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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Escravatura do futebol


Mesmo para quem possa gostar do futebol como desporto, a compra-e-venda de jogadores de futebol soa a escravatura, sobre a qual quase todos se calam, de forma cúmplice senão conivente ou conveniente. Para enquadrar os milhões – em euros ou em dólares – com que são transacionados os executantes da bola, houve quem lhe chama-se ‘indústria’ – se ele produzisse algo – mas considero que se deveria, antes, situar como ‘comércio’, na medida em que se vende e compra o que está no circuito económico.

Cheira-me a desonestidade intelectual a condenação da escravatura em tempos da Idade Antiga (e não só) e agora ficamos em silêncio, podendo até contribuir – pela ida aos estádios ver os jogos ou assistindo-os pela televisão – para que este neo.esclavagismo perdure no tempo e no espaço.

1. Que tem um rapaz de vinte e pouco anos de mais arte do que os gladiadores romanos? Que diferença faz ser ‘bom-de-bola’ ou ser artista no uso da espada ou da sica? Não serão uns e outros usados para dar espetáculo, mesmo que possam estar presos por contratos de senhores que os manipulam? Não andaremos a enganar os mais novos com o fascínio do sucesso, se forem bons jogadores? O atrativo do dinheiro não fará com que muitos jovens vivam iludidos com um sucesso fugaz e mal explicado? Até quando seremos incongruentes e falsos…nisto que envolve a arte da bola – tenha o formato, o tamanho ou a velocidade que lhe dermos – sobretudo se for da nossa cor clubística? Qual o significado de vender um rapaz, que joga bem (ou melhor do que outros) à bola, por mais de cem milhões de euros? A cultura da inteligência não valerá mais do que a arte-da-bola? Um médico ou um professor, que tanto (certamente) estudaram, valem menos que um bom artilheiro em campo de jogo?

2. A distorção da matéria começa, desde logo, pela linguagem: comprar e vender homens, fazer preço e regatear custos, preferir uns e preterir outros, uns até fazem de moeda de troca para adquirir os ditos melhores. Normalmente os artistas da bola emergem de estratos da população quase em situação de pobreza. Descobertos são cuidadosamente tratados porque podem vir a dar bom proveito. Habitualmente não cuidaram dos estudos, trocando os livros por um pouco de couro arredondado, esmerando-se na habilidade em o tratar. Recorrentemente são tratados como ignorantes, pois se deixam explorar por quem pagar melhor, embora entreguem a outros a negociação da sua pessoa (executante e imagem). Quando atingem o estatuto de vedetas originam figuras quase ridículas, dado que entram em extravagâncias, algumas delas a roçar o caricato, numa ostentação de novo-riquismo. Quantos tiveram fortunas e esbanjaram-nas em poucos anos, vindo a morrer na penúria e até na desgraça…pessoal, familiar e social.

3. Apesar dos casos do passado nada se aprendeu para o presente. Muitos, vitimas da própria fama, tornaram-se ainda mais escravos da sociedade que os aplaudiu quando não souberam retirar-se do campo ou não se advertiram do desgaste rápido da ‘profissão de jogador’. Não chegar aos quarenta anos com carreira de jogador é o costume, coisa que faz destes homens – agora também de mulheres – escravos sugados até ao tutano e sem direito a reclamação.

Os dois séculos e meio de futebol organizado – terá surgido assim em 1863 – não conseguiram debelar, pelo contrário, a sensação de que de desporto já pouco tem, a não ser a possibilidade de o despojar de tanto do dinheiro que envolve, faz correr e – porque não – serve para limpar.

4. Por muito que se possa gostar de futebol – sobretudo se for uma prática desportiva e sem dinheiro envolvido – não podemos calar as formas de escravatura que atualmente apresenta. Tentemos libertar estes novos escravos e alertemos os vindouros para que se não deixem explorar com seduções de sucesso… pois, só no dicionário é que ‘sucesso’ aparece antes de ‘trabalho’. Tempos virão em que os campos de jogo serão pasto de outras competições. O futebol poderá ser considerado ‘desporto de massas’, mas, na sua maioria estas são acríticas ou quase-ignorantes. É hora de acordar!



António Sílvio Couto

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