Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 19 de julho de 2018

Dimensão artística das festas e romarias


Será preciso aprender a ler com olhos de seriedade alguns dos fenómenos da cultura popular – neste momento dizemo-lo na versão nortenha/minhota – manifestada nas festas e romarias, que se vão vivendo com abundância na época do verão.

- Desde logo o cumprimento da tradição, sendo esta vista mais como meio de desenvolvimento do que como resquício atávico, imobilista e conservador. Ousar fazer uma festa com meios económicos suficientes exige a quem promove a festa uma capacidade de invenção e de ousadia, que faz dos festeiros ou elementos das comissões pessoas com o mínimo de imaginação e de criatividade para captar para o projeto quem possa não acreditar nele tanto quanto seria desejável…

- Outro aspeto a ter na devida conta é a escolha dos ingredientes musicais a incluir no programa, pois deles dependerá também a participação de outros concidadãos com maior ou menor interesse e na abertura dos cordões à bolsa…Os melhores do cançonetismo nacional são os mais desejados, embora haja custos – mal calculados e exorbitantes – que podem significar a possibilidade de hipotecar os recursos posteriores…Os atrativos da festa podem fazer dela uma grande, média ou ridícula realização… popular e/ou populista.

- Na esmagadora maioria das festas encontramos um santo, uma santa ou alguma invocação mariana ou mesmo cristológica a dar suporte religioso a esse tempo festivo. Tempos houve em que a ‘guerra’ entre os promotores das festas e as autoridades eclesiásticas não era pacífica e, em muitos casos, menos civilizada (na forma e no conteúdo), pois uns e outros consideravam que os do outro lado tinham de se submeter às suas orientações, pretensões ou mesmo razões. Embora, hoje, o assunto não seja tão percetível, temos vindo a assistir a uma crescente paganização das festas religiosas, senão mesmo iremos num caminho paralelo onde os atos religiosos – missa e procissão, no essencial – ainda têm lugar, mas com algum valor residual, tudo dependendo de quem orienta, encaminha ou até é executor da festividade…Se compararmos os valores financeiros envolvidos na execução dos atos religiosos e do foguetório gasto, ficaremos a perceber o que há de essencial ou de secundário num e noutro…dos campos.

Atendendo às possibilidades que as festas da religiosidade popular apresentam é fundamental que os responsáveis eclesiais sobre esta matéria tenham na devida conta as potencialidades que elas permitem: bem organizadas as festas são importantes momentos de evangelização e de comunicação da mensagem cristã; no entanto, se menosprezadas podem quase tornar-se ridículas ou mesmo contrassinais…cristãos. 

- Por excelência a noite de pirotecnia é um dos momentos simbólicos de maior representatividade duma festa popular/religiosa: cor e luz, som e envolvência, ritmo e musicalidade…esta agora mais cuidada e com novos apetrechos. O fogo-de-artifício é, cada vez mais, uma etapa cénica, onde cada som e imagem querem fazer sonhar de olhos abertos…Como seria útil e conveniente descodificar a comunicação do fogo-de-artifício, dando-nos critérios de leitura para vermos, lendo e olhando, percebendo.

- Fixemo-nos por momentos num dos números mais relevantes da festa/religiosa/cultural: a procissão. Mais do que um aglomerado de pessoas e de sinais, importa perceber a procissão como um ato cristão de evangelização, numa sociedade em processo de cristandade profana, isto é, onde os critérios de valores são cada vez menos ritmados pela simbólica do evangelho. Quantas vezes os ‘assistentes’ à procissão não conhecem os santos/as que nela ‘desfilam’ e tão pouco a sua historiografia… Quantas vezes será preciso educar pela positiva os mais diversos intervenientes no ato cultural/religioso em apreço… Quantas vezes teremos de usar de pedagogia para que, não sendo entendida a mensagem apresentada, os espectadores da procissão não se sintam à margem daquilo que se quer comunicar…

Pela experiência colhida nesta matéria temos procurado fazer do arranque de cada procissão um momento explicativo dos vários elementos que a compõem, criando em quantos for possível uma certa expetativa sobre a procissão, não deixando cair na rotina e numa certa tradição ignorante e, por consequências, atrevida. Talvez nos falte, geralmente, algum zelo pastoral para que não caiámos em situações escusadas e que poderiam ter sido prevenidas.

Não haja dúvida, as festas – e as procissões em particular – são momentos de arte humana e cristã. Duvidar disso seria cavar o sepultamento de momentos preferenciais de evangelização e de cultura. Façamos mais!

 

António Sílvio Couto


segunda-feira, 16 de julho de 2018

O chilrear dos pardais…humanos


Por esta época do ano é bom de ver, de reparar e de observar na quantidade de pardais que esvoaçam perto de nós: uns mais velhos tentam ensinar os mais tenros a voar; outros mais juvenis iniciam o seu processo de aprendizagem; outros ainda chilreiam anafados, mas à procura de mais alimento…

Se consultarmos alguma fonte de informação veremos que há, essencialmente, duas espécies de pardais: o ‘domesticus’ e o ‘montanus’… ambos de cor acastanhada ou acinzentada e de pequena estatura, sendo uma espécie gregária e podendo formar grandes e significativos bandos.

Não é, no entanto, sobre os pardais-aves que desejamos falar, pois seriam precisas mais lições de ornitologia e isso levaria algum tempo, embora fosse útil para desenvolver a nossa cultura opinativa com ciência melhor fundamentada.

Atendendo a esta analogia fique, desde já claro, que os pardais a que me vou reportar são mais essa passarada que esvoaça, canta, se aninha ou tenta fazer criação lá para os lados do parlamento… e que o recente debate (apelidado) de ‘estado da nação’ deixou à vista muito mais do que pardais ou de que meros ninhos de interesses agora e no futuro próximo… 

* Vejamos algumas das caraterísticas da passarada lá no parlamento: nota-se que há umas visões mais domésticas e outras mais de espírito montanhês; uns apresentam-se com tiques de citadinos e outros mais como ruralistas; uns pretensamente mais instruídos e outros mais na situação naturalista; uns piam e chilreiam notas duma música já requentada, outros anseiam serem autores de letras mas tropeçam na sua execução…

* Com relativa facilidade vamos vendo emergirem candidatos a lugares de altos voos, mas que por agora só esvoaçam de forma tímida e soletrando cantos aprendidos na época da dialética, só que entretanto não se conseguiu elaborar uma nova antítese. É confrangedor ver gente mais nova a guiar-se pelo devocionário marxista de antanho, criando e recriando conceitos assaz exprimidos sem qualquer fruto nem sumo… É preocupante ver pessoas alinhadas por conceitos que já demonstraram que não servem nem valem seja qual for a latitude…vejam-se os frutos na Venezuela, na Coreia do Norte e em tantos outros regimes de ditadura de partido único…

* Os pardais que povoam o parlamento fazem dele uma espécie de para-lamento, tal é o efeito que provoca em que vê as guerrilhas e artimanhas, quem observe os tiques gregários que fazem desses pardais aves de arribação, muito pior de que fossem andorinhas que chegam pela primavera, acasalam, dão fruto e partem… Não é isso que vemos no parlamento: os pardais não descolam, sobretudo se forem alimentados nem que seja pelas migalhas das mesas dos ricos…da UE.

* No espetro politico/partidário representado no parlamento vemos muitos pardais que deambulam dum lado para o outro e nem sempre é fácil detetar quem são nem a quem servem. Por vezes são mais fortes os laços extraparlamentares do que os vínculos entre as bancadas, dizemo-lo dos convénios desportivos e das servidões maçónicas transpessoais… já para não falar das cadeias da ideologia de género…Os pardais desses setores gregários criam, por vezes, mais laços do que os programas pelos quais foram eleitos.

* Agora que caminhamos apressadamente para ir a votos (dentro e fora das agremiações), vemos que muitos destes pardais vão saltitando de posto em posto até ao posicionamento mais favorável e aceitável…Não há como não precisarmos de estar vigilantes, pois não será conveniente que nos tentem enganar mesmo que à socapa.

 

= De muitos outros pardais poderíamos falar, bastará escolher o campo e aplicar a grelha de leitura, pois em tantos dos ‘mundos’ – até nos de âmbito religioso e eclesial – chilreiam pardais à procura de espaço, de lugar de subida e mesmo de posicionamento nas horas de vitória… Cuidemos do nosso lugar em avaliação constante e exigente. Não basta olhar para os outros, precisamos de, através deles, vermos a nossa figura, por vezes também suficientemente, ridícula! Coerência a quanto obrigas…

        

António Sílvio Couto  

terça-feira, 10 de julho de 2018

Exploração dos dramas – notícia ou espetáculo?


Quando acontece algo de mais dramático na ‘nossa’ vida coletiva, vemos que a comunicação social – poucos ficam de fora para não perderem audiências – se aproveita do assunto quase até à exaustão, umas vezes de forma séria e sensata, mas, na maior parte dos casos, espremendo o assunto de forma nem sempre humana ou mesmo respeitadora para com quem está a viver – emocional e afetivamente – o assunto.

Os ‘dramas’ tanto podem ser os acidentes rodoviários, aéreos ou de qualquer outro meio, como os episódios de desentendimento entre pessoas, agremiações, coletividades ou entidades mais ou menos públicas, como ainda suposições, boatos, erros ou até acusações sobre figuras, personagens ou personalidades… Quase tudo serve (ou vai servindo) para criar notícia ou fazer dela algo de espetacular que possa prender os leitores, ouvintes, telespetadores ou navegadores da internet…

Apesar da envolvência de algumas vidas, o ‘drama’ das crianças na Tailândia ganhou foros de internacionalização, quase rivalizando com o mundial de futebol na Rússia, sobretudo depois que a seleção nacional regressou a casa. As horas e dias gastos a escarafunchar os interesses dum clube de futebol – esquecendo acintosamente as outras modalidades – tornou-se algo de doentio e a roçar o escabroso, sobretudo para quem possa ter um pingo de vergonha, de bom senso e de honestidade mental e racional.

Agora os ‘dramas’ têm de ser noticiados, preferencialmente, em direto, com direito a imagens sensacionais, sem resguardo da intimidade das pessoas e nem as cortinas colocadas pelas autoridades salvaguardam quem possa estar envolvido – direta ou indiretamente – no assunto. Os folhetins de telenovela passaram a estar sem guião e os ‘atores’ são os que intervém na notícia em que o quanto mais grave for mais atenção chama e merece tempo de antena…

Recordo com alguma ironia a forma como, um dia, um patriarca de Lisboa respondeu a uma jornalista, que lhe fez uma pergunta, que ele considerou inadequada: ó menina, isso é pergunta que se faça! Ou ainda a estupefação com que vi e ouvi um desse novatos na matéria, mas que queria uma reação a quente sobre um assunto, ao perguntar: como é que se sente?... O inquirido calou-se e fez bem, pois a resposta a dar, depois dum acidente grave, não se verbaliza com facilidade e tão pouco com questões inoportunas…

Não deixa, entretanto, de ser preocupante o que um dirigente dum partido político respondeu, por estes dias, a quem o questionava em reação a um título duma entrevista sobre o tema da justiça. Disse o tal responsável partidário: qualquer dia ninguém aceita dar entrevistas, pois distorcem o que se diz e tiram-no fora do contexto em que é dito…

A avidez para querer estar na frente dos concorrentes não pode atropelar quem torna público o que pode interessar à informação dos leitores, ouvintes ou telespetadores. A seriedade da notícia não pode ser vendida à pressa para cativar quem lê, vê ou ouve… Dá a impressão que alguns dos intervenientes se deslumbram com o aparecimento que lhes é permitido, podendo nem sempre estarem preparados para lidar com a visibilidade e, portanto, com as consequências daquilo que dizem, fazem ou como se apresentam. Alguns/algumas como que se deixam explorar até que renda a exposição. Casos há em que se percebe que são esquartejados pelo bisturi do sensacional sem disso se darem conta, permitindo que seja exposta a sua vida privada e confundida a figura com as figurações…

Algo bem distinto é esse outro campo em que algumas instituições se resguardam num certo silêncio e em não ser dito nada ou muito pouco, que, depois, quando algo lhes bate à porta ficam sem capacidade de reação e sem jeito para a comunicação… Apesar de tudo (isto é, de alguma evolução) a Igreja católica – e as suas formas de presença na condição de mundo – ainda não se apercebeu que precisa de aprender esta comunicação, respeitando e fazendo respeitar, o seu tempo e a oportunidade de quem faz a comunicação.

Há uma coisa que em todo este tema é fundamental: viver na verdade, sem tentar esconder ou esconder-se sob a capa de alguma ocultação, seja porque útil ou até como estratégica. Diz o povo com sabedoria: quem não deve não teme…e mesmo que tema não se pode refugiar na meia-verdade ou na subtileza da mentira.

Os ‘dramas’ não podem ser reduzidos a meras notícias e muito menos podem ser fabricados como espetáculo, antes temos todos de respeitar as pessoas envolvidas para nós próprios sermos respeitados naquilo que há de mais sagrado na pessoa humana: o seu mistério, sem fazer disso mistérios!

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Da longevidade à natalidade…como discernir?


Dá a impressão que estes fatores se tornaram arbitrários e vieram confundir-se mutuamente. Assim a longevidade atirou a causa da natalidade para um campo de ‘inverno demográfico’, pois viver mais tempo não tem vindo a significar maior opção pela vida, antes pelo contrário, parece que o prolongamento dos anos de vida tornaram as pessoas mais egoístas e centradas em si mesmas…

Diante desta espécie de paradoxo dos nossos dias será preciso cuidar dum discernimento onde sejamos capazes de saber entender as causas desta quase-conflitualidade de interesses e, por conseguinte, andando em busca das consequências agora e no futuro próximo.

= O que é o discernimento?

Diz o Papa Francisco na sua mais recente exortação apostólica – ‘Alegria e exultai’ – (n.º 166): «Como é possível saber se algo vem do Espírito Santo ou se deriva do espírito do mundo e do espírito maligno? A única forma é o discernimento. Este não requer apenas uma boa capacidade de raciocinar e sentido comum, é também um dom que é preciso pedir. Se o pedirmos com confiança ao Espírito Santo e, ao mesmo tempo, nos esforçarmos por cultivá-lo com a oração, a reflexão, a leitura e o bom conselho, poderemos certamente crescer nesta capacidade espiritual».

- Que lições podemos e devemos colher desta quase-definição de discernimento?

- Como seremos capazes de inserir, na nossa vida cristã (teórica ou na práxis), eixos de reflexão sobre longevidade e natalidade?

- Será que os cristãos/católicos destoam, positivamente, da normalidade da população pelo entendimento e vivência que têm da longevidade e da natalidade?

- Não andaremos a fazer zapping sobre vários assuntos, sem nos determos na solução dos problemas de forma mais correta e adequada?

- À boa maneira da mentalidade do nosso tempo não nos moveremos mais em campos virtuais do que em terrenos de compromisso e de solução das questões essenciais da vida?

- Não faremos do secundário (urgente) o essencial e deste o menos interessante? 

As pessoas passaram – quase sem nos darmos conta, cada um que o diga de si mesmo! – a viver mais tempo (anos, com relativa saúde, com condições de qualidade) e isso criou novas expetativas. À boa maneira duma frase dos salmos da Bíblia não morrer centenário tem vindo a ser normal. No mínimo não chegar à barreira dos oitenta anos parece uma exceção, coisa que há cinquenta anos era considerado o contrário. Fruto de muitas condicionantes, esta longevidade veio trazer outros problemas, desde o âmbito familiar até a dimensão do estado, sem esquecermos as implicações sociais, como as reformas, a assistência na saúde e tantas outras questões que ainda estão a ser enquadradas no comportamento geral.

Poder-se-á considerar que esta seleção dos mais capazes foi alicerçada numa longa e árdua colheita semeada no tempo da segunda guerra mundial e que talvez isso não signifique que os que daí nasceram possam dar os mesmos frutos. Gente provada na dificuldade sobreviveu à custa de muitos sacrifícios e provações. Ora, os nascidos da paz nestes setenta anos sem guerras na Europa poderão não ser da mesma jaez nem com resultados tão benéficos. Isso mesmo se pode, desde já detetar, nos filhos e netos desses ‘filhos da guerra’: a opção pela natalidade caiu abruptamente, logo a seleção não é feita pela qualidade de resistência, mas por acomodação à não-existência. Por seu turno, a difusão das vacinas, que fizeram com que muitos fossem furtados à morte precoce, agora fazem viver muitos dos contemporâneos numa quase-dependência da medicação, gerando assim frutos de laboratório e não pessoas crivadas – passadas pelo crivo – pelas dificuldades da vida, vencendo-as.

De algum modo longevidade e natalidade podiam e deviam ser dois polos do desenvolvimento do nosso tempo, no entanto, se não forem bem equilibrados poderão ser duas vertentes sociais, culturais e éticas que se podem anular, se não houver quem ajude a fazer a correta conjugação: não haverá longevidade se não acontecer natalidade. Esta será sempre o ponto de partida para aquela, tendo em conta os cuidados, as prevenções e mesmo as opções pela vida saudável, equilibrada e harmoniosa… seja qual for a etapa!     

 

António Sílvio Couto  


quinta-feira, 5 de julho de 2018

Requalificar estradas ou valorizar pessoas?


Ouvimos, por estes dias, ser afirmado pelo responsável máximo do governo que não é possível requalificar uma estrada de grande intensidade de trânsito e, ao mesmo tempo, pagar aos funcionários públicos – no caso os professores em protesto e em greves – o tempo de trabalho já realizado…

A requalificação do IP 3 vai custar 134 milhões de euros e estima-se que possa estar concluída em finais de 2022, isto é, daqui a quatro anos e, por isso, a fechar o ciclo da próxima legislatura.

Por seu turno, a reclamação do tempo de serviço, após a congelação dos ordenados significa, no caso dos professores – nove anos, quatro meses e dois dias – teria um custo ao Estado/governo de cerca de 500 milhões de euros por ano…

Ora, é diante desta discrepância de números e de gastos que ouvimos o chefe do executivo dizer que não há dinheiro para fazer as duas coisas, ou ainda tantas outras a que se fizeram criar expetativas de que já não estamos em austeridade e de que há dinheiro para satisfazer as (legítimas e razoáveis) pretensões de setores mais reivindicativos e mobilizados profissional, social e sindicalmente.

Como tem sido noticiado há grupos de classe que se sentem no direito de fazerem valer idêntica pretensão: a descongelação das carreiras – saúde, justiça, forças armadas e de segurança e tantos outros que acreditavam que o tempo do aperto nas contas estatais tinha sido ultrapassado. Agora temos vindo a saber que, afinal, isso não passou duma miragem: as contas estão mais ou menos equilibradas – para UE conhecer, aceitar e engolir – mas falta capacidade de cumprir a ‘palavra dada’ aos suportes da utopia. Sim, trata-se duma utopia – sem lugar, sem valor e sem credibilidade – que está prestes a sair do encanto das suposições. Se os garantes do sonho acordaram que dizer do resto do povo que pensou ser real o que lhe quiseram vender, impingir e ludibriar…   

Sempre temi que as contas que fabricaram andassem enganadas. Sempre me pareceu que não era duma forma tão rápida que saímos do fosso. Sempre me pareceu que não é atirando dinheiro para as mãos do povo que se está a governar bem. Sempre me quis parecer que não se pode distribuir o que não se tem e que mais cedo do que tarde teríamos de pagar a fatura duma certa ilusão, pois o desemprego não diminuiu por haver trabalho, mas por terem sido maquilhados os números com uma emigração mal disfarçada, mesmo que à custa da mentira, da falácia e até da manipulação…bem servida por uma comunicação social bem urdida nos antros da ideologia do faz-de-conta…até ver!

Atendendo às matizes deste assunto poderemos considerar: quanto maior é a ilusão, pior será a convulsão… De facto, tem faltado claramente capacidade de dizer a verdade – sem refúgio nem ancoradouro nas acusações para com os antecessores – e particularmente de viver na sua concretização de ‘palavra dada, é palavra honrada’… Noutros tempos já fomos vivendo em idênticos cenários e só conseguimos perceber o logro quando já era tarde, tendo de pagar a fatura com juros e apertos de cinto… senão todos pelo menos os mais vulneráveis e frágeis da nossa sociedade, que atingem um terço da população que se encontra no limiar ou abaixo da linha (in)aceitável da pobreza… 

= Por estes dias ouvimos ainda um antigo responsável de governo e da presidência invetivar a aposta no investimento nas autoestradas, nos pavilhões gimnodesportivos e nos campos de futebol, precisando, isso sim, de criar condições para que possa haver mais crianças…

Efetivamente, dá a impressão que os nossos governantes perdem um tanto a lucidez enquanto ocupam os lugares de mando, recuperando esse bom senso anos mais tarde, quando já tenham percebido alguns dos ridículos em que se entretiveram e outros afins, quase inúteis na hora da decisão com implicações sobre os demais.

Seria de bom-tom e salutar para o exercício de governação que os responsáveis – seja qual for a instância de exercício – não percam o contacto com a realidade, sabendo quanto custa a vida, quais são os preços dos bens que lhes são servidos à mesa, as contas que têm da fazer para colocar combustível no carro e até das dificuldades que a população normal tem de enfrentar quando vai aviar-se nas compras de semana ou para o mês… Sem esta normalidade corremos o risco de sermos governados por anormais sem-rei-nem-roque…

 

António Sílvio Couto  


quarta-feira, 4 de julho de 2018

Do Mediterrâneo fatal aos refugiados ‘invasores’


Parece que nunca como agora o ‘mare nostrum’ se tornou um espaço tão perigoso e tão fatal, mais um espaço de morte do que passagem para vida, sepultura para muitos anseios e fronteira para tantos que, saindo de África e do médio Oriente, tentam encontrar na Europa um lugar de vida menos aflitiva e com outra visão para o futuro…pessoal e familiar.

Várias operações foram tentadas para vigiar, acolher e encaminhar a vaga de refugiados que, desde 2013, têm procurado a Europa do sul na ânsia duma vida melhor, com paz e algum sossego para tanta gente marcada pelo sofrimento, a perseguição – ética, religiosa e política – e mesmo a fome.

‘Refugiado’ é hoje um termo usado centenas de vezes por dia, tanto para falar de situações de pessoas, como para caraterizar certas posições políticas que podem servir de arma de arremesso para fações extremistas, sem esquecer as causas dessa vivência nos tempos atuais.

Em 2015, refugiado foi a ‘palavra do ano’, em Portugal. Temos o ‘dia mundial do refugiado’ a 20 de junho. Há, ao nível da ONU, uma agência e um alto-comissário. Haverá, tanto quanto é possível aferir, cerca de 70 milhões de refugiados, neste momento. Ouvimos notícias sobre barcos que acolhem refugiados e não sabem onde os podem descarregar – a palavra é dura, mas, na maior parte das vezes, é talvez a mais adequada – à mistura com posições racistas, xenófobas, esclavagistas, securitárias, ofensivas…desumanas.

Não esquecerei, possivelmente, para sempre, uma observação que fiz, creio que no ano de 2015, no decorrer duma festa onde se gastam rios de dinheiro com fogo-de-artifício, quando sugeria que se podia poupar o custo duma caixa de fogo, socorrendo algum refugiado… logo uma voz ripostou: temos tantos cá, precisamos é de cuidar dos nossos… Claro que não fez nada pelos ‘nossos’ e os outros continuam a parecer invasores da nossa quietude de país egoísta, interesseiro e insensível aos que sofrem…para além das vagas de solidariedade e a pedido-e-gosto! 

= Que explica mais profundamente essa razoável acomodação da Europa para com os refugiados? Sendo a maior parte dos países europeus resultado de vagas de refugiados, haverá algum complexo de culpa (ou de desculpa) para que isso não nos incomode? Para além do recurso aos migrantes, os refugiados não têm sido no passado (recente ou longínquo) uma fonte de renovação – social, demográfica e ética – da sociedade europeia? Não nos estará a faltar um pouco de humildade para contribuirmos mais para a humanização da sociedade, se mudarmos a nossa posição para com os refugiados, migrantes e itinerantes?

Nota-se claramente uma mudança de atitude, sobretudo dos europeus, para com os refugiados e os prófugos. Anteriormente esses fenómenos aconteciam em África, quando a instabilidade sócio/política fazia com que os derrotados tivessem de procurar outro lugar para viver e as lutas tribais faziam vítimas sem conta, isto é, sem se saber quantos nem como. Muitas vezes eram os europeus os criadores dessa instabilidade, mas que nem sempre eram responsabilizados, devidamente, pelos seus atos e guerras.

Agora são os perseguidos, os esfomeados, as vítimas das guerras, os que aspiram a uma vida melhor, que invadem a pacatez da Europa apodrecida no seu bem-estar mais ou menos de preguiça, de pouco trabalho (35 horas semanais é muito) e de passatempo. Eis que os migrantes/refugiados/prófugos – não é tudo o mesmo, mas quase vai dar tudo ao mesmo – chegam e são colocados em redutos de espera, avaliando as quotas de aceitação ou colocando barreiras e dificuldades aos residentes e habitantes…se bem que possam ser descendentes de outros como os que agora pedem ajuda.

Os mesmos que contestam as posições de Donald Trump na política migratória dos EUA, comportam-se como populistas anti-refugiados na Europa. Parece muito simpático receber os migrantes e refugiados, desde que seja na casa dos outros e não venham eles fazer perigar as nossas comodidades não-conquistadas, mas geridas a bel-prazer... Há cada vez mais um confronto civilizacional nesta questão da mobilidade humana, pois os direitos de viajar, de procurar melhores condições de vida, de circular por entre países, nações, povos e culturas é para todos e não se pode reduzir a um pequeno leque de beneficiários…

Talvez tenhamos de nos colocar na pele dos migrantes e dos refugiados e, assim, possamos sentir e ver quão injustos temos sido para com outros, que têm tantos direitos/deveres quanto nós!    

 

António Sílvio Couto


segunda-feira, 2 de julho de 2018

Ai de vós, quando todos disserem bem de vós


No enunciado do sermão da montanha, Jesus exclamou a terminar: ‘felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque será grande a vossa recompensa no Céu; pois também assim perseguiram os profetas que vos precederam’ (Mt 5,11-12).

Nesta 9.ª bem-aventurança encontramos um grande desafio: ter dignidade e qualidade para ser perseguido por causa de Jesus. Com efeito, se Ele por aquilo que disse e pelo que viveu foi perseguido, que outra condição desejará ter quem pretenda ser seu discípulo, senão esta de viver a perseguição por sua causa…não em razão daquilo que somos, dizemos ou pensamos.

De facto, nos tempos mais recentes parece que vai conquistando adeptos e seguidores um novo ‘ismo’: o unanimismo, isto é, ser capaz de não destoar de nada nem de ninguém, pois é tão unânime que todos aplaudem, uma grande maioria aprecia e uma confortável aceitação está de acordo com o que diz, pensa, escreve, intervém ou mesmo se situa entre muitos e tão díspares opiniões, propostas ou até ideologias.

Algo muito semelhante a este tão prolixo unanimismo percorreu, recentemente, a nomeação dum eclesiástico para uma tarefa, que foi vista como de grande promoção pessoal e quase institucional/nacional. Houve louvores unânimes até entre os diversos grupos parlamentares…onde as várias ideologias se digladiam, onde os mais controversos pontos de vistas são expostos e onde mesmo a luta pela conquista do poder se faz por entre artimanhas e, por vezes, golpes. Como pode, então, alguém ser tão unânime? Que elo liga todos para que ninguém se incomode? Que força aglutina tantos/as que por tão pouco se costumam separar?

Fique claro, desde já, que nada me induz a discordar do valor humano, intelectual ou mesmo social do visado, pelo contrário. Não me deixa em nada acomodado ver que um discípulo de Jesus seja alvo de tanto unanimismo nem sempre salutar ou talvez possa ser questionável…sobretudo se tivermos em conta aquelas palavras extraídas do ‘sermão da montanha’! 

= Eis, por isso, breves questões, que tentaremos, subsequentemente, responder:

* Poderá alguém dizer e viver num certo sentido e no seu contrário?

* Poderá ser possível estar de acordo com todos e querer fazer ponte com o máximo sem atingir o mínimo?

* Como se pode caraterizar alguém que não destoa, nem para com a sua sombra?

* Não fará questão a ninguém ou a muito poucos, que se possa conglomerar tantas forças sem se comprometer, tanto quanto é possível saber, com nenhuma?

Por muito que possa custar a tantos dos mentores e dos difusores de beneplácito tão abrangente, há questões que não podem ser meramente sublimadas pela conjuntura artística, poética e mesmo literária. Com efeito, há campos de intervenção que se tornam incompatíveis com tantos elogios e manifestações de boas vontades, pois não se pode afirmar tudo e quase o seu contrário sem com isso incorrermos no risco de contradição e até mesmo de possível escândalo.

Sabemos de forma teórica e pela vida que não podemos agradar a tudo e a todos. Dizemos isto do quadro dos princípios e não socorrendo-nos do âmbito prático de tantos/as com quem nos temos de relacionar. A expressão por estes dias usada – ‘temos de fazer pontes’ – não pode servir para negligenciarmos o quadro de valores e de intentos éticos. A ponte constrói-se tendo em conta as margens e o rio sobre o qual está construída. A qualidade pontifícia é, antes de tudo, uma condição para perceber os lados que se quer colocar em diálogo, sem nunca fazer da perspetiva de unificação, a subjugação a qualquer das vertentes esperadas para a construção… Saber ‘fazer pontes’ há de ser uma das tarefas primordiais dos cristãos, estejam onde estiverem, desde que se sintam em missão evangelizadora de paz, de bem e de justiça.

Para muitos dos nossos coevos, ser bem conceituado na esfera da sua intervenção parece um bom elogio mais do que um tema de acusação. Com que facilidade se mede a ação dum padre/bispo/leigo pelo não-fazer ondas, desde que isso possa significar não ter problemas de acomodação e até de serviço de conluio com tantos dos manipuladores das mentes e das vontades… assumidos ou presumidos.

Será que dizem bem de nós por não incomodarmos ou por sermos pessoas que se guiam pelo Evangelho?       

 

António Sílvio Couto