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sábado, 26 de setembro de 2020

Poliedricidade – uma outra visão de Igreja em Igreja


«Esta realidade [dos cenários culturais contemporâneos], tão heterogénea e mutável, tanto do ponto de vista sociocultural como religioso, precisa de ser lida de modo que seja percetível a sua poliedricidade e que cada aspeto mantenha a sua validade e peculiaridade mesmo na relação variada com a totalidade. Esta abordagem interpretativa permite que se leia os fenómenos de pontos de vista diferentes, mas colocando-os em relação entre si. É importante que a Igreja, que quer oferecer a beleza da fé a todos e a cada um, esteja consciente desta complexidade e amadureça um olhar mais profundo e sábio em relação à realidade. Uma condição destas obriga ainda mais a assumir a perspetiva sinodal como metodologia coerente com o percurso que a comunidade é chamada a realizar. É um caminho comum no qual confluem presenças e papéis diversos, de modo que a evangelização se realize de modo mais participado».

Lemos no n.º 312 do ‘Diretório para a catequese’, do Pontifício conselho para a promoção da nova evangelização, promulgado em finais de junho deste ano.

Como resultado de um aturado processo de maturação daquilo que deve ser o processo de catequese, neste texto se insere um termo que procuraremos aprofundar nesta reflexão: ‘poliedricidade’.

* Já na exortação apostólica ‘Evangelium gaudium’ (a alegria do Evangelho), de 2013, o Papa Francisco tinha aflorado este termo. Diz-se no n.º 236: «O modelo não é a esfera, que não é superior às partes, onde cada ponto é equidistante do centro e não há diferenças entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a ação pastoral como a ação política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com a sua cultura, os seus projetos e as suas próprias potencialidades. Até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros têm algo a oferecer que não se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem comum que verdadeiramente incorpore a todos».

* Na mensagem que dirigiu ao 3.º festival da doutrina social da Igreja, que decorreu, em Verona (Itália), de 21 a 24 de novembro de 2013, o Papa Francisco usou a imagem do poliedro, por contraste com a esfera para explicitar a sua interpretação do tema daquele encontro internacional. Dizia o Papa: «’Menos desigualdades, mais diferenças’ é um título que evidencia a riqueza plural das pessoas como expressão dos talentos pessoais e distancia-se da homologação que mortifica e, paradoxalmente, aumenta as desigualdades. Gostaria de traduzir o título numa imagem: a esfera e o poliedro. A esfera pode representar a homologação, como uma espécie de globalização: é lisa, sem lapidações, igual em todas as partes. O poliedro tem uma forma semelhante à esfera, mas é composta por muitas faces. Gosto de imaginar a humanidade como um poliedro, no qual as multíplices formas, exprimindo-se, constituem os elementos que compõem, na pluralidade, a única família humana. Esta é a verdadeira globalização. A outra globalização – a da esfera – é uma homologação».

* Posteriormente, o mesmo Papa referiu-se à mesma distinção entre a esfera e o poliedro ao dirigir-se aos membros do Renovamento Carismático católico, na praça de São Pedro, a 3 de julho de 2015, dizendo: «No ano passado no estádio falei também da unidade na diversidade. Dei o exemplo da orquestra. Na Evangelii gaudium falei da esfera e do poliedro. Não é suficiente falar de unidade, não é uma unidade qualquer. Não é uniformidade. Dito deste modo pode ser compreendida como a unidade de uma esfera na qual cada ponto é equidistante do centro e não há diferenças entre um ponto e outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade e estes são os carismas, na unidade mantendo a própria diversidade. Unidade na diversidade. A distinção é importante porque estamos a falar da obra do Espírito Santo, não da nossa. Unidade na diversidade de expressão de realidades, tantas quantas o Espírito Santo quis suscitar. É necessário recordar também que o todo, ou seja, esta unidade, é maior do que a parte, e a parte não pode pretender ser o todo».

* Ainda na exortação apostólica pós-sinodal, ‘Christus vivit’, de 2019, n.º 207, refere o mesmo Papa, quanto aos jovens: «aprendendo uns com os outros, podemos refletir melhor aquele maravilhoso poliedro que deve ser a Igreja de Jesus Cristo. Esta pode atrair os jovens, precisamente porque não é uma unidade monolítica, mas uma trama de variados dons que o Espírito derrama incessantemente nela, fazendo-a sempre nova apesar das suas misérias».

 

= Feita a abordagem aos textos do magistério sobre esta temática da poliedricidade talvez seja importante tentei ver essa ‘nova/outra’ visão de Igreja que nos é proposta, onde estamos inseridos como ‘facetas’ da perspetiva que damos aos outros e que os outros podem perceber…

Efetivamente depois de uma amostragem de Igreja mais em modelo de ‘esfera’ reduzindo-se a uma homologação global, através do poliedro cada um conta, mas não se reduzindo a ser número de uma contagem em massa anónima. Com efeito, o grande teólogo do século passado, Karl Rahner, cunhou a expressão´: ‘cristãos anónimos’ para se referir àqueles/as que podem vir a fazer parte da Igreja e na mesma linha de falava o Concílio Vaticano II, as ‘sementes do Verbo’ (cf. Ad gentes, 11) estão disseminadas muito para além daquilo que conseguimos perceber totalmente…

Os aspetos enunciados nos documentos supracitados podem-nos dar pistas para refletirmos sobre esta ‘outra’ visão de Igreja em que devemos ensaiar a nossa participação: pela perspetiva sinodal, nas potencialidades culturais, na pluralidade da família humana, pela unidade na diversidade dos carismas, numa Igreja sempre nova apesar das suas misérias…

Voltaremos, em breve, para esmiuçar estes vários itens.

 

António Sílvio Couto

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