Algo intrigante se passava nas comemorações de acesso das jogadoras portuguesas de futebol por terem conquistado o acesso ao próximo mundial da modalidade na Austrália e na Nova Zelândia. Muito para além da proeza nunca antes conseguida, havia um motivo bem mais prosaico e talvez materialista das designadas ‘conquistadoras’: cada uma recebeu pela ida a comparticipação, dada pelo organismo mundial que tutela o futebol, vinte e sete mil euros, pela façanha… Coisa pouca num país onde o salário é bem mais curto!
1. Diante desta substancial maquia quem não reagiria com tanto entusiasmo? Apesar da discrepância entre os valores pagos aos homens, as mulheres sentir-se-ão reconhecidas a condizer? Com a assunção das mulheres pela prática do futebol, haverá mais justiça ou crescerá a desigualdade? A divulgação do futebol feminino que significado trará para as gerações vindouras? Como explicar – a quem não saiba dos meandros do futebol – certas questões e problemas?
2. De registar que, do mundial de 2019 para agora, os prémios de presença do futebol no feminino em mundiais as verbas disponíveis triplicaram. Em relação ao montante atribuído aos praticantes masculinos o organismo mundial paga 350 mil euros a cada um… De facto, o fenómeno futebol conseguiu algo de extraordinário: de desporto popular passou a regime de elite, onde uns tantos conseguem serem reis e senhores do mundo só com a arte dos pés e, vá lá, de vez em quando com a cabeça. Esta distinção ‘pés-cabeça’ quer tão-somente realçar que a razão nem sempre anda pelas bandas do futebolês. Este continua a primar pelo básico, que são os ‘artistas’ explorados, vendidos e subornados pelos mais díspares interesses…
3. Efetivamente estamos a chegar ao cúmulo da insensatez: os números envolvidos nas transferências deste verão são disso um exemplo – as contratações dos países árabes de jogadores em final de carreira por milhões revelam que algo está, para além de podre, em vias de cavar o seu fim. Os petrodólares usados para comprar clubes na Europa, agora servem para financiar os intentos de sheiks e quejandos. Ora como o que move este mundo é o dinheiro, quase todos se calam pois não querem perder o espaço e os proventos que tais negociatas envolvem. A par com a droga/contrabando e a guerra, o futebol pode ser entendido como um eixo mobilizador dos povos e culturas, mas também poderá não passar de mais uma alienação sorvida por incautos.
4. O futebol-desporto deu lugar ao futebol-indústria de compra e venda de pessoas. Veja-se a cadeia de interesses à volta de um clube desportivo, onde o futebol seja a força mais representativa. Repare-se na forma acrítica como se fala de venda de homens/mulheres só porque tem habilidade para tratar com a bola. Atente-se ao tempo gasto por televisões e outros meios de comunicação para discutir questiúnculas do futebolês, onde a linguagem já tem código e gramática. Cuide-se o escândalo de silêncio quando as questões emergem do submundo do futebol, nalguns casos com o conluio de políticos e de outros responsáveis sociais.
5. Mesmo atendendo aos benefícios do futebol pela unidade de povos, de línguas e de culturas, não podemos calar questões básicas da dignidade humana, por vezes, atropeladas pelo futebol. Desde logo a condenação da ‘compra-e-venda’ de jogadores como se fossem mercadoria na praça de interesses menos claros. Também a tentativa de subverter os valores éticos com as negociatas entre certas figuras quase saídas do esgoto social. A proteção – tácita ou implícita – dada a dirigentes nem sempre capazes de respeitarem os adversários fazendo deles inimigos, ao menos à luz do dia.
6. Seja qual for o resultado da presença das ‘conquistadoras’ no outro lado do mundo, elas merecem respeito e, porque não, admiração… Dignos na vitória, reconhecidos pela derrota!
António Sílvio Couto
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