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quarta-feira, 25 de maio de 2022

Criança a gargalhar ao colo do pai

 


Vi a cena de raspão: ia de carro e na esquina de uma rua, numa vila próxima, um pai, segurando ao colo uma criança com cerca de um ano – alvitro a idade, pois reação não seria suscetível com menos tempo de existência – ria-se às bandeiras-despregadas de algo que o pai lhe teria dito… e fazia-o com tal expressão e sonoridade que deu para perceber, mesmo que à distância.
Poderá alguém questionar: que há de novidade ou de destoante de tudo isto da mera vulgaridade? Aquela criança serviu-me de acicate para olhar as reações das crianças, tão mimadas e enfezadas e que tal ‘cena’ foi como que uma pedra no charco da nossa sociedade…entre o macambúzio e o anónimo, sem esquecer a desconfiança de todos para com os demais…

1. Depois de ultrapassada mentalidade da ‘criança como adulto-em-miniatura’, parece que chegamos à sensação da infantilização dos adultos, mesmo sem disso se darem conta. Porque em menor número do que no passado, as crianças foram assumindo um papel de centralidade nas nossas sociedades. Já nem questionamos se as crianças de hoje estão a receber os ‘cuidados’ que os pais e/ou avós não tiveram no seu tempo de infância: dão-lhes o que nem pediram e, portanto, não valorizam devidamente. Será que as crianças sabem brincar, sem serem manipuladas pelos mentores das brincadeiras?

2. Quem não se interroga sobre a tristeza – ou pelo menos pela ausência de sinceros sinais de alegria – de boa parte das nossas crianças? Não lhes vemos, normalmente, um sorriso aberto, franco e sincero. Dos tempos que decorrerem temos de aprender a lição de que as crianças comportam mais malícia do que seria desejável. Não estou a lançar qualquer labéu sobre todas as crianças, mas antes a exprimir que é preciso sermos prudentes no trato com elas (onde eles se incluem também), tenham a idade que tiverem. Aquela observação evangélica à ‘inocência e candura’ das crianças – peço perdão – mas não a vejo e custa-me compreendê-la…

3. Quantas vezes tenho visto uma certa falta de entusiasmo (ou mesmo ausência de algum contentamento), na hora do reencontro, das crianças com os pais, após um dia de creche ou de jardim-de-infância. Será que as crianças sentem mais gosto pela ‘escola’ do que pela família? O fardo dos filhos não compensará a dedicação ao futuro deles e dos pais? Há coisas que se torna difícil disfarçar e o trato com os filhos é uma das mais relevantes… onde o verniz estala com razoável normalidade.

4. Será que a qualidade de tempo dos pais – pai ou mãe, não é igual nem indiferente – para com os filhos é a mais adequada e profícua? Mesmo numa aposta simplista em ‘ter filhos’, estes são a prioridade da vida ou têm de rivalizar com o emprego e o (pretenso) sucesso profissional? Os descendentes não ocuparão o fim da lista de coisas inadiáveis ao longo do dia-a-dia? Mais do que gerar filhos não teremos andado a gerir os possíveis ou mesmo os indesejáveis? Quem tem tempo para brincar com os filhos? Não será mais fácil colocar-lhes a ‘mamadeira eletrónica’ – anteriormente era a televisão, agora é o telemóvel ou o tablete – a entretê-los do que a aturá-los nas suas rabugices, diabruras e (aparentes) inconveniências?

5. Por razões várias – algumas em razão da função de contato com pessoas (pároco) e outras por observação de responsabilidades (de uma instituição de ação social) socioeconómicas – tenho visto com mais recorrência esse estribilho que via noutras latitudes culturais de franja: meia-volta sou confrontado com essa frase – os meus, os teus e os nossos (nascidos ou a nascer)…Daqui se pode depreender que essas pessoas já tiveram outros ‘casamentos’ ou uniões, que reverteram em novas propostas ou desejadas soluções. Confesso que esta realidade, além de me questionar, faz-me inquirir sobre a noção de família, de educação, de sociedade e mesmo de Igreja… As crianças não têm culpa dos pais que tiveram, mas será que estes já se aperceberam do alcance psicológico e espiritual desses filhos (naturais ou assumidos) no presente e para o futuro?
Li, há dias, o título de um livro do Papa Francisco – as crianças são esperança. Serão mesmo ou já não temos pachorra capaz para as aturar?

António Sílvio Couto

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