Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Exaltação da mediocridade…humana?

 

Quem navegar pelas redes sociais e afins será, normalmente, confrontado com imensas referências a animais perdidos – cães e gatos – numa lancinante dramatização para que sejam encontrados, sendo ainda contados vários episódios de ligação a pessoas e famílias. Nota-se que a escala de valores sociais e culturais está em grande mutação, com os humanos a serem preteridos aos animais, sejam de pequeno ou de grande porte e sobretudo os classificados de companhia ou considerados domésticos.

1. Não deixa de ser sintomático e revelador desta mudança cultural os espaços que ocupam os artigos para animais – desde alimentação até outras formas de higiene e de conforto – nos supermercados: nalguns casos são mais do dobro do espaço designado para artigos de crianças. Outra faceta reveladora da mutação de critérios e de valores é a forma como tantas famílias cuidam afanosamente dos seus ‘animais de estimação’, que são, tantas vezes, mais do que de companhia, parecendo ser de dedicação afetivo-emocional.

2. O que fez mudar – ou será antes transferir – a dedicação aos animais em detrimento das crianças? Que contribuiu para que isto se generalizasse? Até onde vai a consciência de que algo vai mal (ou menos bem) no comportamento dos humanos? Não será manifestamente uma confusão de valores dar nomes de pessoas a animais em contaste com certos nomes dados a pessoas que mais se adequariam a animais?

3. Quem não se recorda das reações – algumas quase irracionais de certas associações defensoras dos animais – às palavras que o Papa Francisco proferiu a 5 de janeiro de 2022 (estávamos em pleno tempo de pandemia): «Há dias, falei sobre o inverno demográfico que há atualmente: as pessoas não querem ter filhos, ou apenas um e nada mais. E muitos casais não têm filhos porque não querem, ou têm só um porque não querem outros, mas têm dois cães, dois gatos…Pois é, cães e gatos ocupam o lugar dos filhos. Sim, faz rir, entendo, mas é a realidade (...) E a Pátria que não tem filhos sofre e – como dizia alguém um pouco humoristicamente – ‘e agora quem pagará os impostos para a minha reforma, que não há filhos? Quem se ocupará de mim?’».

4. Mais este lóbi animal – associado a outros com grande poder económico e de influência cultural – está a desumanizar a nossa sociedade e a criar novos tipos de famílias, sem que a vida e a dedicação às crianças seja a prioridade. Cada vez mais se normalizou a tendência de trocar os filhos pelos simpáticos animais e já se veem situações em que as heranças são encaminhadas para os animais preferidos de pessoas mais ou menos carentes de atenção e de afeição. Também isto se faz repercutir no nosso ambiente aquilo que víamos noutras paragens. Certas posições ideológicas em favor dos animais têm de ser denunciadas como tentativas de nivelarem animais e humanos na mesma condição de dignidade. Por vezes essa é uma forma subtil de questionar a doutrina católica, veja-se a forma como reagem essas forças quando o Papa toca os seus interesses…

5. O que diz o Catecismo da Igreja Católica sobre esta temática dos animais?

* Os animais são criaturas de Deus. Deus envolve-os na sua solicitude providencial. Pelo simples facto de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória. Por isso, os homens devem estimá-los. É de lembrar com que delicadeza os santos, como São Francisco de Assis ou São Filipe de Néri, tratavam os animais (n.º 2416);

* Deus confiou os animais ao governo daquele que foi criado à Sua imagem (n.º 2417);

* É contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas. É igualmente indigno gastar com eles somas que deveriam, prioritariamente, aliviar a miséria dos homens. Pode-se amar os animais, mas não deveria desviar-se para eles o afeto só devido às pessoas (n.º 2418).

Algo vai mal, quando o relativo se torna absoluto…



António Sílvio Couto

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Abaixo-assinados – por quê e para quê?

 


Tornou-se como que recorrente numa certa fase ‘democrática’ após a revolução-de-abril esta forma de recolher a (pretensa) vontade popular: o abaixo-assinado, como forma de recolher o posicionamento das pessoas sobre um assunto, que, tanto quanto possa ser entendido como de interesse comum, tornando-se, assim, a recolha de assinaturas num modo de vincular (ou devia) quem participa…. Tempos houve que isso era feito em papel, agora é executado de modo eletrónico; naquele a falsificação de assinaturas era mais do que muita (bastava reparar na letra do processo); neste, como tem de inserir o número do cartão de cidadão parece menos suscetível de arranjinhos…

1. A razão para querer abordar este tema do assim designado ‘abaixo-assinado’ tem a ver com uma recente iniciativa – agora dita de ‘petição pública’ – quanto a um assunto e sobre pessoas que uns tantos – de uma clara fação ideológica – consideraram terem sido infringidos certos artigos da lei suscetíveis de serem crime. Desde já declaro que não gostei das afirmações dos visados na tal petição, mas descri na seriedade da mesma quando encontrei na lista publicitada sobretudo figuras, figurinhas e figurões de uma franja da sociedade que de independente de manipulações das suas ideias está suficientemente manchada de descrédito.

2. Quanto à petição em apreço surgiram já suspeitas de haver nomes falsos a serem contabilizados, até porque nesta petição contra as tais declarações não se pede o número do cartão do cidadão, mas só um email de contacto, o que, segundo certas fontes de informação, desde que o email seja válido, o nome apresentado poderá ser falso ou falsificado… Com este labéu ainda haverá quem acredite que os milhares de signatários correspondem aos que assinaram? Um email pode ser inventado na hora e inclui-lo na lista dos que participam? Não andaremos, mais uma vez, a sermos joguetes de habilidosos na arte da malfeitoria?

3. Os acontecimentos que serviram de base à criação desta ‘ação de cidadãos’ trouxeram à luz do dia – mesmo que os factos e declarações sejam do âmbito da noite – uma latente sensação de que há gente de mais a querer aproveitar-se de tudo o que possa servir para criar dissensões entre a população, em ver mais o que divide do que aquilo que une, de maquiavelicamente tudo fazer para lançar atoardas contra quem pensa de forma diferente, de incendiar a populaça, pondo-se de fora quando o fogo está descontrolado… Isto não tem conotação com direita nem esquerda, todos têm sido suficientemente maus para acusarem os outros.

4. Passados estes eflúvios extremistas, os problemas – dos bairros, das ruas ou das populações – continuarão por resolver. Voltarão a ser varridos para debaixo do tapete social e pseudo-racista as questões que criaram tais situações, mesmo que esquecendo quem sempre lá tem estado, junto das pessoas e acompanhando-as de verdade. A presença, por vezes mais discreta do que deveria ser, da Igreja não pode permitir-se ser ignorada. Em quase todos os bairros visibilizados nos acontecimentos noticiados há alguém da fé cristã – tanto católicos como protestantes – que dão ajuda à resolução de inúmeros problemas, sem disso se ver qualquer referência. Aquela freira – ao que parece de origem italiana – está, no bairro mais problemático agora, há quase duas décadas. Tantos outros religiosos e eclesiásticos dão a sua vida por essas pessoas e como que são ignorados e deixados fora da solução, quando eles conhecem as questões melhor do que outros ‘técnicos’ idos para analisar…

5. Muitos dos peticionários-subscritores são da mesma cor dos autarcas, que há décadas, governam aqueles bairros. A posição contra quem proferiu as tais palavras ofensivas dos que sofreram as represálias nos ditos bairros deixa-nos algumas perguntas: será que vai ser agora – no próximo ano temos eleições autárquicas – que vão ser resolvidos os problemas de tais bairros? Os agora ‘protestantes’ farão parte da solução ou irão continuar a reagir às questões, pondo-se de fora? Até quando continuaremos a dar votos a quem nada faz?

6. Um pouco de auto-censura da comunicação social poderia ajudar a evitar acendimentos noutras paragens!



António Sílvio Couto

sábado, 26 de outubro de 2024

Ordem e liberdade – exclusão ou equilíbrio?

 


Os mais recentes distúrbios, desacatos, convulsões ou confusões, sobretudo, na dita área metropolitana de Lisboa trouxeram à luz do dia ou surgiram na noite numa espécie de leitura sobre as questões com duas palavras – ordem e liberdade – a primeira como afirmação da autoridade e a segunda como expressão de não-interferência nas escolhas individuais.

1. Segundo um professor universitário: «a extrema-direita lida muito bem com a palavra ordem e muito mal com a palavra liberdade. A extrema-esquerda e a esquerda radical lidam muito bem com a palavra liberdade e têm muita dificuldade com a palavra ordem». Embora possa ser uma leitura extremada dos factos, estes dois termos – entendidos nas diversas vertentes, mesmo na política – como que resumem com suficiente clareza o que temos visto, escutado e até sido provocados. O mesmo catedrático considera ainda que se deve distinguir entre ordem e segurança: «se a extrema-esquerda e a esquerda liberal, a esquerda radical, têm dificuldade em lidar com isso, com a palavra ordem, do outro lado do espetro, faz-se um apogeu da palavra ordem, mas a palavra não é apenas num sinónimo de segurança, é de imposição de modelo que acaba por ser um convite a regimes mais pró-ditatoriais, mais absolutistas»…

2. Será que ordem não se coaduna com liberdade e esta não se conjuga com aquela? Quem vive uma e outra tem de o fazer na exclusão ou na complementaridade e equilíbrio? Os atores de ambas as ideias precisam de abespinharem em vez de criarem sinergias de todos com todos? Não será que, certas proclamações sobre a liberdade, não incluindo a responsabilização, podem cair na libertinagem? O recurso abusivo à ordem como veículo da autoridade não poderá resvalar para o autoritarismo, como preâmbulo da ditadura? Muitos dos fautores e mentores de cada lado dos extremos não serão filhos da ‘revolução de abril’ burguesa, onde todos têm mais direitos do que obrigações? Os extremistas de um lado e do outro – da extrema-direita e da esquerda radical – alguma vez viveram nesses espaços que agora pretendem explorar em seu proveito?

3. Daquilo que fomos vendo a ser-nos servido em exagero sobre os distúrbios pelos diversos canais de comunicação podem ter favorecido a difusão dos desacatos noutros bairros para além daquele onde houve um incidente com a morte de um cidadão, ao que parece sob a arma de um polícia. Com efeito, muitos daqueles casos em cadeia trouxeram na penumbra da noite a revelação de problemas sociais, económicos e culturais mais profundos. Mas isso não acontece só nas franjas da capital, tantos outros casos pululam por esse país fora, sem capacidade de enfrentar e, na maior parte das situações, sem solução a curto prazo: há populações atiradas para fora da normalidade pela simples razão de que os (ditos) bairros sociais quase se limitaram a amontoar pessoas, mas não as fizeram crescer na assunção das suas aspirações. Por isso, basta uma pequena faísca de descontentamento e tudo se entorna…

4. É tempo de acabar com essa obsessão e/ou preconceito de que o povo português é racista. É tempo de retirar os óculos ideológicos dos extremistas e fazer ver o que a nossa história coletiva sempre fez pelo enquadramento da diversidade de povos e culturas, línguas e origens de outras latitudes. O espírito das descobertas está-nos no sangue mais simples, pois o processo de miscigenação de antanho continua na caraterizar a nossa abertura à diferença. Alguns mais puristas não conseguem perceber que, por muito que se pretendam alardear nas suas irracionais convicções, algo lhes passa ao largo e perderão o tempo a lutarem quixotescamente contra os seus moinhos de ventos enferrujados… Sempre a história soube enquadrar quem procurou melhores condições de vida, correndo os riscos inerentes à desinstalação…

5. Por muito que certas fações tentem ofuscar o papel do cristianismo, este sempre foi um baluarte de defesa da ordem pela liberdade e da liberdade na ordem, isto é, cada um assume a suas responsabilidades pessoais e comunitárias, que é muito para além das tendências coletivistas. Quem ficar fora deste processo não fará parte da História, hoje como ontem!



António Sílvio Couto

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Respeitar ‘as últimas vontades’?

Causou alguma surpresa a publicação da iniciativa post-mortem de uma certa figura – saída essencialmente do mundo do desporto – que deixou escrito quem não queria ou quem desejava que estivesse no seu funeral. Não fosse vir de quem veio e o assunto poderia ser classificado como de bizarro. No entanto, o ruído que a noticia deixou, faz-nos refletir mais sobre o alcance do assunto do que sobre as razões subjetivas daquelas atitudes.

1.Desde logo podemos questionar: quem é alguém para dizer quais são ou serão os que irão ou não ao velório ou ao funeral? Terá isso algum interesse ou alcance que não seja uma espécie de ridículo e quase fantasioso? Será que o futuro defunto apresentará algum sinal de desacordo quanto ao incumprimento dos seus desejos? Estas vontades não revelarão uma visão algo patética da vida do sujeito e dos seus complementos? Ou será que isto não passou de mais um número do circo em que, por vezes, certas figuras querem transformar a sua vida e a dos outros?

2. De facto é na hora da morte que se manifestam muitos dos mistérios insondáveis da vida, mesmo que tal não se deseje. Por muito que se pretenda iludir ou disfarçar será, nesse momento derradeiro, que se escreverá o que somos ou como fomos. O prazo de validade dos elogios para com alguém que morre tem a duração (ou menos) das flores que colocam como enfeite em volta do esquife. Seja qual for o entendimento que se tenha da vida – esta que se vê ou a outra que não se vê de forma natural – a etapa derradeira e verdadeira será a da passagem da morte. Salvo raras exceções cada um colhe o que semeou…

3. Brevemente celebraremos – ao nível católico – duas datas complementares deste assunto que estamos a abordar: a solenidade de Todos-os-Santos e a comemoração de todos os Fiéis Defuntos. Todos sabemos da ‘cristianização’ de festas pagãs anteriores ao cristianismo. Repare-se, neste processo de neo-paganização crescente, a valorização social (e não só) do ‘halloween’ como ritual dos mortos.

A maioria das tradições de halloween teriam origem nos antigos festivais celtas chamados Samhaim, que marcavam a passagem de ano e a chegada do inverno. Para os celtas, o início do inverno representava a aproximação entre este mundo e ‘mundo’ onde vivem os mortos. Os celtas acreditavam que no início do inverno os mortos regressavam para visitar as suas casas e que assombrações surgiam para amaldiçoar os seus animais e colheitas. Os símbolos que vemos recuperados hoje para viver o halloween eram formas utilizadas pelos celtas para afastar esses maus espíritos.

De entre as várias tonalidades para ‘celebrar’ o Halloween realçamos uma, com origem na Grã-Bretanha e que foi popularizada nos Estados Unidos na década de cinquenta, sobretudo através do cinema: aquela em que crianças vão de porta-em-porta dizendo: em inglês trick or treat (doce ou travessura). Caso a pessoa não dê algum brinde como doces ou dinheiro, as crianças fazem alguma travessura na sua casa.

Esta ‘tradição’ do halloween tem, no nosso país, expressão através do ‘pão-por-Deus’ também vivenciado nesta época do ano.

4. Ao nível cristão – e católico em especial – houve uma resposta a esta tendência que hoje está mais visível que noutras épocas. Recordemos que a ‘solenidade de Todos os Santos’ vem do século IV. Em Antioquia, celebrava-se uma festa por todos os mártires no primeiro domingo depois de Pentecostes. A celebração foi introduzida em Roma, na mesma data, no século VI, e cem anos depois era fixada no dia 13 de maio pelo Papa Bonifácio IV, em concomitância com o dia da dedicação do “Panteon” dos deuses romanos a Nossa Senhora e a todos os mártires. No ano de 835, essa celebração foi transferida pelo Papa Gregório IV para o primeiro dia de novembro.

5. A comemoração dos Fiéis Defuntos – a 2 de novembro – é uma complementaridade para com os cristãos/católicos que morreram na comunhão da fé em Igreja. Lembrá-los é gratidão e oração…



António Sílvio Couto

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Educação não-ideológica?


Em reação ao discurso do líder de um partido no final do congresso, o membro de um outro partido teve estas declarações: «para quem quer tirar amarras ideológicas, é profundamente ideológico ele próprio, quer do ponto de vista do que aparentemente se pretende fazer na disciplina de cidadania, mas também muito ideológico quando quer retomar o financiamento aos privados». Quem disse isto foi a ariete do partido que combateu – num outro governo há relativo pouco tempo – tudo quanto cheira-se a setor privado, conseguindo em muitas situações criar o caos na sobrevivência de bastantes estabelecimentos não-estatais de ensino/educação. A balbúrdia gerada foi, ao tempo, acompanhada pela execução de um programa de ‘cidadania’, esse sim bem ideológico de género e de feitio.

1. O que é e em que consiste a tal disciplina sobre a cidadania? Que âmbitos quer atingir? Qual a razão para ser proposta (ou será imposta)? «A disciplina de Cidadania e Desenvolvimento visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelas outras, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo, tendo como referência os valores dos direitos humanos. Os temas a lecionar no âmbito da Cidadania e Desenvolvimento organizam-se em três grupos, sendo o primeiro obrigatório para todos os níveis de escolaridade e compreendendo matérias como direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental e saúde. A disciplina aborda ainda temas como prevenção da violência, sexualidade, literacia e educação rodoviária».

2. Efetivamente nos tempos que correm vivemos num combate bem menos surdo do que parece pela imposição de certos sistemas de vida – pensamento e ética – onde se digladiam formas quase contraditórias de estar em sociedade e na criação de comportamentos: desde o ano letivo de 2017/2018 que tem vindo a ser implementada essa tal disciplina designada ‘cidadania e desenvolvimento’. Os items incluídos são diversos e, nalguns casos, podem ser controversos na forma e no conteúdo, mas grosso modo fica a sensação de que quem dirige as matérias – estado, governo ou docentes – pode entrar em conflito com os valores e critérios ético/morais de quem seja educando ou, na alusão mais profunda da palavra ‘aluno’, aquele é ‘iluminado ou alimentado’ com tais ensinos...

3. A questão essencial continua a ser: quem é que educa – a família ou a escola? Para muitos a escola deverá limitar-se a ministrar conhecimentos, logo ensina; enquanto a educação é tarefa da família e esta pode e deve ter critérios e valores que deseja passar para aqueles que gera, alimenta e cria. Se há famílias que exercem e vivem o seu papel de educadoras, outras como que descartam tais responsabilidades e aligeiram-nas, isto é, deixam-se substituir pela escola. Aqui entra a possibilidade ideológica de tornar a educação um veículo de transmissão de valores que podem estar fora ou contra o valores da família, sobretudo entendendo-a na conceção cristã.

Diz o Catecismo da Igreja Católica sobre a educação: «Os pais são os primeiros responsáveis pela educação dos filhos. Testemunham esta responsabilidade, primeiro pela criação dum lar onde são regra a ternura, o perdão, o respeito, a fidelidade e o serviço desinteressado. O lar é um lugar apropriado para a educação das virtudes, a qual requer a aprendizagem da abnegação, de sãos critérios, do autodomínio, condições da verdadeira liberdade» (n.º 2223).

4. É preciso denunciar as pretensões de fazer da escola a ‘educadora das classes operárias’ (ou outras), como, por vezes, parece subentender-se na mente de certos legisladores. O regime criado pela ‘identidade de género’, é proposto, difundido e (porque não) propagandeado pela tal disciplina de ‘cidadania e desenvolvimento’. Por que se abespinham tanto alguns quando se põe em questão a tal disciplina? Por que querem impor uma visão unívoca da realidade, quando dizem defender a pluralidade? Haverá vencedores?



António Sílvio Couto


sábado, 19 de outubro de 2024

Restaurante de sucesso…artificial

 


Surgiu no Instagram, alegando tratar-se do restaurante número 1 de Austin (com a designação de ‘Ethos’), nos EUA. Com fotos surpreendentes de pratos de comida, rapidamente ganhou fãs nas redes sociais, onde já conta com mais de 75 mil seguidores. O espaço conta até com um site e com um separador para poder realizar reservas. Porém, tudo isso é falso. O restaurante não existe e o que é apresentado foi criado através da Inteligência Artificial.

1. Eis um exemplo à escala internacional daquilo que se faz valer do que não é: mostra-se, mas é manipulação; difunde-se, mas é ilusão; apresenta-se, mas gera confusão. Será este o caminho por onde vamos seguir no relacionamento de uns para com os outros? Estes pequenos sinais de instrumentalização da técnica sobre a condição humana não nos deveria colocar a todos de prevenção mais do que exaltação a roçar a ignorância? Certos tentáculos desta fase de novos desafios à nossa humanidade não deveriam ser tomados mais a sério do que ao encanto quase infantil de tantos responsáveis e mentores desta nova vaga tecnológica?

2. Recordo a breve estória que se conta de um pretenso cultivador das redes sociais. Tinha na sua listagem de ‘amigos’ e seguidores mais de meio milhar (será pouco ou muito?), mas na hora do velório, por ocasião do seu falecimento, não estava nem um… a sala estava vazia e ninguém apareceu para a despedida. Mesmo que subjetivamente pensemos que pelos muitos desses ‘amigos’, de verdade não contam na hora derradeira ou em momentos de maior dificuldade.

3. Por estes dias tive da fazer uma viagem de carro por terras que não conhecia. Eis que dei de chofre com a visão de um lavadouro no recanto de uma aldeia, tendo-me saído a observação: eis o antecessor histórico do facebook, isto é, da mesma forma agira se fala vida alheia assim se fazia no lavadouro e, se este era palco de contendas e disputas, assim, hoje, o tal facebook e as (ditas) redes sociais o são, só que naquele os adversários viam-se face a face, agora os inimigos digladiam-se no anonimato, sem rosto ou sob falso perfil…

4. Dá a impressão que esta onda de criação de fenómenos virtuais é mais uma das consequências da recente pandemia. Não esqueçamos que esta decorreu entre março de 2020 e maio de 2023, isto é, foi há pouco mais de um ano que a penumbra fatídica foi dada como controlada, o que não significa que tenha sido vencida. Por isso, estas notícias a roçar as ‘fake news’ são como que um prolongamento desse estado coletivo de ansiedade, não significando que tal subjetiva impressão tenha sido debelada ao nível das pessoas. Quantos medos – ainda que inconscientes – pululam no nosso trato do dia-a-dia. Quantas sensações de insegurança proliferam nas palavras e nos comportamentos. Quantos tiques de menos boa resolução das questões deambulam por aí. Quantos fantasmas presumidos ainda assomam as nossas lembranças…

5. Precisamos de deixar que estas pequenas como as grandes questões decorrentes da dita pandemia sejam enquadradas na personalidade de cada um e mesmo naquilo que se designa – numa linguagem bíblica e religiosa – de ’personalidade coletiva’, essa que aglutina os valores, os comportamentos e as vivências de um povo. Isso que na identidade do povo bíblico fazia dele um ‘povo de Deus’, isto é, um povo amado e cuidado por Deus nos mais diferentes aspetos comunitários. Deste modo a ‘personalidade coletiva’ é mais do que a soma das partes individuais, mas também não é o ‘coletivo’ a que se referem certas forças de ideologia marxista. A força comunitária é marca do povo bíblico, tanto de um como de outro testamento.

6. Cristãmente somos credores de uma fé comunitária, que nasce e se alimenta da experiência de Jesus Ressuscitado, hoje como ontem. Infelizmente a pandemia fechou-nos mais do que nos abriu a esta dimensão comunitária. Que, por ocasião do ano Jubilar de 2025, sejamos capazes de unir esforços e forças para vivermos a esperança num tempo novo de Igreja, como Igreja e com a Igreja…em sinodalidade.



António Sílvio Couto

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

‘Ter casa’ – direito, consequência ou obrigação?

 

Desde há uns anos a esta parte vimos emergir na panóplia de assuntos – políticos, sociais, económicos ou ideológicos – o tema da habitação, naquilo que pode ser referência a um direito (constitucional ou cívico), a uma consequência da maturidade humana e familiar ou até como obrigação mais dos outros do que do compromisso do próprio. Dado que este assunto anda nas deambulações de tantos dos responsáveis da nossa vida pública, familiar e pessoal, vamos lançar algumas pistas sobre a questão.

1. O que diz a constituição da república portuguesa sobre a questão? Devemos seguir os ditames da (dita) lei geral? O que nos faz empreender uma reflexão sobre o assunto, será que ele pode conter um engodo mais do que uma solução? Respigamos da constituição (artigo n.º 65):

«1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado: a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social; b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.

3. O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria».

Eis como o Estado, ao nível da lei nos seus princípios, pensa a habitação e o urbanismo.

2. Dizia-se em tempos, numa aportação eivada de conceitos religioso-cristãos: ‘quem casa quer casa!’ Ora, se hoje boa parte da população ignora o ‘casar’, como podemos conciliar isso com o ter casa? Será que o ‘ter casa’ se coaduna com o prolongamento até mais tarde – nalguns casos atingindo as quatro décadas de anos dos filhos – a viver na casa dos pais (progenitores ou outros)? De facto, temos de saber avaliar, com simplicidade e exigência, a relação da ‘geração canguru’ (os que vivem na bolsa marsupial) com a capacidade de todos enfrentarem a vida com verdade e responsabilidade. Efetivamente, muitos dos mais novos cresceram em instrução, mas não amadureceram na assunção das consequências da vida, nas pequenas como nas grandes coisas. Infelizmente vemos demasiadas pessoas com idade de assumirem as rédeas da vida a quase vegetarem sob a alçada dos pais (progenitores ou outros).

3. A proliferação de referências ao tema da habitação parece estar eivada de intenções nem sempre claras e objetivas. De facto, muitos dos reclamantes do ‘direito à habitação’ fazem-no sem criarem o mínimo de condições para que tal objetivo seja melindrado com o resto da vida e das suas regalias, pretensamente, exigidas. Conheço por razões de participação familiar que muitas pessoas fazem sacrifícios vários – durante anos – para conseguirem atingir o objetivo de ter casa própria: quantas privações e contas; quantas renúncias e condicionamentos; quantos tempos adiados de outras comodidades…

4. Ora, o que vemos em tantos dos que reclamam o direito a ter casa nem é para a adquirirem, mas tão somente para viverem gastando os recursos numa renda. Também aqui parece que continuamos a laborar num engano: gastam o dinheiro em algo que nunca será seu e desperdiçam a possibilidade de atingir uma meta que lhe possa dar estabilidade. Não haverá mais uma vez uma manipulação e um desmazelo sem capacidade de prever o futuro, antes olhando só para o presente sem perspetiva de melhor. Ter casa é um direito com obrigações e consequências com responsabilidade!



António Sílvio Couto

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Da intriga à verborreia

 


Por estes dias vivenciei duas situações – díspares no espaço, no contexto e nas circunstâncias – que me fizeram reparar em aspetos bem mais enraizados na convivência humana do que tinha a consciência. Uma teve a ver com o ambiente de intriga (entre os professores) numa escola com cerca de mil alunos e outra uma ida ao barbeiro, onde o profissional que me falou todo o tempo, a propósito e a despropósito, não havendo qualquer hiato de silêncio.

1. Por razões quase de obrigação moral estive presente na tomada de posse de um diretor de um agrupamento de escolas na zona do vale do Sousa: numa tarde chuvosa (como essas que temos tido recentemente) percebi, nas conversas e mesmo nos olhares, algo que me foi explicado posteriormente. Para além da disputa entre as listas concorrentes, viveram à superfície intentos e intuitos bem menos dignos da capacidade de instrução dos intervenientes e, porque não, do seu nível cultural. Segundo me apercebi a luta pelo poder quase foi levada ao extremo numa confrontação exagerada. Não me guio só pelas observações de uma das partes envolvidas – a que ganhou – mas fez-me refletir sobre o quadro de valores de quem ensina e quis os resultados nos ensinados… Se isto é numa escola do interior o que será na disputa dos estabelecimentos de ensino das franjas dos centros urbanos ou mesmo nas escolas instaladas no tecido social das cidades… Quem ensina passará algo mais do que conhecimentos, mesmo os mais credíveis e científicos?

2. Por outro lado, a minha deslocação ao barbeiro – por sinal numa terra pequena e onde as pessoas se conhecem até pela alcunha – foi algo surreal: o senhor conseguiu fazer o seu trabalho (cerca de quarenta minutos) de cuidar dos cabelos sem nunca se calar, emendando as conversas com tal velocidade que cansava já de ouvir, pois entrar na conversa era coisa que estava posto fora de questão… Daqui percebei que há hoje muita gente que precisa de falar, seja porque vive mais só, seja porque a possibilidade de estar calado quase arrepia que disso tenha de vivenciar. Por vezes somos confrontados com situações que nos levam a refletir sobre o conteúdo daquilo que dizemos e o modo como fazemos as conversas. Com efeito, hoje, vemos que as pessoas deixaram de saber conversar, isto é, de dialogar, dado que isso implica dizer e ouvir, sem tentar manipular os assuntos ou a forma como as conversas são tratadas…O silêncio também fala!
3. Estes dois episódios ajudaram-me a tentar discernir o momento político – nacional e internacional – que podemos apreender nos tempos mais recentes. A intriga e a deslealdade não serão dois epítetos para interpretarmos as voltas e reviravoltas, os ditos e os desditos, as declarações e as insinuações, os avanços e os recuos de toda a discussão sobre o orçamento de estado para 2025 (OE 2025)? A verborreia, onde todos querem falar e quase nunca ouvir, não espelha o ambiente vivido nestes meses que antecederam a apresentação do OE 2025? Como pode alguém (de direita ou de esquerda) ser tomado a sério quando diz votar contra o OE, se ele ainda não existia? A quem interessa lançar estas cortinas de fumo ou tinta de polvo sobre os assuntos de todos, privilegiando alguns? Não perceberam tais mentores e executores que a verborreia não traz melhores ordenados nem enche o carro de compras? Neste vai-e-vem de troca de palavras não andaremos a desacreditar a forma mais sublime de comunicação entre os humanos, que a fala/linguagem?

4. Recordando a sublime arte da comunicação, urge reaprender com os erros que temos estado a praticar e a difundir. A ética da palavra vale mais do que todas as intenções – algumas boas e outras nefastas – desde que não contraditada pelos factos. Estes valem, embora seja preciso que os expliquemos com palavras simples, sinceras e sábias. Há quem fale demais e gere intriga. Há quem use de malícia no trato com os outros, por isso, sejamos dignos e credíveis das palavras que dizemos uns aos outros. Afinal, mudar o ambiente onde vivemos não depende dos outros, mas de cada um de nós, sendo sincero e leal…



António Sílvio Couto



quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Jornalismo soprado ou de encomenda?

 


É impressionantemente atual é “estar com seis ou sete câmaras à frente e jornalistas com auricular onde lhes dizem as perguntas que estão a fazer ou com recurso ao telemóvel”. Esta recente observação do atual primeiro-ministro teve tanto de inusitada quanto de sintomática. De facto, não deixa de ser quase ridículo que vejamos boa parte dos que fazem perguntas – a esta entidade como a outros – tendo um auricular no ouvido, como se fossem os que perguntam meros tripés de microfone falante…

1. As declarações do governante foram alvo de reação daqueles a quem ele se dirigia. Repare-se que não considero dignos da profissão de jornalistas quem usa de tais estratagemas para se fazerem ouvir e serem respondidos. A boa parte deles chamo-os de ‘jornaleiros’, pois, mesmo que possam ter curso e carteira-profissional para o exercício de tal profissão servem mais um jornalismo soprado ou de encomenda do que de esclarecimento e de serviço àqueles a quem se destina o seu trabalho: o público e não as bolhas de recurso.

2. A intervenção do primeiro-ministro deu-se na apresentação de um novo plano para a comunicação social, sobretudo do Estado, reduzindo, progressivamente, o peso da publicidade na estação televisiva estatal. Depois de tantos anos a pagarmos taxa para um serviço que mais parece a ‘voz do dono’ do que um serviço de comunicação isento, pluralista e credível em que todos pagam – na fatura da eletricidade a ‘taxa’ de televisão – e quem não usar tal meio de informação ou de diversão é contribuinte na mesma. Nada mais estatizante do que todos serem taxados, mesmo que não usem o serviço: problemas deles, usassem!

3. O meio audiovisual – num espetro de comunicação social nos diferentes ramos e ações – está cada vez mais aberto e são multíplices os canais de difusão: desde os mais generalistas até aos mais específicos; dos mais credíveis aos promotores das falsas notícias; dos que falam verdade e a promovem até aos que a distorcem e vilipendiam; com profissionais credíveis até aos mais vendidos e serventes de interesses mesquinhos; dos que têm valores e critérios humanistas até ao que manipulam sem pejo e com artimanha; dos que não têm medo de exercer a profissão ‘sem rede’ (auricular, sms ou perguntas pré-feitas) até aos que não sabem questionar sem cartilha ensaiada a partir da ‘redação’ virtual.

4. Mal vai um cidadão que se fique por seguir só um canal, ler só um jornal, escutar só uma rádio ou mesmo fidelizado a uma única rede social, Com facilidade perceberá que pode estar a ver ou a ser visto de um só ângulo, possivelmente, o menos ajustado à realidade. O nosso tempo é, em quase tudo, multiforme e será um risco de ser manipulado por uma única fonte de informação. Por isso, o estrebuchar da estação estatal revela que o protecionismo – de meios, de fontes, de gastos ou de futuro – está colocado em causa, obrigando a fazer melhor para não cair nas escolhas de quem segue e se deixa ficar por mais algum tempo ligado ao canal selecionado.

5. Há algo de extrema gravidade: o dito jornalismo é dos poucos casos profissionais em que, quando estão em greve, precisam de a romper para se saber que eles estão a reclamar. Pior quando têm de dar notícias sobre a concorrência: os noticiados podem ser novos clientes conquistados pelo azar alheio. As reações corporativas deste setor aquando das palavras supra citadas dá-nos a entendem que, tendo-lhes tocado no prato, sentem que pode perigar a sua subsistência.

6. O tempo é curto para nos aferirmos ao futuro breve: será escusado dramatizar, pois poderemos trazer à liça a estória do palhaço enviado à cidade para virem acudir a um incêndio no circo. Estranhando a subtileza de campanha do circo para conquistar novos fregueses, ninguém ligou aos gritos do palhaço, tendo o fogo alastrado, pelos campos envolventes, até à cidade avisada. Assim, fomos prevenidos de que algo vai mal no reino da televisão estatal e não só. Menosprezar os avisos pode custar a sobrevivência de todos…



António Sílvio Couto

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Paróquias – sinodalidade e ‘unidades pastorais’

 


Está a decorrer ao longo deste mês de outubro mais um tempo da 16.ª assembleia geral dos Bispos em Roma. Previsto como um tempo mais curto esta assembleia sinodal – com o tema: "Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão" – já se estende desde 2021, estando a realizar-se a segunda sessão plenária. Dado o contexto sociocultural e eclesial ocorreu-me suscitar algumas questões e possíveis reflexões, tendo em conta ainda a configuração pessoal e de Igreja. Seguiremos o esquema proposto no título: paróquias, sinodalidade e unidades pastorais. Como se articulam e se desenvolvem concomitantemente?

1. Paróquia. Diz o Código do Direito Canónico: «Paróquia é uma determinada comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, e seu cuidado pastoral é confiado ao pároco como a seu pastor próprio, sob a autoridade do Bispo diocesano» (cân. 515). Sobre o cuidado pastoral de uma paróquia refere-se: «Onde as circunstâncias o exigirem, o cuidado pastoral de uma paróquia, ou de diversas paróquias juntas, pode ser confiado solidariamente a mais sacerdotes, com a condição, porém, que um deles seja o coordenador do cuidado pastoral a ser exercido, isto é, dirija a atividade conjunta e responda por ela perante o Bispo» (cân 517 § 1). Também se introduz que a possibilidade de a paróquia pode ser confiada a um não-padre: «Por causa da escassez de sacerdotes, se o Bispo diocesano julgar que a participação no exercício do cuidado pastoral da paróquia deva ser confiada a um diácono ou a uma pessoa que não tenha o caráter sacerdotal, ou a uma comunidade de pessoas, constitua um sacerdote que dirija o cuidado pastoral, munido dos poderes e das faculdades de pároco» (parágrafo 2). Por último uma referência ao múnus do pároco: «o pároco e o pastor próprio da paróquia a ele confiada; exerce o cuidado pastoral da comunidade que lhe foi entregue, sob a autoridade do bispo diocesano, em cujo ministério de Cristo é chamado a participar, a fim de exercer em favor dessa comunidade o múnus de ensinar santificar e governar, com a cooperação também de outros presbíteros ou diáconos e com a colaboração dos fiéis leigos, de acordo com o direito» (cân. 519).



2. Sobre a temática da sinodalidade respigamos o que se diz no ‘instrumentum laboris’ para a segunda sessão da 16.ª assembleia geral do Sínodo dos Bispos (outubro de 2024). Atendendo à configuração da Igreja em espaço territoriais, refere-se: «o anúncio do Evangelho, suscitando a fé no coração dos homens e das mulheres, permite que num lugar se constitua uma Igreja. A Igreja não pode ser compreendida sem implementação num lugar e numa cultura e sem as relações que se estabelecem entre lugares e culturas. (…) A dimensão do lugar preserva a pluralidade das configurações desta experiência e o seu enraizamento em contextos culturais e históricos específicos» (n.º 80). O tal lugar é mais do um espaço fechado ou redutivo: «o lugar já não pode ser entendido em termos puramente geográficos e espaciais, reclamando antes a pertença a uma trama de relações e a uma cultura com uma ancoragem territorial mais dinâmica e elástica do que no passado» (n.º 82). Há, por isso desafios a enfrentar: «Sem ignorar que a vida se exerce sempre em contextos físicos e em culturas concretas, de que nunca é possível prescindir, convém afastarmo-nos de uma interpretação unicamente espacial do lugar: os lugares, (…) não são apenas espaços, mas também áreas e redes que permitem o desenvolvimento das relações, oferecendo às pessoas uma oportunidade de enraizamento e uma base para a missão, que poderão realizar nos locais onde vivem» (n.º 86).



3. Como enquadrar as ‘unidades pastorais’? Por estes dias têm estado a ser cumpridas as formalidades de ‘tomada de posse’ de alguns párocos nas cinco unidades pastorais do arciprestado de Esposende: de 15 paróquias passou-se a cinco unidades pastorais, dos oito párocos anteriormente (há cerca de vinte anos era um por paróquia) foi reduzido a um por cada unidade pastoral.

Esta modificação deve-se a quê: à falta de padres? À reformulação pastoral? A uma nova visão ou acomodação – na linha da sinodalidade – de Igreja? Pela minha parte tenho estado em reflexão sobre estes e outros itens. Estaremos a saber ler os sinais dos tempos ou a adaptar-nos às circunstâncias? De que perspetiva – clerical ou situacionista – estaremos a reconfigurar este novo modelo de paroquialidade? Assim haja coragem e não desculpa para o que deve ser feito!



António Sílvio Couto

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A vida é muito mais do que um jogo

 

Meia-volta ouvimos usar expressões como estas – estão a fazer do programa (televisivo ou outro) um jogo, estão a jogar, o jogo da política, as jogadas de bastidores, quem não joga não ganha… Mas será a vida um mero jogo, onde uns ganham e outros perdem? Quem traça as regras desse jogo? A quem interessa fazer da vida uma espécie de jogo de sorte-e-de-azar? No pretenso ‘jogo da vida’ por que há quem viva no gozo (pela ridicularização alheia) e outros a serem achincalhados? Não haverá limites à provocação humorística de certas figuras? A padronização seguida nestes comportamentos não nos fará a todos perder neste jogo com regras inquinadas?

1. Tentemos explicar o sentido etimológico da palavra ‘jogo’. A palavra jogo é originária do latim: iocus, iocare e significa brinquedo, folguedo, divertimento, passatempo sujeito a regras, ou até mesmo uma série de coisas que formam uma coleção. Por vezes, para falar de ‘jogo’ é também usada a palavra ‘ludus’ no significado de divertimento, distração… Se atendermos à consonância entre os dois termos como que podemos questionar que jogo é esse que fazemos – ou que querem que façamos – se mais na intenção de brincar, se na pretensão de divertir, ou ainda se o jogo faz com que cada interveniente seja uma pessoa ou bastará fazer-de-conta que se está do outro lado da barreira como opositor, seja qual for o resultado… Quase se nota que há uns tantos que acham que manobram os cordelinhos do jogo para usarem os outros como marionetas de feira, disso quase estou convicto e, desgraçadamente, sou levado a aceitar as jogadas…

2. Na promoção das vaidades em circuito fechado podemos considerar que diversas ‘personalidades’ desenrolam a sua vida em volta de fazerem jogo, colocando-se em vários tabuleiros naquilo que a vida lhes permite exibir. O pior de tudo é que este clima de quase impunidade do ‘salve-se-quem-puder’ atinge todos os campos e áreas de presença humana, mesmo no âmbito eclesial e eclesiástico: quantos fazem o jogo de quem está no poder, por forma a flutuarem até atingirem a ‘consagração final’.

3. Aquilo que vemos nos enredos – mesquinhos, torpes e soezes – dos programas televisivos é passado a ato nos grandes como nos pequenos palcos. Com que facilidade se troca a sinceridade pela intriga, num piscar de olhos e sob a nossa impávida assistência. Com que velocidade se confundem interesses (tacanhos e intoleráveis) com desrespeito da lealdade mais básica. Com que atrocidade somos confrontados com pessoas que trocam o dito-por-não-dito na destreza de um clicar no telemóvel, mesmo sob as barbas do parceiro, senão mesmo do companheiro de vida.

4. Mesmo que haja (ou passa haver) várias formas de jogos, nada é mais sagrado do que as pessoas que Deus põe no nosso caminho, seja de forma prevista, de modo impensável, nas circunstâncias normais, seja nos espaços diferentes e diferenciados da nossa história pessoal, familiar ou em contexto social. São as pessoas que merecem respeito muito para além das formas mais ou menos complexas de entrarem nos múltiplos jogos, sem nunca por nunca nos viciarmos em matéria de jogos de fortuna/azar. Estes, normalmente, trazem a desgraça a quem compactua com tais tentáculos da perversidade. Quantas pessoas se tornaram infelizes e àqueles que os rodeavam, quando se deixaram enlear por resultados rápidos e sem trabalho. Com efeito, só no dicionário é que sucesso aparece antes de trabalho. Por isso, é avisado que temos de viver sem contar com a herança do defunto ou pior não sabendo investir naquilo que é fruto do esforço de cada um.

5. No esquadrinhar da vida será importante reger-se por valores para que possamos ter critérios de conduta, respeitando e sendo respeitados mais por aquilo que se é do que pelo que se diz. Recordo sobre este assunto aquilo que dizia, em 1975, o Papa Paulo VI, na encíclica ‘Evangelii nuntiandi’ sobre a evangelização no mundo contemporâneo: «O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas» (n.º 41). Seremos?



António Sílvio Couto