Na complexa simplicidade daquilo que somos, por vezes, vemo-nos
confrontados com a necessidade de refletirmos sobre algo que dizemos e que nos
marca pela experiência do nosso existir. Com efeito, a ofensa é mais da área da
emotividade e não redutivamente da inteligência… embora esta possa vir a ser
mais ou menos ferida, sobretudo quando a ofensa vem de alguém a quem podemos
estimar…Há quem diga que ‘só me ofende quem eu deixo’… tentando com isso
reportar-se a situações que têm mais a ver com quem ofende do que com as
ofensas praticadas…
= Há, no entanto, situações e momentos em que pode acontecer de ser viver,
dalguma forma ao nível espiritual, o perdão a quem nos possa ter ofendido e não
ter sido curado ou liberto, ao nível psicológico e emocional, dos mais variados
traumas conscientes ou mesmo inconscientes. Com efeito, há imensos aspetos da
nossa personalidade (mais ou menos amadurecida) que precisam de ser detetados
no contexto do relacionamento com os outros, mas onde Deus também conta e/ou
participa, como o grande Outro, que fundamenta a nossa alteridade e a cuja
imagem nos descobrimos, nos entendemos e nos aceitamos. De facto, no tropel de
individualismos com que nos confrontamos permanentemente, temos de aprender a
discernir as nossas feridas e a detetar as mágoas dos outros…muitas das vezes
camufladas, em nós e nos outros, com roupagens religiosas mais ou menos
coerentes…ou difusas.
= Com a convocação do próximo Jubileu – o 29.º na história da Igreja
católica – a decorrer entre 8 de dezembro deste ano e a solenidade de Cristo
Rei do ano que vem, o Papa Francisco referiu: ‘pensei muitas vezes no modo como
a Igreja poderia tornar mais evidente a sua missão de ser testemunha da
misericórdia. É um caminho que começa com uma conversão espiritual; e temos de
fazer esse caminho. Por isso decidi proclamar um jubileu extraordinário que
tenha no seu centro a misericórdia de Deus. Será um Ano Santo da misericórdia’.
Mais um gesto profético do Papa Francisco, que nos vem incomodar nas nossas
certezas religiosas e nessas outras convicções com que tantas vezes nos
tratamos a nós mesmos e com alguma rigidez de doutrina invetivamos os demais…
Esta provocação do Papa Francisco foi, aliás, feita no contexto duma
celebração penitencial, no dia do aniversário (segundo) da sua eleição e em que
ele mesmo se confessou e atendeu de confissão outros penitentes como ele.
Temos ainda de recolher os mais diversos indícios de que algo estava para
acontecer, pois o Papa nos tem vindo a alertar para a cultura da indiferença –
a Deus e uns aos outros – bem como para que sejamos dignos de acolher Jesus na
Igreja e nas periferias humanas e sociais.
= No contexto ainda da caminhada da Quaresma e também da preparação para o
sínodo ordinário – depois do extraordinário do ano passado – da família,
durante o mês de outubro, é essencial que não nos fiquemos na espuma dos
problemas – com tantos dos nossos contemporâneos se entretêm – nas que sejamos
capazes de nos questionarmos a nós mesmos e a quanto em nós precisa de conversão
à misericórdia divina e nas relações humanas. Efetivamente, quando nos deixamos
tropeçar mais na ofensa do que na misericórdia, já estaremos abertos às
condições de a acolher, humildemente? Quando nos nossos ambientes – humanos e
sociais, religiosos e culturais – se cultiva mais o ressentimento e a vingança,
não estaremos ainda mais necessitados de sermos envolvidos e aconchegados pela
misericórdia divina?
Há instituições que, historicamente, são designadas de ‘misericórdias’, mas
sê-lo-ão? Ou não serão antes plataformas de interesses e de
vaidades?...Infelizmente – até por que sou ‘irmão’ de uma – muita coisa ocorre
que desvirtua a identidade! Está na hora de aproveitar o tempo de jubileu… para
a conversão pessoal e comunitária.
António
Sílvio Couto
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