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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Não estou a distribuir ‘bolachas’


Nas orientações dadas pela Conferência Episcopal Portuguesa, em 8 de maio, por ocasião do surto de pandemia que estamos a viver, dizia-se:

«24. Na procissão para a Comunhão, os fiéis devem respeitar o distanciamento aconselhado. Se for o caso,
marcar-se-ão as distâncias no pavimento da igreja. Sendo inevitável uma maior proximidade, os ministros
que a distribuem usarão máscara.
25. O diálogo individual da Comunhão («Corpo de Cristo». – «Amen.») pronunciar-se-á de forma coletiva
depois da resposta «Senhor, eu não sou digno…», distribuindo-se a Eucaristia em silêncio.
26. Na receção da Comunhão, observem-se as normas de segurança e de saúde, nomeadamente em relação
ao distanciamento físico entre os comungantes e à higienização das mãos.
27. Continua a não se ministrar a comunhão na boca e pelo cálice
».

Efetivamente, não tenho cumprido nem espero cumprir estas prescrições. Não é por razões de mera rebeldia, mas segundo conceitos teológicos-pastorais bem mais profundos do que uma simples diretriz higiene-sanitária… de âmbito das forças seculares, embora suscetível de ser contestada tanto no conteúdo como, sobretudo, na forma…

Para fundamentar esta minha posição, possivelmente controversa, apresento uma situação – algo bizarra e minimamente economicista/publicitária – que vivi há uns anos atrás, no contexto socio-pastoral onde me encontro.

Uma empresa, que se denominava promotora de uma certa marca de bolachas, solicitou-me que lhe fosse permitido gravar um trecho publicitário, tendo a porta da igreja aberta, enquanto celebrava a missa e, particularmente tendo em conta o momento da consagração, com a apresentação da hóstia à adoração, e eles fariam sobrepor uma distribuição de bolachas, com incidência desde o espaço da igreja. Ouvido o desafio, respondi-lhes que teriam de apresentar o projeto ao bispo diocesano, dado que me seria complicado – embora impossível – anuir a tal pretensão…Tempos mais tarde, em conversa telefónica com o bispo da diocese, questionei-o sobre aquela ‘proposta’ e se tinha recebido tal pedido, ao que ele respondeu, num misto de admiração e de algum jocoso, que certa gente não é séria nem leva as coisas de Deus a sério…

Feita esta ressalva teológico-mental considero que as indicações da CEP são, nalguns aspetos, inoportunas e algo desconformes com a perceção espiritual e eclesial da celebração do mistério da eucaristia e da sua vivência em tempos de uma grande crise de identidade religiosa, cristã e católica.

Eis o que nos diz a Instrução Geral ao Missal Romano (n. os 160-161) sobre o modo de distribuição da comunhão: «O sacerdote pega depois na patena ou na píxide e aproxima-se dos comungantes, que habitualmente se aproximam em procissão. Não é permitido que os próprios fiéis tomem, por si mesmos, o pão consagrado nem o cálice sagrado, e menos ainda que o passem entre si, de mão em mão. Os fiéis comungam de joelhos ou de pé, segundo a determinação da Conferência Episcopal. Quando comungam de pé, recomenda-se que, antes de receberem o Sacramento, façam a devida reverência, estabelecida pelas mesmas normas.
Se a Comunhão for distribuída unicamente sob a espécie do pão, o sacerdote levanta um pouco a hóstia e, mostrando-a a cada um dos comungantes, diz: O Corpo de Cristo ou Corpus Christi. O comungante responde: Amen, e recebe o Sacramento na boca, ou, onde for permitido, na mão, conforme preferir. O comungante recebe a hóstia e comunga-a imediatamente e na íntegra».

Num tempo um tanto nivelado pela valorização das coisas do material, corremos um sério risco de ‘coisificar’ a comunhão que nos é dada através da apresentação e receção do ‘corpo do Senhor’, na hóstia consagrada. Que perigo se corre, se se disser, ao comungante: ‘o corpo de Cristo’? Haverá, assim, tanto risco de contágio ou de propagação dos vírus, se tudo for feito com dignidade, compostura e veneração? Foram avaliados os verdadeiros riscos quanto à fé em comparação com os perigos de banalização do ‘receber a hóstia’? Não estará a higienização a sobrepor-se à fé no mistério da presença de Jesus na eucaristia dada e recebida em comunhão? Não teremos passado rápido de mais para algo que pode deixar os fiéis – leigos, religiosos e ministros ordenados – mais atentos às regras sanitárias e menos ao mistério celebrado?

 

António Sílvio Couto

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