Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

?!...

 

Raramente acontece que o assunto de um ano seja o mesmo no início e no final…do ano seguinte. A sombra funesta da pandemia – do covid-19 – abriu e está a fechar a ambiência socio-cultural-económica dos nossos dias.
Se em dezembro de 2020 vivíamos sob a apreensão do que viria a verificar-se, em dezembro de 2021 continuamos na ansiedade do que virá ainda. Se naquela data contávamos às centenas os infetados, agora – decorrido um ano – vemos que são aos milhares… Ao tempo estávamos em campanha eleitoral para a presidência da República, agora vemos titubeantes candidatos ao Parlamento a quererem dizer-nos que votemos neles. Apesar da bolha em que nos quisemos fechar – por razões higiene-sanitárias – continuamos a refugiar-nos em ilhas que aprendemos a dissimular…

1. Quando pensávamos que tínhamos evoluído em qualidade humanitária, vemos crescer atitudes e comportamentos cada vez mais egoístas e interesseiros, colocando os fatores individuais à frente da busca comum. Quando percebemos que as pessoas arranjam mais desculpas do que razões para esse fechamento aos outros. Quando, de tantas e tão variadas formas, se acentua mais o que divide do que aquilo que une… Então, temos de considerar que estamos numa crise de civilização, um colapso cultural ou mesmo uma rutura ético/moral…gravíssima.

2. Em muitos destes momentos fomos perdendo a racionalidade, deixando que aflorem mais as razões emocionais e não os motivos de âmbito intelectual. Por vezes até os aspetos afetivo-sentimentais correm o risco de serem ofuscados pelos comportamentos de ocasião. De tantas e tão variadas formas vemos pessoas a pensarem mais como vivem do que a viverem como pensam, nesse hedonismo difuso em muitos dos aspetos da nossa sociedade. Com que subtileza se arranja argumentos para exaltar a ‘minha’ autoestima, mesmo que isso colida com as vivências dos outros.

3. Embora o tema da saúde seja hoje transversal a todas as questões da vida, nunca como agora fomos atingidos no cerne da nossa (pessoal ou coletiva) identidade, da nossa vulnerabilidade e mesmo na fragilização a que estamos expostos. Bastará um sopro de nada ou um espirro de qualquer coisa para nos colocarem em confinamento, sob suspeita de contaminação e, por que não dizê-lo, na marginalização de sermos focos de transmissão da doença…

4. Um ano acaba, outro se avizinha. Queira Deus que possamos aprender com humildade e verdade a sermos sinceros, leais e humanos porque mais cristãos. Assim o desejamos para todos!

Nota
Ao longo deste ano de 2021 contabilizamos 169 textos (artigos) publicados neste blogue. Isto dá mais de um texto de dois em dois dias. Não sei se isto ajudou alguém. A mim fez-me pensar e escrever…quanto ao resto deixo à consideração aquilo que acharem mais adequado. O título está aí: interrogação (?) e admiração (!), reticências (…) para cada qual se acrescentar.

António Sílvio Couto

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Sinais inquietantes...nos cuidados de saúde


 Durante a pandemia a linha poderá estar muito ocupada, pedimos que não desligue... a sua chamada encontra-se em espera e pedimos que não desligue. Obrigada’.

Esta gravação foi a resposta da ‘saúde 2424’ a quem pretendia fornecer dados – e receber indicações – sobre as suas condições de saúde em contexto do ‘covid-19’... Depois de um inquérito (sim-não) em sistema audio, foi aquela resposta horas a fio do número ‘808242424’.

 1. Já se sabia, pelas notícias, que o estado da questão era o que agora reportei. Mas ter de passar pela purga da paciênica foi algo que não considerava ter de viver. Depois de um simples teste rápido que deu positivo e tomadas todas as (ditas e recomendadas) medidas de confinamento, tentei receber indicações daquele serviço de saúde de âmbito geral, anónimo e gratuito. Duas tentativas, com mais de uma hora em cada uma delas, levou-me a desistir, continuando com a prevenção de não-contacto com ninguém...que pode ir, dizem outras fontes, até dez dias... Por semelhança com outros casos assim procederei! 

 2. Notou-se, nas últimas duas semanas, uma afluência aos testes – rápidos ou outros – sobre o estado de cada um na relação com o vírus fatal. Múltiplas razões fizeram crescer os dados, chegando a haver cerca de trezentos mil testes diários, em locais destinados ao assunto.  Talvez por haver mais testagem o número dos infetados disparou, tendo atingido, a 28 de dezembro, 17.172 novos casos...com o prognóstico da tutilar da pasta da saúde a dizer que, na primeira semana de janeiro, atingiremos cerca de 35 mil novas situações...

 3. Em paralelo com todo este processo fomos vendo milhares de pessoas a serem vacinadas, sobretudo com a terceira (de reforço) dose. Eu até já tinha data e hora marcada para rececionar tal inoculação, mas a súbita detectação de um teste rápido positivo, fez-me tomar todas as medidas mínimas e desmarcar tal oportunidade de salvaguarda. Se tivéssemos em conta o número de infetados, mas sem as vacinas, isto estaria a ser uma mortandade séria, mas como boa parte da população, incluindo já crianças, tem, pelo menos duas doses, as coisas não se têm complicado com tanta gravidade...pelo menos assim parece!

 4. Talvez o mais preocupante na leitura que podemos/devemos fazer desta fase de pandemia é a facilidade com que as pessoas aligeiram as regras, fazendo com que pareça que vivemos num comportamento social ‘ió-ió’ – sobe-e-desce; desce-e-sobe – quase sem rumo nem nexo, mais ao sabor das circunstâncias do que das razões... As questões de teor económico como que se suplantam às motivações de saúde ou de segurança. Os resultados económicos condicionam a melhor e mais consistente vivência daquilo que deveria guiar os comportamentos. Assim não conseguiremos ultrapassar esta fase de provação da nossa cultura/civilização.

 5. Apesar da insistência ideológica de alguma ‘esquerda’ em querer fazer do ‘sns’ só um ‘serviço nacional de saúde’, é importante essencial tornar o ‘sns’ um ‘sistema nacional de saúde’, onde todos os setores intervenientes e não só o dito ‘Estado’ tenha prepronderância senão mesmo exclusividade. A ação do setor social, os designados ‘privados’ e o Estado devem articular-se para que tenhamos algo que sirva as pessoas nesta maré de fragilização, mas também sejam colocados ao serviço das populações infra-estruturas, equipamentos e valências, que, por não serem estatais têm tanta ou mais qualidade do que estas...  

 6. Na sua sabedoria diz o povo: em tempo de guerra não se limpam armas. Ora, parece chegada a hora de articularmos todas as forças possíveis e quase imagináveis para que esta pandemia deixe lições de cooperação e não de exclusão, de articulação entre todos e não de partidarite pouco abonatória de quem a defende e põe em prática.

Dizem que se vai agravar o panorama, em breve. Unidos poderemos servir mais e, sobretudo, melhor!

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António Silvio Couto

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Todos seremos (mais cedo ou mais tarde) contagiados…


 Decorridos quase dois anos de pandemia pelo surto de covid-19 os números são assustadores e reveladores desta ‘guerra’ sem quartel nem trincheiras, mas com vítimas crescentes ao segundo.

Eis uma breve resenha dos dados em Portugal…até ao momento: infetados (global):  1.286.119; recuperados: 1.161.615; óbitos: 18.890. A evolução desta matéria e mesmo as formas de enfrentar este vírus foi algo que teve uma aprendizagem muito específica: fomos passando da confusão dos números até à testagem mais ou menos em massa, passando pela vacinação – para já em três doses – dos mais velhos para os mais novos da população, à mistura com as recomendações das autoridades de saúde quanto à higienização, o distanciamento entre as pessoas e o uso obrigatório de máscara sanitária…

 1. Passado algum tempo de enfrentamento do problema do ‘coronavírus’ foi lançado para o ar uma suposição algo abstrata: de uma forma ou de outra, mas cedo ou mais tarde, seja qual for a idade ou mesmo a condição social, todos seremos contagiados ou contaminados, mesmo que isso implique uma forma diferente de ver, sentir ou tratar o problema… Depois das diversas variantes do vírus – alfa (identificada no Reino Unido), beta (identificada na África do Sul), gama (identificada no Brasil), delta (identificada na Índia) – e a mais recente – ómicron – tem feito vítimas com fartura…na qual se sinto, por estes dias, incluído. Depois de ter suplantado as etapas anteriores, num instante bateu-me à porta a necessidade de confinamento e de vigilância, mesmo que já estivesse com data marcada para rececionar a terceira dose de vacinação…

 2. Quem se queira interrogar sobre o modo ultrarrápido de difusão deste vírus terá de procurar múltiplas cambiantes, embora haja uma que se destaca: a mobilidade dos nossos dias tem sido uma das modalidades mais simples para que este assunto ganhe foros de universalidade, com as implicações inerentes aos cuidados que nos têm sido exigidos. Parece que nada nem ninguém está a salvo desta praga. Parece que estamos todos no mesmo barco – como nos disse o Papa Francisco, no simbólico dia 27 de março do ano passado.

 3. Continuo a não compreender que ainda haja pessoas que negam isto que nos está a acontecer e com tão gravosos resultados. Sejam quais forem as razões para tais negacionistas, dá a impressão que fazem tal papel para se exibirem na sua douta ignorância. É verdade que não sabemos quais as consequências a médio e a longo prazo da vacinação. Para já o efeito tem sido preventivo e, em muitos casos, tem salvado da morte grande número de pessoas. Não fosse o grande investimento no processo crescente de vacinação e estaríamos a enfrentar resultados ainda mais trágicos.

 4. Todo este complexo momento da Humanidade veio colocar-nos diante de algo simples e imediato: somos uma grande família, que sofre com quem sofre e que cuida de quem precisa, sobretudo na sua vulnerabilidade e fraqueza. Esta globalização na doença trouxe à consciencialização de todos que precisamos uns dos outros e que só pela união de esforços venceremos para bem de um maior número de pessoas. Na medida em que formos acreditando que a vitória sobre este vírus não se consegue senão pela unidade, mais e melhor seremos humanizados nas razões e nas consequências.

 5. Isto a que o Papa Francisco tem apelidado de ‘ecologia integral’ tem agora novas expressões na moral/ética de todos e de cada um. Na sua mensagem para o 55.º dia mundial da paz diz-nos: «é necessário (…) um pacto que promova a educação para a ecologia integral, segundo um modelo cultural de paz, desenvolvimento e sustentabilidade, centrado na fraternidade e na aliança entre os seres humanos e o meio ambiente».

Já aprendemos as lições desta pandemia? Para além do contágio/contaminação já percebemos que somos parte de um todo e global? Se nunca fomos ilhas, agora somos mais do que continentes na expetativa do bem comum pela fraternidade emergente do nascimento de Jesus na nossa carne humana. Efetivamente a doença humaniza-nos e faz-nos mais irmãos de todos porque frágeis e necessitados de cuidado.

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Critérios de paz: diálogo, educação e trabalho

 


Na mensagem para o 55.º dia mundial da paz, o Papa Francisco traça três linhas-forças para que a paz possa ser feita, vivida e, sobretudo, tornada ação humana: diálogo, educação e trabalho.

Respigamos alguns excertos da mensagem, colocando pequenas observações de ordem mais pragmática.

«Quero propor três caminhos para a construção duma paz duradoura. Primeiro, o diálogo entre as gerações, como base para a realização de projetos compartilhados. Depois, a educação, como fator de liberdade, responsabilidade e desenvolvimento. E, por fim, o trabalho, para uma plena realização da dignidade humana. São três elementos imprescindíveis para tornar «possível a criação dum pacto social», sem o qual se revela inconsistente todo o projeto de paz».

 1. Dialogar entre gerações para construir a paz

«Todo o diálogo sincero, mesmo sem excluir uma justa e positiva dialética, exige sempre uma confiança de base entre os interlocutores. Devemos voltar a recuperar esta confiança recíproca. A crise sanitária atual fez crescer, em todos, o sentido da solidão e o isolar-se em si mesmos.
Dialogar significa ouvir-se um ao outro, confrontar posições, pôr-se de acordo e caminhar juntos. Favorecer tudo isto entre as gerações significa amanhar o terreno duro e estéril do conflito e do descarte para nele se cultivar as sementes duma paz duradoura e compartilhada
».  

Os jovens com as suas ousadias tecnológicas precisam da sabedoria dos mais velhos, também eles já fascinados por tais inovações no seu tempo. A consonância entre os ‘guardiães da memória’ – como se refere o Papa Francisco aos idosos – e os jovens fará com que avancemos com respeito, serenidade e criatividade.

Precisamos de saber acolher estes desafios, até pela sabedoria da idade do próprio Papa…

 2. A instrução e a educação como motores da paz

«O investimento na educação seja acompanhado por um empenho mais consistente na promoção da cultura do cuidado. Perante a fragmentação da sociedade e a inércia das instituições, esta cultura do cuidado pode-se tornar a linguagem comum que abate as barreiras e constrói pontes. (...). É necessário, portanto, forjar um novo paradigma cultural, através de «um pacto educativo global para e com as gerações jovens, que empenhe as famílias, as comunidades, as escolas e universidades, as instituições, as religiões, os governantes, a humanidade inteira na formação de pessoas maduras». Um pacto que promova a educação para a ecologia integral, segundo um modelo cultural de paz, desenvolvimento e sustentabilidade, centrado na fraternidade e na aliança entre os seres humanos e o meio ambiente».

Perante a diminuição de investimento na educação – em detrimento das despesas militares e dos armamentos, em concreto – podemos já perceber algumas das consequências nas lacunas dos países e das nações. As prioridades têm de ser repostas ou poderemos entrar em colapso mais depresssa do que julgávamos.  

3. Promover e assegurar o trabalho constrói a paz
«O trabalho é um fator indispensável para construir e preservar a paz. Aquele constitui expressão da pessoa e dos seus dotes, mas também compromisso, esforço, colaboração com outros, porque se trabalha sempre com ou para alguém. Nesta perspetiva acentuadamente social, o trabalho é o lugar onde aprendemos a dar a nossa contribuição para um mundo mais habitável e belo».

Na linha de outras intervenções papais podemos considerer que o trabalho é a base sobre a qual se há de construir a justiça e a solidariedade em cada comunidade humana, tanto politica como ecclesial

= Cada item deste tríptico – diálogo, educação e trabalho – pode e deve funcionar como atitude de contínua referência à mensagem cristã, atualizada em cada ano pela partilha, visão e proposta do Papa. Se formos consultar os temas e os desafios dos Papas – de Paulo VI a Francisco – em cada ano conseguimos captar o que mais aflija cada época e nos diversos lugares da História. Caminhemos juntos, em sínodo, nestas três estradas do diálogo, pela educação e no trabalho…

 

António Sílvio Couto

domingo, 26 de dezembro de 2021

Não Andamos Todos Algo Lerdos?

 


Da composição desta frase podemos colher a palavra – ‘natal’. Ora, estando a vivenciar esta realidade socio-religiosa, poder-nos-á ser útil refletir sobre implicações desta tonalidade cultural mais ou menos abrangente de conceitos, valores e critérios com sabor cristão.
Por vezes falar ou escutar questões sobre o Natal, atendendo à idade dos envolvidos, como que desencadeia uma torrente de nostalgia, deixando a impressão de que, no passado, tudo era mais genuíno, um tanto mais sincero e, porque não dizê-lo: quase-verdadeiro… Efetivamente assim seremos condicionados no presente, sobretudo, se houver boas memórias disso a que nos referimos com afeição.

1. Dos termos usados na frase deste título talvez valha a pena explicar o que é ‘lerdo’. Significa: ser lento, pesado, vagaroso…estúpido, parvo, tonto. Diante destas asserções poderemos considerar que, nestas coisas do Natal, todos nos andamos a enganar (ativa ou passivamente), pois aquilo que dizemos crer nem sempre é aquilo que nos motiva a colocar as exigências cristãs do Natal na vida. Somos tantas vezes mais cultivadores da fachada do Natal do que da essência humano-espiritual do mesmo. Somos, por razões muito díspares, mais usufrutuários daquilo que o Natal nos trouxe do que participantes na sua real vivência.

2. De facto, os conceitos de Natal têm-se vindo a aferir mais às coisas materiais e materialistas do que às razões verdadeiramente de índole espiritual e de teor cristão. Com que facilidade fomos trocando os conceitos de fraternidade por prendas e presentes. Como se difundiu a figura do ‘pai-natal’, mesmo que distorcendo a ação benfazeja do bispo São Nicolau. Com que habilidade se transferiu o Natal de Jesus para uma pseudo festa da família, reunida mais em comezainas do que em partilha. Como cresceu a sensibilidade à ‘árvore de Natal’ sem a fazer ser essencialmente a ‘árvore da vida’ ou um tanto genealógica. Como se tem trocado O festejado pelos festejos em proveito individualista. De verdade, ‘não andamos todos algo lerdos’ de ignorância e de oportunismo?

3. A pandemia em curso veio colocar mais à luz do dia que tantos dos convívios natalícios não passavam de artefactos de fachada e como que possibilidades pouco abonatórias para as festanças de ocasião: durante o ano mordem-se e criticam-se, mas nos ‘jantares’ disfarçam as contendas com trocas de prendas, que mais não são do que a revelação inconsciente daquilo que desejam para si mesmos… De muitas e variadas formas precisamos de estar de atalaia para sermos mais coerentes e consequentes em cada tempo e em cada lugar. ‘Não andamos todos algo lerdos’ em assumirmos o que tão habilmente ainda escondemos?

4. Embora os conceitos, pelos quais nos regemos possam ainda ser de alguma matriz cristã, na maior parte das vezes estamos a quilómetros de distância do verdadeiro significado das coisas. Quem alia a compreensão dos presentes às dádivas que os magos trouxeram/levaram ao Menino? Quem lhe dá o conteúdo sem se fixar na forma? Quem pensa, de verdade, mais no significado do que na interpretação? Mesmo que ofereçamos presentes e não meramente prendas – aqueles dão-se em função de quem recebe, estes em razão de quem dá, pois vai preso – ‘não andaremos todos algo lerdos’ com o fascínio do consumismo, que entulha, cada vez mais, a nossa vidinha?

5. Enquanto é tempo, precisamos de acordar desta letargia que confunde o crer com o querer e que conjuga os tempos com os momentos, tornando-os suposições de vontades rebeldes, inconstantes e subjetivas. É tempo de parar diante da rudeza do presépio, não na mera ruralidade das coisas, mas na subtileza da entrega de um Deus feito homem por nós em amor e que continua agora a necessitar de nós – enquanto cristãos – para encarnar na vida de tantos outros, que Ele coloca no nosso caminho. ‘Não andemos todos algo lerdos’, adiando a assunção desta missão, onde quer que nos encontremos, sejam quais forem os ambientes e situações que Deus nos proporciona que vivamos.

António Sílvio Couto

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Beneficiado ou prejudicado?

 


Recorrentemente emergem notícias sobre situações de alguma tensão entre os intervenientes do setor da Igreja católica e certas autoridades socio-políticas. Por vezes os casos já são ‘velhos’, a novidade estará na forma algo acintosa como aparecem...ao público. Noutros momentos assemelham-se mais a ‘tricas’ de relacionamento humano do que do âmbito institucional. Fosforescências regionais ou localizadas ganham projeção mais ampla porque surgem nas notícias nacionais.

Atendendo a questiúnculas que deambulam por aí, talvez seja um tanto conveniente fazermos um percurso sobre a autonomização (feita e/ou desejada) das realidades temporais para com as forças religiosas e também das de condição religiosa para com os serviços públicos/politicos/autárquicos.

 1. O tempo de cristandade já passou. A sociedade não é mais cristã e os valores desta quase roçam a provocação quanto àquilo que era a influência da Igreja católica na condução de setores como a cultura e a educaçao/ensino, a saúde e a assistência social... que foram supletivamente assumidas pela Igreja como ações em favor dos mais necessitados, tendo sido vertidas em promoções do dito ‘estado social’, nos tempos subsequentes à segunda guerra mundial. O que ainda subsiste realizado pela Igreja quase é visto como atentado ao ‘estado-providência’, que algumas esquerdas querem impor a todo o custo e negligenciando a complementaridade mais correta, simples e articulada.

 2. Na década de 50 do século passado surgiu a expressão ‘cristandade profana’, numa tentativa de articular o que ainda vinha da Igreja-sociedade. Alguns dos mentores, fautores e executores da vida política como que foram abjurando dos valores e critérios de índole cristã, tentando substitui-los por outros mais transversais, crepitando das lojas transnacionais e assaltando o poder mais ou menos democrático. Nalguns casos a Igreja é como que tolerada se estiver nas atividades (ditas) sociais – nos bairros problemáticos, nas situações de fronteira, numa espécie de interposto de distribuição de comida, de roupa ou gerindo casos mais ou menos marginais... com marginalizados, mal-cheirosos e quase sem solução.  

 3. Como estamos ainda longe de cumprir aquela máxima do Padre Américo de que cada paróquia (freguesia) cuide dos seus pobres! Estes, por vezes, são terreno propício para certos momentos politicos de aliciamento ou de promessas demasiado repetidas e sem cumprimento. Tirem os pobres de alguns trabalhos sociais e de assistencialismo e crescerá o desemprego sem qualificação... dos executores empregados. Como seria útil para todos e conveniente para com quem trabalha nestes setores que houvesse diálogo e não concorrência, cooperação e não preferências pelos da sua cor partidária, serviço desinteressado a quem precisa e não manipulação de quem é beneficiado.

 4. Por uma questão de maior autonomia seria conveniente acabar com a presença de ‘autoridades civis’ em celebrações religiosas. Quem beneficia com tal exposição? Normalmente quem vem de fora, até pelo lugar de destaque que lhe atribuem. Na maior parte dos casos, pela não prárica religiosa, os ‘convidados’ ficam em má impressão diante dos outros. Do mesmo modo que não se justifica que alguém do setor religioso tenha qualquer destaque no atos de naturreza política, que esteja lá como cidadão na normalidade da sua participação. A distinção das águas traria mais automonia a todos e daria mais espaço de verdade nos relacionamentos instituicionais.

 5. Quando houver clareza nas intenções e lealdade nas vivências – político (autarca ou que ocupe outro lugar de escolha) ou religioso (padre ou bispo) – não seremos confrontados com beneficiados nem prejudicados, pois cada qual só é aquilo que é, fazendo-se respeitar e respeitando. Por mim não quero nem pretendo ser beneficiado por ser quem sou ou pelo lugar que ocupo e tão pouco negligenciado por ninguém.

 

António Silvio Couto

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Dos ‘Evangelhos da infância’… para hoje

 


Explicando o que se entende por ‘evangelhos da infância’ situamo-nos nos capítulos 1 e 2 dos evangelhos segundo São Mateus (1,1-2,23) e de São Lucas (1, 5-2,52). Nestes quatro capítulos, colocados numa espécie de ‘introdução’ aos respetivos evangelhos, encontramos em sumário os grandes temas que serão desenvolvidos no corpo do texto por cada um destes evangelistas.

Nos ‘evangelhos da infância’ encontramos várias figuras/pessoas relevantes na revelação de Deus: Zacarias e Isabel, João Batista, José e Maria, pastores, Herodes e magos, Simeão e Ana… em cada um podemos perceber como Deus se lhes revelou e como continua, hoje, a interpelar-nos na nossa caminhada pessoal, em família e de forma eclesial. 

 * O ‘evangelho da infância de Mateus’ tem um caráter fortemente apologético. O capítulo primeiro mostra que a messianidade é garantida pela sua origem – vide a ‘genealogia de Jesus’ – cf. Mt 1, 1-17: Jesus Cristo. filho de David, filho de Abraão numa espécie de artificialidade de conexão entre Jesus e ‘os principais depositários das promessas messiânicas (Abraão e David)’, evidenciando o evangelista que ‘nele encontra sentido toda a História de Israel’. Diferentemente é a ‘genealogia de Jesus’ no evangelho de São Lucas, colocada já fora dos ‘evangelhos da infância’ – Lc 3,22-38 – e destinada para os cristãos provenientes do mundo pagão e onde se faz a conexão entre Jesus Cristo até Adão ‘para acentuar a sua ligação com toda a humanidade’.

O evangelho de São Mateus prossegue com o ‘anúncio do nascimento de Jesus’ a José – Mt 1, 18-25: José, descendente de David cumpre as profecias messiânicas de Is 7, 14. O capítulo 2 divide-se em duas secções: 2, 1-12 e 13-23. Na primeira, como narrativa edificante, acentua-se a dignidade real de Jesus, nascido em Belém (cf. Mq 5, 1), reconhecida, indiretamente, pelo sinédrio e aceite pelo mundo dos gentios, representado pelos magos. Na segunda secção torna-se patente como Jeus, o chefe do novo povo de Deus, viveu na sua pessoa, e de modo mais eminente, as grandes experiências espirituais do Israel antigo – libertação do Egito e cativeiro (cf. Os 11,1; Jr 31, 15), dando ainda a São Mateus a possibilidade de responder à tipificação de Jesus como o ‘narazeno’ (cf. Mt 2,19-23)... 

 * O ‘evangelho da infância de Lucas’ é uma composição literária com recortes literários de fina textura: duas séries de quadros se entrecruzam entre si: uma sobre a vida de João Batista e outra sobre Jesus, naquilo que se poderia considerar de dois dípticos: os das anunciações –1, 5-25 a de João Batista e 1, 26-38 a de Jesus; as dos nascimentos – o de João: 1, 57-80; o de Jesus: 2, 1-21.

Digamos que os dípticos são pintados com o recurso à mesma técnica: o mesmo mensageiro (Arcanjo Gabriel) especializado dos mistérios dos tempos messiânicos; fórmulas análogas de saudação, reação da pessoa agraciada (Zacarias e Maria) e ulteriores detalhes da mensagem... nos dois casos, o primeiro quadro é preparação do segundo, isto é, no primeiro o prometido nascimento será ‘ex sterili’, enquanto no segundo o nascimento acontece ‘ex virgine’...o precursor e o próprio Cristo. As caraterísticas dos dois personagens – João e Jesus – são realçadas de forma clara.
Podemos ainda encontrar dois painéis suplementares: a visitação – Lc 1, 39-56 – onde se dá o primeiro encontro entre o Antigo e o Novo Testamento, pois as duas agraciadas reúnem-se numa atmosfera de alegria messiânica , reconhecendo a ‘velha’ Isabel a superioridade da ‘jovem’ Maria. Outro quadro – Lc 2, 21-40 – situa-nos no templo, numa espécie de apoteose, em que as figuras proféticas de Simeão e Ana aplicam a Jesus a essência de toda a esperança da salvação, anunciada no Antigo Testamento.

Em resumo: no ‘evangelho da infância de Mateus’ a figura principal é José, enquanto, no ‘evangelho da infância de Lucas’, depois de Jesus, a figura principal é Maria... sem esquecer ainda o tema da alegria, o papel importante das mulheres, sendo Jesus apresentado como o Salvador, sobretudo, dos pobres.
Diz-nos o Papa Bento XVI/Joseph Ratzinger, em ‘Jesus de Nazaré – a infância de Jesus’ – «Mateus e Lucas - cada um à sua maneira - queriam não tanto narrar ‘histórias’, mas escrever história: história real, sucedida, embora certamente interpretada e compreendida com base na Palavra de Deus. Isto significa também que não havia a intenção de narrar de modo completo, mas de escrever aquilo que, à luz da Palavra e para a comunidade nascente da fé, se revelava importante. As narrativas da infância são história interpretada e, a partir da interpretação, escrita e condensada.
Entre a palavra de Deus e a história interpretada há uma relação recíproca: a Palavra de Deus ensina que os eventos contêm ‘história da salvação’, que diz respeito a todos. Mas os próprios eventos desvendam, por sua vez, a Palavra de Deus e levam a reconhecer a realidade concreta que se esconde nos diversos textos
» (p. 21).

 Que este breve e conciso percurso pelos ‘evangelhos da infância’ nos possa ajudar a vivenciar melhor este tempo de proximidade ao Natal de Jesus.

 

António Sílvio Couto