Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 27 de junho de 2024

Sonho da anagnórise

 


No rodapé de um comentário televisivo semanal apareceu a palavra ‘agnórise’, quando analisava o ‘comportamento’ ético-social de um certo político da nossa praça... numa alusão à tragédia grega... fazendo desse político uma espécie de condutor mágico dos seus votantes, mesmo que eles sejam levados a fazer o que não desejavam totalmente. Ao referir aquela palavra – creio que incorretamente citada, quando devia ser ‘anagnórise’ – fui em busca do seu significado e possível abrangência.

1. O que é ‘anagnórise’? Consultando a wikipédia encontrei:
A anagnórise (do grego antígo ‘anagnórisis’: 'reconhecimento') é um recurso narrativo que consiste no descobrimento, por parte de uma personagem, de dados essenciais de sua identidade ou de seus entes queridos ou do seu entorno - até então, ocultos para ela. A revelação altera a conduta da personagem e obriga-a a formar uma ideia mais exata de si mesma e daquilo que a rodeia.
O termo foi usado pela primeira vez por Aristóteles, em sua “Poética”. Ainda que a anagnórise seja um recurso frequente em muitos géneros, Aristóteles descreveu-a em relação à tragédia clássica, com a qual está associada de modo especial...
De acordo com Aristóteles, o momento ideal para a anagnórise trágica é a ‘peripéteia’ (giro da fortuna): num momento crucial, tudo se revela e fica claro ao protagonista, com efeitos quase sempre demolidores.
Na comédia, a anagnórise é também um recurso frequente. Ao estabelecer relação com uma personagem nobre, a sua extração humilde pressupõe um estorvo; no final da obra, descobre-se por algum indício a sua verdadeira identidade...

2. Perante este esclarecimento de índole cultural mais clássico será de perguntar, com o devido respeito ao dito comentarista e tendo em conta a figura política em questão: não andaremos a colocar demasiado alto a fasquia do pretendido, quando ele não passa de uma mera ave de capoeira cacarejante? Não faremos de certas figuras altaneiras, figurões de ocasião em maré de feira? Nesta fase de evolução da Europa – onde certas esquerdas estrebucham para não desaparecerem em definitivo – teremos líderes capazes de saberem interpretar a hora histórica em que nos encontramos? Como surgirão de entre os escombros da banalização – rica de coisas, mas empodrecida de valores – figuras que pensem no interesse comum e não nas suas tricas mais ou menos ideológicas?

3. A prova de que não temos sabido discernir os ‘sinais dos tempos’ é a mudança crescente de boa parte dos países europeus: o combate não se faz às pessoas, mas às ideias; a luta não se trava na rua, pela destruição dos bens públicos, mas pela resposta aos problemas reais atuais. O recurso a certos clichés parece esgotado em muita das sociedades da velha Europa, onde se atende mais ao que se recebe do que àquilo que temos de contribuir para o bem comum. E nem a guerra, há vinte e cinco meses na Ucrânia, atenuou a prosápia de certas forças, colocadas em cada um dos lados da barricada.

4. Urge, por isso, trazer para a discussão pública não essa quietude bafienta em que temos andado entretidos, mas questionar se a Europa que queremos não tem de ser assumida por todos e por cada um. Aqui se verá quem deseja ser parte da solução ou do problema: certos defensores do clima - mais parecem discípulos de Quichote de Lancha - estragam, mas não assumem as despesas; contestam como pseudo-pacificistas, mas acobardam-se na hora de darem a cara, pois se encobrem sob capuzes anónimos; exigem e nada dão pelos outros.

5. Tal como noutras épocas e civilizações, a União Europeia corre riscos. Assim os previnamos séria e responsavelmente, já.



António Sílvio Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário