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sexta-feira, 3 de abril de 2020

Páscoa sem passagem será ainda páscoa?


De entre as várias medidas lançadas pela segunda vaga de ‘estado de emergência’ há uma que, certamente, não será esquecida por muito tempo: não se pode circular para fora do concelho de residência habitual entre 9 e 13 de abril, isto é, desde a quinta-feira da semana santa até à segunda-feira após o domingo de Páscoa… Quem infringir o estipulado terá pesado castigo!

As várias medidas restritivas decorrentes do estado de pandemia do ‘covid-19’ tentam (tentaram ou tentarão) criar condições para controlar o problema, condicionando as pessoas o mais possível à sua casa. Embora uma parte significativa de pessoas tenha entendido, suportado e vivido este regime, nem sempre os factos foram tão benéficos quanto seria suposto num tempo de civilização… 

= Será que o confinamento das pessoas à sua residência resolverá, efetivamente, o problema da disseminação do vírus? Não andaremos a enfatizar pormenores – uso de máscaras, desinfeções e outros adereços – esquecendo-nos do essencial? O tal resguardo social não passará de um disfarce para enfrentarmos o que é mais importante, saber respeitar os outros mais do que vivermos sem restrições nem regras? 

= Em tudo isto que temos estado a viver – mais intensamente desde meados de março – podemos encontrar um chamamento a refletirmos sobre tantas coisas da nossa vida pessoal e social. De facto, em tempos de cristandade – correspondência entre sociedade e Igreja, misturando-se as funções, os atributos e mesmo as consequências… vigorou, nos países ocidentais, até meados do século XX – havia alguns condicionamentos em tempo de quaresma, desde a simbologia das cinzas até à erupção festiva da Páscoa: manifestações festivas eram contidas nesses dias, criando um ambiente de penitência coletiva/social. Com alguma da pretensa emancipação da sociedade – dita civil, mas antes civilista – como que acabaram, na maior parte do território nacional – cingimo-nos ao nosso país – gestos, atitudes, cores e devoções de âmbito geral… Se excetuarmos algumas procissões de ‘passos’ e certos ritos de ‘via-sacra’, a quaresma passou a ser uma questão de minoria, senão exótica ao menos exotérica, isto é, para iniciados.

Mas eis que o coronavírus ‘covid-19’ colocou toda a sociedade em quarentena. Só por ignorância ou má-fé se não faz a ligação entre as duas palavras, tanto na origem como na execução. Não queriam aceitar as regras religiosas, mas as circunstâncias higiene-sanitárias a tal exigem. Não queriam reter-se para celebrar as ‘coisas da religião’, agora fazem-no por coação. Fugiam de férias para o Algarve e em destinos de veraneio, agora estão confinados ao concelho de residência. Estavam-se nas tintas para as tricas religiosas católicas, agora se desobedecerem podem cair nas malhas da lei, indo ocupar as celas dos presos em soltura por indulto do Presidente…  

= Sobre o significado etimológico da palavra ‘páscoa’ temos de ir ao hebraico – ‘pesah’ – caminhar pelo grego – ‘paskha’ – andar pelo latim – ‘pascha’ – e dizermos em português, páscoa. Como festa de origem judaica remonta à vivência do êxodo do povo de Deus do Egipto em libertação: Deus passa, libertando o seu povo; o povo de Deus passa (sai), liberto da escravidão (cf. Ex 12). Assim, em cada ano, ao celebrar a Páscoa, os judeus estavam a fazer memória desse momento constitutivo como povo e nação.

Ora, a paixão-morte-ressurreição de Jesus aconteceu por ocasião da celebração da festa da Páscoa judaica. Isso fará com que os discípulos de Jesus ao celebrarem a ressurreição do Senhor lhe associem aquilo que eram as suas raízes no judaísmo. De verdade, o centro da fé cristã é a celebração da Páscoa de Jesus, tal como disse São Paulo: ‘se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé’ (cf.1 Cor 15,14).

Mas será que ao vermos tantos cristãos a trocarem uns dias de férias pela não-celebração da Páscoa não estaríamos a subverter em proveito próprio o central do mistério que levava a que tivessem algum tempo de descanso? Esses que tal tinham tal programa de vida já se questionaram sobre o significado mais profundo desta prescrição de isolamento não-social? O que faltará ainda para que deixemos de usufruir das coisas – vejam-se as comidas de páscoa e outros adereços – sem delas saberem o conteúdo e significação?

Páscoa é passagem de quê, para quem e porquê? A quaresma foi forçada, a Páscoa será mais consciente?  

 

António Sílvio Couto

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