Contaram-me
por estes dias uma situação de alguém que era (ou é) muito cuidadoso nas
questões relacionadas com o vírus em curso – as higienizações, as distâncias,
os apetrechos, etc. – e que foi, de forma desabrida, para os festejos do mais
recente campeão de futebol no nosso país… E com eles milhares de tantos outros
deram a imagem de que o futebol-paixão como que torna a maior parte das pessoas
quase-irracionais, senão mesmo inconscientes…
Alguns
mais paternalistas foram deixando escapar a desculpa de que quase duas décadas
de jejum de festa têm de merecer mais compreensão. Outros, para não assumirem
as respetivas responsabilidades, escondem-se por detrás dos ajuntamentos –
autorizados, suscitados ou provocados – por forma a quererem dizer que a
multidão é anónima e sem assunção de culpas. Outros ainda – sobretudo os de
outros clubes ou fações derrotados – estão com o dedo em riste para acusarem os
‘prevaricadores’, quando fariam o mesmo, se estivessem em idênticas condições…
1. Mesmo com o alarido ou sob
provocações, a maior parte daa pessoas festejantes atenderam aos riscos
inerentes à pandemia em curso? Serão todos tão inconscientes para julgarem que
isso (o contágio ou a afetação) só acontece aos outros? Como justificar, senão
por falta de senso ou quase-irracionalidade, encurralar pessoas aos magotes,
sem prever as consequências? Será que uma tarde de festejos pode deitar a
perder meses de confinamento ou de estado de emergência, se bem que ainda
estejamos em estado de calamidade? A quem interessa o ‘jogo-do-empurra’, por
parte das autoridades envolvidas? Será que o ‘covid-19’ fez perder o bom senso –
há quem diga que alterou a moleirinha – da maioria dos atingidos pelo vírus?
2. Infelizmente é verdade que o
fenómeno do futebol transtorna as pessoas, sobretudo as mais apaixonadas e
quase fanáticas. O que dizer de médicos-cirurgiões, de juristas ou de professores
que assumem pose de verdadeira malcriadez, quando discutem coisas do futebol… e
não é só do jogo, mas das tricas dos bastidores? O que dizer de pessoas
sensatas – ao menos na aparência – e que se alteram quando se confrontam com
outros adversários…por vezes enfrentados quase como inimigos? O que dizer de
certas discussões televisivas, quando se esgrimem argumentos inflamados,
estando às portas de chegarem a ‘vias-de-facto’, não fossem as distâncias ou de
estarem em espaços separados?
3. O comércio do futebol tritura
tudo e todos…em si mesmo e à sua volta. Veja-se que de desporto já só tenhamos
alguns adereços – a bola, o campo e talvez as balizas – pois os intervenientes
estão em constante mutação, tal a necessidade de novo produto para
vender-e-comprar. As pessoas tornaram-se coisas e as coisas ganharam
identidade. Com efeito, à expressão ‘indústria do futebol’ temos de contrapor o
comércio, onde tudo se vende ou tudo se compra, desde que se saiba o preço e
haja quem queira comprar ou vender. Os jogadores estão à venda. Os dirigentes
andam no mercado na tentativa de fazer negócio. O produto sobe ou desce
conforme tem procura ou se expõe à venda. Há que despachar um jogador, enquanto
tem preço convidativo no mercado. Esta escravatura tem conluios e sobre ela se
estende um manto de silêncio cúmplice e provocatório…
4. As provas do grande investimento
feito nos futebóis – pois há o do meu clube e os dos outros – são as horas de
discussão televisiva, de angariação dos melhores jornalistas vinculando-os à
sua cor clubística ou o custo de publicidade em certas horas…Temos, em Portugal,
três jornais diários sobre desporto, mas onde o futebol ocupa a quase
totalidade do espaço. Em canais televisivos – seis entre canal aberto e por
cabo e mais os dos grandes clubes – são gastas horas a fio a discutir tricas e
truques, jogadas e falhanços, sucessos e inglórias…atuais, do passado e com
implicações no futuro. Em tudo isto fica a possibilidade de mudar de canal ou
de jornal, se não for atendido o clube (dito) do coração, pois a racionalidade
deixa muito a desejar quando se perde e, sobretudo, quando se ganha…
A saúde
não teria merecido melhor tratamento do que aquele que lhe deram alguns do que
celebraram as vitórias… arrolhadas há tantos anos?
António Sílvio Couto
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