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terça-feira, 30 de abril de 2024

Devemos “pagar custos” da escravatura e dos crimes coloniais?

 


Nas vésperas da comemoração do cinquentenário do ‘25 de abril’, o Presidente da República Portuguesa trouxe esta solene asserção político-social: Portugal deve “pagar custos” da escravatura e dos crimes coloniais. Segundo o seu entendimento interrogativo, “há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”.

Sua excelência falava num jantar com jornalistas estrangeiros e resolveu desprender-se (quase) a despropósito. Com efeito, esta atoarda de Marcelo tornou-se como que uma caixa de pândora, cujos resultados são imprevisíveis... a médio prazo.

1. Denúncia da desastrosa descolonização?
De facto, a ‘descolonização’ era um dos três pilares da revolta dos capitães. As outras eram democratizar e desenvolver. Efetivamente à exceção do ‘democratizar’ os outros ‘dês’ foram verdadeiramente vergonhosos, pois do ‘desenvolver’ estamos muito aquém do desejado, se comparados com o resto da Europa, e sobre a ‘descolonização’ deixamos, em que todos os países de África um rasto de guerra ainda mais destruidora do que a (apelidada) colonial. Sobretudo em Angola e Moçambique os conflitos continuaram entre fações ideológicas servidas e servidoras do tempo da ‘guerra fria’... Muitos dos militares da revolução, segundo dizem, eram dos promotores de tais conflitos execráveis...

2. Enquadramento europeu, atrasado entre nós?
As reparações históricas, pelo tempo de colonização, têm estado na ordem do dia nos últimos anos, e as reações dos governos mundiais a estas exigências são diversas. O governo holandês, em 2022, anunciou a criação de um fundo de 200 milhões de euros para iniciativas, sobretudo no campo da educação, de combate ao legado do trabalho escravo nas suas ex-colónias. No Canadá, após anos de protestos e batalhas judiciais, o governo avançou, em 2023, com indemnizações às comunidades indígenas locais no valor de 600 milhões de dólares.
Noutros casos, como nos países anglo-saxónicos, a restituição de património é outro tema que tem vindo a fazer o seu percurso. Os casos em que ocorreu restituição de património cultural são uma gota no oceano face à extensão dos tesouros expostos nos museus, essencialmente europeus, que foram retirados de múltiplos países durante o período colonial.

3. Mexer em feridas purulentas - ex-combatentes, traumas de guerra, retornados?
Trazer este assunto de pagar os custos da escravatura e dos crimes coloniais, nesta fase da ‘nossa’ história talvez tenha sido - sobretudo se não articulado com o governo e a sociedade em geral - um ato de má gestão de um tema ainda delicado, embora não deva ser varrido para debaixo do tapete nem de ser ignorado por negligência e má fé. Três aspetos podemos trazer à liça relacionados com esta questão: os ex-combatentes, os traumatizadas de guerra ou mesmo a vaga dos (apelidados) retornados... Não se pode olhar para um problema de uma perspetiva uniforme, se ele tem tantas pontas por onde se pode e deve pegar.
Vejamos breves números: a guerra do ultramar durou treze anos, dois meses e três semanas (de 4 de fevereiro de 1961 até 24 de abril de 1974), envolveu cerca de oitocentos mil homens, com 8.830 mortos e ainda com mais de quinze mil com deficiências várias...
Na sequência do processo de descolonização – de 1974 e 1976 – aconteceu uma vaga de seiscentos mil cidadãos provenientes das ex-colónias, rotulados de ‘retornados’, que chegaram a Portugal continental sem nada e alguns sem nunca cá terem estado... Não se revendo neste conceito de ‘retornado’ alguns reclamaram o estatuto de apátridas, de deslocados ou de desalojados de guerra... Quem ressarciu estas pessoas daquilo que lhe fizeram?

4. As palavras do PR em exercício pareceram um mexer com o vespeiro. Esperemos pelos efeitos!



António Sílvio Couto

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