Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 27 de junho de 2024

Sonho da anagnórise

 


No rodapé de um comentário televisivo semanal apareceu a palavra ‘agnórise’, quando analisava o ‘comportamento’ ético-social de um certo político da nossa praça... numa alusão à tragédia grega... fazendo desse político uma espécie de condutor mágico dos seus votantes, mesmo que eles sejam levados a fazer o que não desejavam totalmente. Ao referir aquela palavra – creio que incorretamente citada, quando devia ser ‘anagnórise’ – fui em busca do seu significado e possível abrangência.

1. O que é ‘anagnórise’? Consultando a wikipédia encontrei:
A anagnórise (do grego antígo ‘anagnórisis’: 'reconhecimento') é um recurso narrativo que consiste no descobrimento, por parte de uma personagem, de dados essenciais de sua identidade ou de seus entes queridos ou do seu entorno - até então, ocultos para ela. A revelação altera a conduta da personagem e obriga-a a formar uma ideia mais exata de si mesma e daquilo que a rodeia.
O termo foi usado pela primeira vez por Aristóteles, em sua “Poética”. Ainda que a anagnórise seja um recurso frequente em muitos géneros, Aristóteles descreveu-a em relação à tragédia clássica, com a qual está associada de modo especial...
De acordo com Aristóteles, o momento ideal para a anagnórise trágica é a ‘peripéteia’ (giro da fortuna): num momento crucial, tudo se revela e fica claro ao protagonista, com efeitos quase sempre demolidores.
Na comédia, a anagnórise é também um recurso frequente. Ao estabelecer relação com uma personagem nobre, a sua extração humilde pressupõe um estorvo; no final da obra, descobre-se por algum indício a sua verdadeira identidade...

2. Perante este esclarecimento de índole cultural mais clássico será de perguntar, com o devido respeito ao dito comentarista e tendo em conta a figura política em questão: não andaremos a colocar demasiado alto a fasquia do pretendido, quando ele não passa de uma mera ave de capoeira cacarejante? Não faremos de certas figuras altaneiras, figurões de ocasião em maré de feira? Nesta fase de evolução da Europa – onde certas esquerdas estrebucham para não desaparecerem em definitivo – teremos líderes capazes de saberem interpretar a hora histórica em que nos encontramos? Como surgirão de entre os escombros da banalização – rica de coisas, mas empodrecida de valores – figuras que pensem no interesse comum e não nas suas tricas mais ou menos ideológicas?

3. A prova de que não temos sabido discernir os ‘sinais dos tempos’ é a mudança crescente de boa parte dos países europeus: o combate não se faz às pessoas, mas às ideias; a luta não se trava na rua, pela destruição dos bens públicos, mas pela resposta aos problemas reais atuais. O recurso a certos clichés parece esgotado em muita das sociedades da velha Europa, onde se atende mais ao que se recebe do que àquilo que temos de contribuir para o bem comum. E nem a guerra, há vinte e cinco meses na Ucrânia, atenuou a prosápia de certas forças, colocadas em cada um dos lados da barricada.

4. Urge, por isso, trazer para a discussão pública não essa quietude bafienta em que temos andado entretidos, mas questionar se a Europa que queremos não tem de ser assumida por todos e por cada um. Aqui se verá quem deseja ser parte da solução ou do problema: certos defensores do clima - mais parecem discípulos de Quichote de Lancha - estragam, mas não assumem as despesas; contestam como pseudo-pacificistas, mas acobardam-se na hora de darem a cara, pois se encobrem sob capuzes anónimos; exigem e nada dão pelos outros.

5. Tal como noutras épocas e civilizações, a União Europeia corre riscos. Assim os previnamos séria e responsavelmente, já.



António Sílvio Couto

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Descodificar o jogo

 

Decorrido que está um terço do campeonato europeu de futebol masculino, na Alemanha, poderá parecer que vamos olhar para as análises, as tácticas, as mudanças ou a subtilezas dos jogos vistos... tendo em conta as disputas em campo ou as multidões arregimentadas com suporte. Nada mais enganoso: o jogo em que pretendo centrar a atenção é o decorrente disso a que chamaram o ‘caso das gémeas luso-brasileiras’. Este sim, é um jogo com muitas intrigas, com manobras de bastidores, com intervenientes que não parecem respeitar as regras da civilidade mínima e - pior - usam estratégias pouco lícitas e humanamente duvidosas...

1. Tudo começou por ser um caso de pretensa investigação jornalística, onde duas crianças nascidas no Brasil tinha ‘adquirido’ a nacionalidade portuguesa para hipoteticamente terem acesso a um medicamento muito caro (dizem quatro milhões de euros) e raro, pois inseridas nos hospitais portugueses salvariam a vida às beneficiadas. Segundo fontes envolvidas no processo terá havido ‘cunhas’ - isto é, favorecimentos diversos - atendendo aos envolvidos em acelerar a questão. No topo da pirâmide de intervenientes - diretos ou enviesados - poderia estar o mais alto dignitário da Nação, por interposta pessoa do filho...
O assunto anda a ser noticiado desde finais de 2023. Já passaram sobre ele a queda de um governo, dois atos eleitorais, alguns réus e outros acusados, decorre um inquérito parlamentar com audições e diversas figuras e figurinhas, foram-se dizendo coisas e atrocidades, deixando no ar a sensação de que o jogo parece estar viciado no conteúdo e na forma. Nota-se que, desde os proponentes da investigação até a presença dos inquiridos, alguém quer vencer a sua, mesmo que isso lhe possa custar muitos votos em próximos atos eleitorais.

2. Foi crescendo em mim uma interrogação: não seria preferível deixar morrer aquelas crianças antes de lhes facultar um medicamento - por muito caro que seja - que lhes possibilitasse sobreviver à doença? O ar pidesco com que certos participantes têm intervido não deixa à mostra a sua desumanidade travestida de legalismo? Com tanto afinco em combater a (pretensa) corrupção não andará no inconsciente de uns tantos a tentativa de disfarçar as vezes que pediram ou facultaram ‘cunhas’ e favorecimentos? Qual é o limite aceitável entre a moralidade e a falta de ética, nas lutas partidárias mais encarniçadas? As armas usadas neste caso não serão algo desconexas com o intrínseco valor da vida?

3. Desgraçadamente temos andado a ser manipulados por forças que se consideram de superior moralidade, mas no fundo deixam escapar, em pequenos indícios, o mais reles da condição humana que é o de não olhar a meios para atingir os seus fins, mesmo que esses possam ser ridículos e de baixa ética. Repugna-me ver que tais figuras se reclamam de cristãos, mas disso não têm mais do que o verniz, que estalado deixa a manifesto o caruncho religioso... Outros/as do outro lado da barricada enchem a boca de igualdade de todos e para todos, mas, de verdade, não servem o bem comum, antes se servem para flutuar ainda na sua insignificância eleitoral, embora barulhenta na rua... Alguma comunicação social tem vindo a descer nos critérios noticiosos e a arrastar os que por ela são intoxicados, fazendo crescer a desconfiança social e arrastando todos para o lamaçal das suas convicções... Basta de insistir nesse ‘quanto pior, melhor’, pois um dia ficarão sós e sem que haja quem os aceite ou suporte...

4. O jogo está viciado. Importa deixá-los a digladiarem-se no seu circuito fechado, pois ficarão a morderem-se quais lacraus venenosos em disputa pela vitória... de morte certa.



António Sílvio Couto

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Sob os ‘dez mandamentos’

 


Foi notícia por estes dias: um estado norte-americano decretou que todas as escolas, desde a infância até à idade universitária, tinham de colocar em lugar público bem visível um cartaz com ‘os dez mandamentos’ escritos. Ainda não vimos a reação dos defensores da liberdade religiosa (e não só) por estas bandas do Atlântico, mas, por certo, choverão contestações àquele fundamentalismo, se bem que, esses mesmos, vão camuflando as suas exigências sob a bandeira do arco-íris.

1. Os factos conhecidos:
O estado do Louisiana tornou-se na quarta-feira (19 de junho) no primeiro Estado norte-americano a exigir que os 'Dez Mandamentos' da Bíblia sejam exibidos nas salas de aula das escolas públicas, de acordo com o projeto de lei sancionado pelo governador republicano.
A legislação elaborada determina que a exibição dos 'Dez Mandamentos' em tamanho de cartaz, em "fonte grande e de fácil leitura", em todas as salas de aula públicas, desde o jardim-de-infância até às universidades financiadas pelo Estado do sudeste dos Estados Unidos (EUA).
Os opositores questionam a constitucionalidade da lei, alertando que é provável que se sigam processos judiciais.
Já os proponentes defenderam que o propósito da medida não é apenas religioso, mas que tem um significado histórico. Na linguagem da lei, os 'Dez Mandamentos' são descritos como "documentos fundamentais do nosso governo estadual e nacional".
As exibições, que serão acompanhadas de uma "declaração de contexto" de quatro parágrafos que descreve como os 'Dez Mandamentos' "foram uma parte proeminente da educação pública americana durante quase três séculos", devem estar instaladas nas salas de aula até o início de 2025.
Segundo informações veiculadas, os cartazes devem ser pagos através de doações. Os fundos estatais não serão utilizados para implementar a medida, de acordo com a legislação.
Projetos de lei semelhantes a exigir que os 'Dez Mandamentos' sejam exibidos nas salas de aula foram propostos em outros estados, incluindo Texas, Oklahoma e Utah.

2. Caraterização deste estado americano (em dados recolhidos na Wiquipédia):
Louisiana é um dos 50 estados dos Estados Unidos, localizado na Região Sul do país, à beira do Golfo do México.
A história, economia e cultura da Louisiana está muito associada ao rio Mississípi (o rio mais longo do país). O Rio Mississípi desemboca no Golfo do México
Cerca de 74% da população da Louisiana vive em áreas urbanas e os outros 26%, em comunidades rurais. 15 cidades do estado possuem mais de 20 mil habitantes. Cerca de 76% da população da Louisiana vivem em regiões metropolitanas. Os centros metropolitanos da Louisiana são Alexandria, Baton Rouge...
A composição racial da população da Louisiana: 62,5% brancos; 32,5% afro-americanos; 2,4% hispânicos.
91,2% da população da Louisiana possui o inglês como idioma materno e 4,8% (215 mil habitantes) possuem o francês como idioma materno. O espanhol é o idioma materno de 2,5% da população do estado.
A percentagem da população da Louisiana por afiliação religiosa: total de cristãos (90%) - protestantes (60%) e católicos (30%).

3. Não sendo minimamente defensor da teocracia, é por demais notória a forma como tantos/as dos nossos contemporâneos têm dificuldade em lidar com o tema da fé, sobretudo se for cristã. Com que subtileza a tentam varrer para debaixo do tapete da indiferença. Dizem-se servidores da liberdade, mas tem de ser a sua a impôr-se aos outros.
Quem não se lembra da ‘guerra dos crucifixos’ (2005). Banidos do espaço público foram sendo substituídos pela ideologia de género de forma acintosa e progressiva. Afinal, quem tem medo de Deus?



António Sílvio Couto

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Cair em graça ou ser engraçado?

 

No passado dia 14 de junho o Papa reuniu, no Vaticano, cerca de cem convidados da área do humor e durante trinta minutos expôs-lhes alguns aspetos daquilo que ele considerou quase uma missão neste mundo.

Esta iniciativa foi promovida pelos dicastérios para a cultura e educação e também o da comunicação.
«Olho com admiração para os artistas que se exprimem através da linguagem da comédia, do humor, da ironia. Quanta sabedoria aí se manifesta. De todos os profissionais que trabalham na televisão, no cinema, no teatro, na imprensa escrita, com canções, nas redes sociais, vós estais entre os mais queridos, procurados e aplaudidos. Certamente porque são bons, mas também por outra razão: têm e cultivam o dom de fazer rir».
O Papa elencou alguns dos aspetos da missão dos humoristas: ‘tem poder de difundir serenidade e sorrisos’, são ainda dos ‘poucos que têm capacidade de falar para muitas pessoas diferentes, de distintas gerações e procedências culturais´.
Francisco deteve-se, por alguns momentos, a falar sobre o ‘riso contagiante’, pois, na sua interpretação ‘é mais fácil rir juntos do que sós: a alegria permite partilhar e é o melhor antídoto contra o egoísmo e o individualismo’. Na sua função social, ‘o riso também ajuda a romper barreiras sociais e a criar vínculos entre as pessoas. Permite-nos exprimir emoções e pensamentos, ajudando a construir uma cultura compartilhada e a criar espaços de liberdade’. Assim se compreende que o ‘homo sapiens’ também é ‘homo ludens’.
Para exemplificar a importância e a vivência do sentido de humor, o Papa reportou-se a uma prática pessoal de há de quarenta anos, em que reza diariamente uma breve oração a São Tomás Moro, que cita na nota 101 da exortação apostólica ‘Gaudete et exsultate’ (de 2018) que qui deixamos para orientação da nossa conduta pessoal e social:
«Dai-me, Senhor, uma boa digestão e também qualquer coisa para digerir. Dai-me a saúde do corpo, com o bom humor necessário para a conservar. Dai-me, Senhor, uma alma santa que saiba aproveitar o que é bom e puro, e não se assuste à vista do pecado, mas encontre a forma de colocar as coisas de novo em ordem. Dai-me uma alma que não conheça o tédio, as murmurações, os suspiros e os lamentos, e não permitais que sofra excessivamente por essa realidade tão dominadora que se chama “eu”. Dai-me, Senhor, o sentido do humor. Dai-me a graça de entender os gracejos, para que conheça na vida um pouco de alegria e possa comunicá-la aos outros. Assim seja».

Este encontro do Papa com essa centena de humoristas de todo o mundo, uns mais conhecidos do que outros, deixou-me algumas questões:
- Será que precisamos de convidar tais artistas para as nossas coisas (religiosas e de formação), quando alguns deles ganham a vida a mofar com as nossas cerimónias?
- Como poderemos atualizar o aforisma - a rir se castigam os costumes’ (ridendo castigat mores)?
- Sabemos enquadrar as piadas que dizem sobre nós da mesma forma como poderemos apreciar o que dizemos dos outros?
- A aprendizagem da arte do humor não exigirá mais sabedoria do que aquela que, por vezes, usamos ou imitamos?

Mal vai o nosso (parco) humor, se não somos capazes de rir de nós mesmos, embora não nos consideremos os palhaços de serviço...



António Sílvio Couto

segunda-feira, 17 de junho de 2024

E se o futebol fosse como um jogo de crianças!

 

Foi ao ver os jogadores da nossa seleção trocarem a bola em jeito de descontração que me aflorou este desejo: talvez seja demasiado infantil ou comporte algo de temerário, pior ainda se isso revelar desilusão quanto àquilo a que já chamaram de ‘desporto’, mas agora apelidam de indústria, podendo até parecer um grande comércio...com contornos duvidosos.

1. Há dados que nos fazem concluir que o futebol não é mais desporto e muito menos diversão, pelo contrário, se guia e faz com intuitos de competição, desde a mais tenra idade até aos mecanismos que o suportam e dele vivem. O amor à camisola – de jogadores, treinadores e/ou dirigentes – foi trocado pelo ‘profissionalismo’, incluindo ganhos-e-custos de uma panóplia de interesses, mais ou menos visíveis, aceitáveis ou toleráveis. Embora seja uma profissão de desgaste rápido – até há pouco tempo um jogador acabava a sua validade pelos trinta e cinco anos – tem sido apresentada como de grande sucesso económico, social e quase cultural. Os que vingam e têm sucesso têm tudo e não fazem por menos mostrá-lo, por vezes, de forma um tanto provocatória. Já vimos a subida e queda de tantos e nem mesmo assim os outros aprendem!

2. Sempre me pareceu que a ‘compra-e-venda’ de jogadores é nitidamente uma nova escravatura e continuamos calados sobre o assunto, portanto cúmplices na negociata, parecendo que tudo é legítimo desde que atinja o clube da minha simpatia, como adepto, como sócio ou como acionista. Os milhões envolvidos na aquisição, troca ou dispensa de um jogador de futebol para além de escândalo comportam autênticos atentados à dignidade da pessoa humana: por vezes na mesma cidade se investem tais montantes e coabitam situações de degradação da vida e da sobrevivência de outras pessoas. Até quando continuaremos a fazer de conta que isto é correto, sendo coniventes pelo silêncio e pelos aplausos aos novos escravos de luxo?

3. O tempo dedicado na comunicação social a este tema do futebol é pornográfico: jogos em direto, antes depois; declarações e comentários de outros que nada tiveram a ver com os jogos; informações dos clubes e contradições dos adversários (internos ou exteriores); tricas e truques, discussões e provocações... Certos órgãos de comunicação gastam mais tempo a limpar o osso do que a comer a refeição. Algo vai mal nisto tudo que podemos ver e assistir, mesmo que sendo intoxicados pela quantidade de falsas notícias que aí se apresentam...

4. Nas cidades os estádios e complexos (ditos) desportivos são os espaços mais amplos, de maior capacidade de acolhimento de público e mais dignos, melhor servidos de acessos, com investimentos faraónicos (que pouco tempo depois se tornam elefantes brancos)... Em tempos as autarquias investiam muito nas coisas dos futebol, julgando com isso conquistar votos, mas com os casos de conluio e de corrupção, entretanto, descobertos e levados à justiça – embora demorada na sua execução – foi caindo tal aposta e conveniência.

5. Por estes dias tudo roda em volta da seleção (portuguesa de mais vinte e três na Europa) de futebol de onze-masculino, criando-se um tal ambiente de euforia que é nitidamente uma espécie de alienação coletiva. Valerá a pena escogitar sobre o valor – dizem de mercado – económico dos jogadores portugueses na atual seleção: 1.044,8 milhões de euros. A seleção portuguesa ocupa o terceiro lugar, antecedida pela Inglaterra (1,67 mil M €) e a França (1,25 mil M €). O resto do top 5 é composto pela Espanha (906 M €) e Países Baixos (874 M €), com a Alemanha a ficar de fora, no sexto lugar, com 799 M €. A campeã da Europa em título, a Itália, é sétima classificada com um valor de mercado a rondar os 761 M €.

6. Ao vermos tanto dinheiro envolvido, o futebol – masculino e feminino; de onze ou futsal; de praia ou amador – movimenta milhões de pessoas, mas trará felicidade a todos? Se fosse mais simples valeria ainda mais.



António Sílvio Couto

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Teremos ‘cruz’ sem a haste vertical?

 

Quando vemos uma cruz sabemos o significado dos dois traços (ou hastes) - vertical e horizontal - que a compõem? Que tem isso de simbólico? Andaremos – pessoal, social e eclesialmente – ou não a dar o devido relevo a ambos os aspetos representados na cruz?

Vejamos, brevemente, alguns destes aspetos. Os dois traços da cruz representam a confluência de dois mistérios: a haste vertical simboliza a ‘encarnação’ (o Verbo de Deus fez-se homem), isto é, a relação entre Deus e a pessoa humana, enquanto a haste horizontal nos refere a dimensão fraterna, que Cristo exaltou por excelência no mistério da sua paixão-morte-ressurreição. Assim, a cruz é a interseção entre a dimensão divina e a referência humana em Cristo, por Cristo e com Cristo.

1. Numa leitura algo apreensiva tenho vindo a aperceber-me que alguns (pessoas e setores) querem fazer da ‘cruz’ – sinal e símbolo, interpelação e provocação – algo que realça mais a haste horizontal do que a haste vertical. Certas linguagens e atitudes recorrem a uma expressividade de questões de teor mais material, acentuando a eucaristia como sacramento do pão, mas quem faz desse pão algo mais do que simplesmente coisa material? Valorizar gestos laterais de simpatia, podendo descentrar os participantes da vivência do sacramento da eucaristia. Não será, por isso, exagero certos cumprimentos e agradecimentos em contexto celebrativo da missa? A excessiva colocação de crianças a fazer as coisas – leituras, recolha das ofertas e ofertório ou mesmo intervenções pelo canto – não polarizará a atenção em aspetos mais humanos do que divinos? Será que esse atrativo para a presença dos adultos favorece todo o processo espiritual da eucaristia, enquanto sacramento de Cristo e não mero ato fraternal?

2. Desgraçadamente vem-se a vulgarizar o convite à presença de elementos das entidades civis – autarcas e membros de associações não-eclesiais – a estarem presentes nas celebrações da missa, seja por ocasião de alguma festa mais representativa da localidade, seja pela presença do bispo (visita pastoral ou crisma). Muitas vezes os ‘convidados’ são colocados nos lugares da frente, deixando-os em mau desempenho, pois, não sendo frequentadores das cerimónias religiosas, nem sabem estar. Eis mais uma banalização horizontalista que faz da vivência dos sacramentos um ato social como se fosse uma sessão civil, embora realizada no espaço religioso e que se presume seja de fé. Pior: tiraram (e bem) dos atos civis os representantes das entidades religiosas (sobretudo eclesiásticos) e agora (e mal) somos nós, os católicos, a dar-lhes (laicos) destaque, quando eles não têm aquilo que se pressupõe para participar nas celebrações: fé, mínima e assumida.

3. Depois dessa espécie de debandada generalizada no tempo pandemia e nos tempos subsequentes, talvez devêssemos criar outro ambiente mais cristológico e eclesiológico de fé proclamada e celebrada. Com efeito, não basta a festa para que aquela se manifeste, será preciso e muito que saibamos onde queremos chegar ou nunca chegaremos a lado nenhum e com muito poucos a participarem...ainda. Se não se deram conta é bom tomar consciência de que, muitos destes sinais de horizontalismo, estão infestados de tiques e retoques da ‘nova era’ (new age), essa poderosa arma que fascina os mais incautos e pretensamente modernizados nas formas de atrair... Valerá a pena rever os conteúdos de tantos das nossas celebrações, tentando expurgá-las de tiques e toques que não são de Deus e tão pouco estão inseridos no espírito das coisas da Igreja católica.

4. A cruz precisa das duas hastes, por isso, depreciar a haste vertical fará com que a haste horizontal fique por terra e rebole sobre os fazedores da sua promoção e propagação.
Citamos: «A cruz não é um fim em si mesma: ela eleva-nos para as alturas e revela-nos as realidades superiores. Por isso ela não é somente um símbolo; ela é a arma poderosa de Cristo» (Santa Teresa Benedita da Cruz).



António Sílvio Couto

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Equívocos (destas) eleições europeias

 

Três meses depois de termos votado para as eleições legislativas antecipadas, a 10 de março, fomos chamados - como estava previsto - a eleger os nossos vinte e um representantes no Parlamento Europeu. Dada a proximidade entre os dois atos eleitorais, houve quem quisesse fazer das ‘europeias’ a segunda volta das legislativas, com dados suscetíveis de a tal conduzirem, foram introduzidas diversas nuances entre uma e outra eleição e logo será necessário não fazer do que é diferente algo que pareça igual. Ou só se atende ao que beneficia quem ganha, mesmo que modificadas as regras?

1. O método de votação mudou: agora, em junho, teve a modalidade de votação em mobilidade, que estava a ser preparada para este ato e não tinha condições por ocasião de março. Facilitou a procura do exercício cívico, mas, mesmo assim, não foi tão expressivo que como seria desejável. A abstenção em março foi de 40,2%, agora em junho cifrou-se nos 62,94%, mesmo assim abaixo do que acontecera nas eleições europeias de 2019, onde foi atingida a mais alta fasquia de não-participação (68,89%) neste tipo de eleições. Certamente que esta experiência do voto em mobilidade poderá ser valorizada em próximos momentos de votação, mesmo que isso possa desvirtuar a real inserção de quem vota, onde...

2. Resultados e percentagens - comparável ou descartável? Nas eleições de março a AD ganhou com 29,05 % e o segundo classificado com 28,66 %; em junho, o PS conseguiu 32,09 % contra 31,12 % da AD. A diferença em votos em março foi de 51.480 votos e agora em junho foi de 38.511 em favor do PS. De todos os casos o mais flagrante foi a acentuada descida do Chega em junho com 9,79% (386.379 votos), enquanto em março conseguira 18,06% (1.108.797 votos). Neste breve espaço de três meses já podemos verificar mudanças, umas circunstanciais e outras podendo ser conjunturais, sobretudo se isso quiser falar mais para o futuro do que esmiuçando o passado...

3. Haverá uma onda protecionista a certas figuras e ideologias? Depois de tantas vezes a acertar pelo mesmo diapasão nota-se uma vaga de fundo quanto a alguns setores da esquerda, seja mais tácita (ou tática) ou orientada: a cobertura das campanhas e iniciativas estão sob a influência de filtros mais ou menos detetáveis. Para quem já andou nessas lides - há cerca de quarenta anos - e aprecia as ´noites eleitorais’ não custa a ver que pequenos nadas fazem a diferença, desde o ângulo da imagem até às declarações selecionadas, passando - por que não! - pela forma como é apresentada a notícia. o facto, o fait-divers ou mesmo o singelo comentário de remate da peça, televisiva, radiofónica ou escrita... tudo tem uma intenção. Importa descobrir qual é ou o que pretende... A máquina montada para exaltar o candidato da IL foi, nestas eleições um exemplo acabado de como se pode vender um produto mesmo que dele não precisemos: houve excelso de adjetivos quando se falava desta força e do que lhe estava adstrito. Muitos jornalistas vestiram a fatiota de jornaleiros para não deixarem cair uns ou para atulharem outros...

4. Temas afunilados e medos empolados? Estando a escolher quem nos vai representar no Parlamento Europeu - 21 em 750 - não deixamos de nos entretermos com questiúnculas de lana-caprina das tricas intestinas. Habilidosamente - como sempre nesta arte da manipulação - fomos atrás de temas de somenos: alguns não conseguiram sair da cassete com anos de rotação. Outros andaram a escarafunchar subprodutos de baixa ética e pior moralidade. Vivemos numa espécie de carnaval ao retardador ou num big brother intriguista. Enquanto se fala da extrema-direita, evita-se perceber os riscos da esquerda radical. Enquanto se traz para a rua a questão dos emigrantes não se enfrentam as possíveis consequências do inverno demográfico na Europa. Enquanto se olha para o que divide (povos, nações, países e culturas) corre-se o risco de não se construir o que, de verdade, nos une.

5. Numa visão global sobre estas eleições europeias poderemos considerar: na noite em que, se dizia, tudo ia mudar foi, afinal, a noite em que quase tudo ficou na mesma!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Carta-aberta a um tal político (dito) ‘católico praticante’

 


Ouso escrever a V.ª Ex.cia (AV), se bem que, quando nasceu, já eu era quase padre ordenado.

Desde já lhe digo do respeito como pessoa, mas não como mentor partidário.
Desde que tive oportunidade de votar, sempre o fiz e reiteradamente na mesma formação, de que me escuso dar a conhecer.
Dizem que é ‘católico praticante’ e que até chegou atrasado a uma tomada de posse, como deputado, por ter ido à missa.
Tendo em conta estes aspetos desse ‘seu’ catolicismo, não consigo perceber como concilia o gesto de comunhão, se é que o faz na missa sacramentalmente, com a descomunhão com tantos cidadãos e, porque não dizê-lo, católicos em consonância com as diretrizes do Papa, como Mestre na fé e na disciplina.
Ouso, por isso, citar a mensagem para o 110.º (repare-se no número, com mais de um século) ‘dia mundial dos migrantes e dos refugiados’, que o Papa Francisco nos deu desde finais de janeiro, mas tornada pública por estes dias.
«Deus caminha não só com o seu povo, mas também no seu povo, enquanto Se identifica com os homens e as mulheres que caminham na história – particularmente com os últimos, os pobres, os marginalizados –, prolongando de certo modo o mistério da Encarnação.
Por isso o encontro com o migrante, bem como com cada irmão e irmã que passa necessidade, «é também encontro com Cristo. Disse-o Ele próprio. É Ele – faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente, preso – que bate à nossa porta, pedindo para ser acolhido e assistido» (Homilia na Missa com os participantes no Encontro «Libertos do medo», Sacrofano, 15/II/2019). O Juízo Final narrado por Mateus, no capítulo 25 do seu evangelho, não deixa dúvidas: «era peregrino e recolhestes-Me» (25, 35); e, ainda, «em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (25, 40). Então cada encontro ao longo do caminho constitui uma oportunidade para encontrar o Senhor, revelando-se uma ocasião rica de salvação, porque na irmã ou irmão necessitado da nossa ajuda está presente Jesus. Neste sentido, os pobres salvam-nos, porque nos permitem encontrar o rosto do Senhor (cf. Mensagem para o III Dia Mundial dos Pobres, 17/XI/2019)».

- Ao ler isto senti que não podemos harmonizar, de forma leviana, missa com juízo final... este será sobre o que fizemos aos outros. Que não podemos dizer-nos em comunhão com Cristo, se desprezamos os outros; se nos entretemos com celebrações religiosas, mas excluímos os mais fragilizados da nossa sociedade...sejam ou não crentes: são. antes de tudo, pessoas com dignidade como qualquer um de nós!

- Neste tempo em que devemos ser testemunhas de fé pela vida, não entendo que se possa falar de justiça sem a praticar. Não me refiro à justiça das leis humanas - de que V.ª Ex.cia é paladino e arauto - mas das leis divinas, que só podem ser servidas por quem está centrado na dignidade da pessoas humana e não nas aleivosias ideológicas, por exemplo.

- Certamente não se deixará impressionar com estas letras, dado que tem outros areópagos para ser fazer ouvir e ver, mas seria de bom serviço a Deus, à Igreja e à Pátria, que quem se diz cristão possa credibilizar o que fala com as tomadas de posição de acordo com os seus valores e critérios cristãos-católicos.

A bem de todos,
me subscrevo



António Sílvio Couto

Migrantes – bem-vindos ou malditos?

 


“Seria útil que os europeus recordassem as suas raízes migratórias (...) É uma pena que, após uma ou duas gerações, uma família se esqueça”, afirmou o Cardeal canadiano Michael Czerny, secretário do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.

Segundo este prelado da Santa Sé, “muitas vezes, a propaganda ou a ideologia sugere que os migrantes fogem por prazer ou aventura: isto é falso, falso, falso. É lamentável que tenhamos de continuar a insistir nisto. É muito importante compreender o que significa ser impelido pela realidade, pela história, para fugir”.

1. O tema da migração deve ser, hoje, uma das questões mais prementes na sociedade europeia, não só pelo número de migrantes que estão nos vários países, como pelo significado que revestem para a nossa cultura, na medida em que muitos deles são provenientes de outras paragens mais ou menos longínquas ou mesmo pelas mais diferentes razões e consequências.

2. As razões que levam alguém a emigrar são muito diversas e complexas, e por isso costuma-se dividir os migrantes por três categorias - refugiados, trabalhadores temporários e migrantes definitivos - e os fatores principais de impulso e atração também em três categorias - sociopolíticos, demográficos e económicos e, porque não, humanitários.
Quais os tipos de migrações? Migração externa ou internacional: deslocamentos entre países, chamada também de imigração. Migração interna: aquela que acontece dentro das fronteiras de um mesmo país. Migração inter-regional: fluxo que se dá entre diferentes regiões dentro de um mesmo país.

3. Embora tenhamos ouvido posições extremadas - restringir, sem controlo ou sem regras - não podemos deixar de ter em conta que todos são pessoas e se deixam a sua terra - com maior ou menor consciência da aventura em que se lançam - não podemos perder de vista as nossas raízes de povo em caminho, umas vezes mais nítido noutras mais simbólico. O pior de tudo será quando, por razões ideológicas (tácitas ou explícitas), se tomam posições que têm tanto de inoportuno quanto de insensato e/ou irracional...

4. Algo parece claro: depois do inverno demográfico que a Europa estava a viver, as vagas de imigrantes rejuvenesceram as sociedades e deram capacidade de mão-de-obra para tantos dos trabalhos que os europeus já não querem nem sabem fazer. Este tema das migrações - sobretudo de pessoas vindas de outros países - na Europa exige capacidade de saber ver (diagnóstico), de julgar (avaliar) e de agir, sem filtros preconceituosos seja sobre ângulo possa ser argumentado.

5. Vejamos alguns dados do nosso país, seguindo o designado ‘plano de ação para as migrações’, recentemente apresentado. A população estrangeira em Portugal aumentou cerca de 33% no ano passado, totalizando mais de um milhão de imigrantes a viver legalmente no país. A população imigrante aumentou de forma significativa no último ano, passando de 781.247 em 2022 para 1.040.000 em 2023... em 2015 seriam 383.759 os imigrantes residentes em Portugal.

6. Porque quem nos guia não é a pretensão política - embora esteja subjacente nas eleições para o Parlamento Europeu - mas a palavra e e as indicações do Papa, deixamos um excerto da mensagem para o 110.º (repare-se na numeração) dia mundial do migrante e do refugiado, que ocorre a 29 de setembro.
«Muitos migrantes fazem experiência de Deus companheiro de viagem, guia e âncora de salvação. Confiam-se-Lhe antes de partir, e recorrem a Ele em situações de necessidade. N’Ele procuram consolação nos momentos de desânimo. Graças a Ele, há bons samaritanos ao longo da estrada. Na oração, confiam a Ele as suas esperanças. Quantas bíblias, evangelhos, livros de orações e terços acompanham os migrantes nas suas viagens através dos desertos, rios e mares e das fronteiras de cada continente!
Deus caminha não só com o seu povo, mas também no seu povo, enquanto Se identifica com os homens e as mulheres que caminham na história – particularmente com os últimos, os pobres, os marginalizados –, prolongando de certo modo o mistério da Encarnação».



António Sílvio Couto