bíblicas podemos encontrar 142 vezes a referência à esperança, tanto no Antigo Testamento (sobretudo nos Salmos) como no Novo Testamento com particular incidência na literatura paulina.

Atendendo ao contexto da nossa referência cultural, o conceito de ‘esperança’ tendo ainda em conta uma simbologia habitual: a âncora, que assegura a estabilidade do barco, tanto no cais como em alto-mar…Em Hb 6,18-19 encontramos referência a essa vertente simples e fundamental – ‘agarrando-nos à esperança proposta. Nessa esperança temos como que uma âncora segura e firme da alma’ – reportando a Jesus, porto inabalável.

= No ambiente algo confuso de pandemia em que temos mergulhados, será avisado trazer o tema da esperança para a dimensão pública, tanto social como política e até cultural? Não correremos o risco de nos tornarmos alvo de riso, se incluirmos a questão da esperança nas conversas e nos debates? Por que razão se fala tão pouco de esperança, será por que ela já existe ou por que não existindo nos custa colocá-la na prática do nosso dia-a-dia? Será a esperança uma miragem sem nexo nem compromisso?

Em 1 Pd 3,15 lemos: «no íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça». É significativo escutarmos, nos textos bíblicos este desafio de sermos capazes de explicar aquilo que somos e vivemos. Ora, pelos sinais que vimos, nestes meses de acentuado confinamento, talvez esta explicação ‘das razões da nossa esperança’ tenha andado um tanto arredia das palavras e das vivências da maioria dos nossos cristãos e de nós todos, como cristãos. Tantos medos e preconceitos; tantas ansiedades e precauções; tantos e tão diversos assentimentos higiene-sanitários deixaram a manifesto que a esperança foi trocada por gestos, palavras e sentimentos de culpa mais do que ousadia de fé, de fraternidade e de caridade. Deste modo a esperança virou conformidade e não virtude e muito menos forma de estar cristãmente.

Muitos dos responsáveis eclesiais e uma boa parte dos eclesiásticos obedeceram mais aos mentores político-partidários do que àquilo que deveria ser a exigência testemunhal do amor cristão. Um certo servilismo seguidista das ordens sanitárias tornaram-se mais acutilantes do que a dedicação aos outros, como lemos na vida de tantos santos e santas em maré de epidemias similares àquela que temos estado a viver. O encerramento dos templos e a escusa do preceito dominical tão generalizado foi sinal de quem acredita e se sente presença de esperança? O acentuado confinamento da maioria das atividades pastorais não revelou mais medo do que confiança, tanto em si mesmos como em Deus? O mal feito à dimensão comunitária da vivência em Igreja será recuperado da mesma forma como foi desbaratado nestes dez meses e meio de pandemia?

 

= Sugerimos, por fim, breves propostas para que a esperança, que se vislumbra no dealbar de 2021, se possa tornar algo mais do que utópico: conhecer-se a si mesmo e respeitar os outros poderá ser um bom projeto de vida; ser semeador de boas notícias e filtrador da maledicência seria uma outra nota de comportamento; viver mais em referência à verdade do que no cultivo da vaidade, tanto pessoal como social, eis um desafio a seguir…humilde e sinceramente.      

 

António Sílvio Couto