Desde
tempos imemoriais que o ritmo da festa foi essencial para a vida dos povos.
Estes muitas vezes contam o seu ‘tempo’ pela data da ‘sua’ festa – religiosa ou
não – valendo, nalguns casos, muito para além das outras grandes (páscoa e
natal) comuns, mas essas são de todos…
De facto,
a festa de cada localidade, região ou país é como que catártica de toda a vida
dessa região (ou religião) ou povoado… Num tempo de cristandade era comum
colocar essa festa sob a tutela dalgum santo/a, de invocação/evocação de Nossa
Senhora ou mesmo dalguma faceta do mistério de Cristo… Agora que estamos a
viver um processo crescente de descristianização – nalguns casos já se verifica
uma espécie de neo-paganização – há quem pretenda servir-se da ‘tradição’
religiosa para a fazer subverter numa outra componente mais social, um tanto ou
quanto politizada e/ou num aspeto cultural a gosto… do que se pretenda atingir
a curto ou a médio prazo.
Os
ingredientes das festas vão-se como que generalizando para a dimensão mais
lúdica do que espiritual, vão-se tornando oportunidades para distrair o povo,
usando-o como complemento e não como sujeito. Em certas ocasiões vamos vendo
crescer uma apetência para propor elementos quase espúrios à cultural local
para ir impondo gostos e modas de duvidoso conteúdo humano e cultural mais
consentâneo com esse povo que pode e deve fazer festa sem se alienar nem sem
ser usado para objetivos subterrâneos nem sempre percetíveis a olho nu…
Da religiosidade natural
Muito
daquilo que vivemos, mais ou menos inconscientemente, por ocasião das festas –
religiosas e/ou populares – está eivado dum quê de religiosidade natural, na
medida em que se reflete alguma ligação à terra e àquilo que é o ritmo da vida
em consonância com o ciclo da natureza, que nos faz viver e conviver. De facto
´, muitas das nossas festas – por vezes apelidando isso de tradição – fazem-nos
estar numa referência às raízes ancestrais em que muito daquilo que vivemos se
situa na linha de tantas outras correntes em muitos outros lugares tão
distantes quão diversos…O problema é uma certa ignorância em que se pretende
fazer da ‘sua’ festa um bairrismo quase atrevido porque atuando por
desconhecimento, que não nos une, como devia, a tantas outras partes do país e
até do mundo…mesmo que com matizes mais ou menos aceitáveis e com
conteúdo…cultural específico.
Será
aceitável gastar rios de dinheiro em coisas perfeitamente escusadas como
foguetes e arranjos de gosto duvidoso, tentando justificar isso com alguma
‘tradição’ menos bem fundamentada e razoável? Não será um tanto questionável
manter certos ‘ritos’ se estiverem esgotadas as razões que os fizeram surgir?
... À evangelização renovada
«A religiosidade popular não tem uma relação,
necessariamente, com a revelação cristã. Porém, em muitas regiões,
exprimindo-se numa sociedade impregnada de diversas formas de elementos
cristãos, dá lugar a uma espécie de ‘catolicismo popular’, no qual coexistem,
mais ou menos harmoniosamente, elementos provenientes do sentido religioso da
vida, da cultura própria de determinado povo e da revelação cristã».
Este
excerto do ‘Diretório sobre piedade popular e liturgia’, n.º 10, faz-nos
considerar que há sementes de cristianismo disseminadas por muitas
manifestações de índole popular – sobretudo tem em conta o background cristão
de outros tempos na Europa em geral e no nosso país em particular – embora se
tenha de estar, cada vez mais atento, para que isso não seja infetado de
paganismo em muito daquilo que já teve expressão de fé cristã.
Os
elementos da designada ‘piedade/religiosidade popular’ precisam de ter presente
a dimensão bíblica, a inspiração antropológica, a referência litúrgica, sem
esquecer a sensibilidade ecuménica.
Não
teremos de aproveitar muito mais as nossas festas, com algum sabor a religião,
para lhes dar dimensão querigmática atualizada? Não andaremos a suportar
‘festas’ onde se exibe mais a vaidade do que consciência cívica de pertença e
de solidariedade? Não teremos de desembrulhar muito mais Cristo nas nossas
festas, feitas ao sabor de gostos um tanto suspeitos e com objetivos pouco
claros?
António Sílvio Couto
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