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quinta-feira, 19 de maio de 2022

Neologismos inculturados

 


Creio que todos sabemos que a língua (falada ou escrita) revela o que somos e que as palavras manifestam o que pensamos, tentando adequar a nossa linguagem àquilo que queremos dizer de forma mais percetível ao nosso interlocutor. O surgir de ‘novas’ palavras poderá querer significar que desejamos exprimir algo que se tornou diferente e, por isso, aparecem expressões, vocábulos, termos ou modos de falar com ou sem sotaque.

 1. Em tempos não muito recuados, para entendermos algumas palavras, precisávamos de ter noções de filologia grega ou latina, pois muitas das nossas palavras – simples ou eruditas, habituais ou mais elaboradas, de linguagem popular ou literária – tinham a sua origem em termos dessas culturas clássicas e, para nos entendermos, necessitávamos de recorrer a essas fontes…Nos tempos mais recentes vemos aportuguesar inúmeras palavras estrangeiras, tanto pela transcrição da palavra, como pela adaptação à sonoridade… surgindo neologismos ou estrangeirismos introduzidos na linguagem, sobretudo, de âmbito popular, mas que bem depressa se tornam ‘normais’…

 2. Há setores onde a introdução na cultura de neologismos é mais frequente: em matérias de desporto – quantas modalidades foram adequando a sua designação pela sonoridade à portuguesa – nos campos da informática, na vida comercial e em tantas outras atividades, funções e mecanismos de transferência entre o que se fala e o que se vive. Os ‘puristas’ da língua resistem a tais mudanças, exorcizam a todo o custo o pretenso ‘acordo ortográfico’ e fazem questão de mostrar o desacordo quanto a tudo isso que tem influenciado a língua portuguesa e a sua evolução… assim parece.

 3. Numa espécie de metonímia popularizada vemos marcas de produtos assumirem quase-designação do mesmo produto. Por exemplo quem duvida que, quando dizemos ‘quispo’ (marca de um casaco dos finais da década de setenta do século passado) não estamos a designar um impermeável com capuz à maneira dos esquimós…que deveria dizer-se anoraque. Um produto fabricado em plástico, com variados tamanhos, formas e soluções, designámo-lo de ‘taparuere’… e estamos a designar um recipiente usado para acondicionar desde alimentos até produtos… Quando uma marca ainda substitui toda a produção ou modo de calçar ou de vestir – ‘ténis’ ou ‘jeans’ – para falarmos das várias formas de sapatilhas ou de calças de ganga.

 4. Por estes dias estava a ouvir um depoimento, de há cerca de uma década, de um escritor português que viveu na Holanda – agora designada de ‘países baixos’, que traduzem ‘neder-landen’ – e escreveu a sua história. Ele bem tentava encontrar uma palavra que caraterizasse aquele povo na sua resistência, capacidade de organização e mesmo de luta, percebendo-se que na frase calhava bem essa outra palavra recentemente introduzida no nosso vocabulário: ‘resiliência’. Com efeito, esta palavra exprime a capacidade, sobretudo psicológica, de enfrentar e de superar as adversidades, tentando conciliar, pela positiva, dois fatores: crise e superação… Se bem que este termo ‘resiliência’ ocupe farta referência às condições económicas, ele pode (e deve) abranger mais campos, situações e vivências… desde pessoais até familiares, sociais e políticas.

 5. Uma breve abordagem a um termo talvez agora mais facilmente entendível na sua compreensão, se o compararmos com a experiência mais atualizada. Na teologia católica – sobretudo na doutrina de São Paulo – aparece-nos por várias vezes a expressão de sermos configurados a Cristo (cf. Fl 2,5; Rm 1,1; Gl 3,27), na linha de sermos revestidos de Cristo, numa aceitação d’Ele na nossa vida e da nossa vida estar n’Ele. Embora não seja nem de perto nem de longe algo semelhante, quem trabalhe com questões tecnológicas saberá o que é ‘configurar’ um telefone ou um computador e talvez possa entrar com mais sentido naquilo que a doutrina católica nos refere ao configurar-se a Cristo… Deste modo a linguagem técnica serviria os intentos religiosos-espirituais… Não sendo um neologismo, ‘configuração’ ganharia novo significado a partir da experiência humana atualizada!    

 

António Sílvio Couto

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