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segunda-feira, 6 de abril de 2020

Como viver a ‘semana santa’ em tempo de pandemia?


Considerada pela tradição católica como a ‘semana maior’ – não pela extensão dos dias, mas pelo significado de cada um deles – a Semana Santa reveste-se dum significado muito especial no quadro da espiritualidade católica e este ano de uma forma ainda mais especial, dado o estado de confinamento à habitação de cada um de nós.

Embora estes dias sejam de contenção e de silêncio, eles ganham ainda mais significado se nos ativermos à abrangência de tudo isto por todo o mundo, onde a Igreja se insere, participa e comunga de igual vivência.

Na capacidade de adaptação que temos, vão surgindo propostas, algumas delas com interesse, para vivermos, pessoal e familiarmente, este tempo de ‘semana santa’. Assim, a diocese de Setúbal apresentou a ‘cruz em rede’, onde se fazem sugestões para cada dia, enquanto se compõe uma cruz com os símbolos diários.

Eis o itinerário:

Nos três primeiros dias – segunda, terça e quarta – algo que nos pode e deve fazer refletir. Referimo-nos ao ‘mistério de Judas Iscariotes’, esse que foi o traidor e que entregou Jesus às mãos dos judeus para vir a ser morto. Com efeito, os textos da liturgia da palavra da missa desses dias são assaz ‘perturbadores’ – Jo 12,1-11: Judas questiona o uso do perfume de Madalena para com Jesus; Jo 13,24-33.36-38: Jesus preanuncia a traição de Judas e as negações de Pedro; Mt 26,14-25: Judas como que negoceia a entrega de Jesus aos chefes judaicos.

Efetivamente, ‘Judas Iscariotes’ sempre foi um mistério: ele que viveu com Jesus tornou-se o veículo para entregá-Lo aos seus adversários, tanto religiosos como políticos. Aí está o confronto com a nossa (minha) condição de discípulo envergonhado, manhoso e talvez traidor…   

– Quinta-feira santa tem dois grandes vetores: a missa crismal e a celebração da ‘ceia do Senhor’

* Missa crismal – dom do sacerdócio

Aquilo que deveria acontecer na manhã desta quinta-feira santa – a reunião de todo o presbitério com o seu bispo – é adiado para outra data oportuna, quando passar esta fase de resguardo social. Mesmo assim valerá a pena aflorar sobre o sentido desta ‘missa crismal’: ela é a expressão de comunhão de todo o presbitério e nela se faz a renovação do compromisso sacerdotal. É um momento fundamental de todo o padre e da própria diocese: não pode haver verdadeiro ministério sem comunhão dos padres uns com os outros e de todos com o bispo diocesano…mesmo que possa ser só padre religioso!

* Celebração da ‘ceia do Senhor’

Na tarde (ou ao final da mesma) da 5.ª feira santa, a Igreja convida-nos a celebrar ‘a missa vespertina da ceia do Senhor’, confluindo para esta celebração o memorial da páscoa judaica e a instituição que Jesus faz da eucaristia, isto é, o memorial do Seu Corpo e Sangue. O rito dos ‘lava-pés’ apresenta-se como um sinal central, introduzindo-nos ao mistério da paixão-morte-ressurreição de Jesus. Ora, atendendo a reduzida participação de fiéis na celebração, tal rito não se faz…este ano.

= Na proposta da ‘cruz em rede’, a sugestão diocesana coloca-nos diante de breves considerações: desde logo a preparação e confeção do pão ázimo (sem fermento) para a vivência da refeição da ‘ceia’, onde é apresentado também um caminho de lava-pés em família, bem como uma bênção da mesa com salmos, ritos e orações apropriados à presença em família, associando todos os elementos, inclusive as crianças…numa quase para-liturgia com sabor a shabat hebraico. Inclui-se ainda um tempo de oração de vigília, com textos da agonia de Jesus no horto das oliveiras (cf. Mc 14-32-42) e uma breve oração de intercessão pelos vários intervenientes neste clima de pandemia. 

– Sexta-feira santa centrada na leitura da Paixão e na adoração da Cruz

Como dia de jejum e de abstinência, o dia de sexta-feira santa faz-nos caminhar em recolhimento e até em contenção de palavras, meditando a narrativa da Paixão segundo São João, vivendo a adoração da Cruz – onde nem devia estar a imagem do Senhor para que a cruz fosse sentida como verdadeiro instrumento e sinal de salvação – e sendo alimentados pela eucaristia dos pré-santificados. Neste dia é duma grande beleza e simbologia a longa oração universal, onde, desde tempos imemoriais, se reza por tudo e por todos…até pelos descrentes e ateus, com este ano a incluir-se uma prece pelo estado de pandemia.

= Na proposta da ‘cruz em rede’, a sugestão diocesana coloca-nos num ambiente em casa um tanto idêntico àquele que deveríamos ter nos espaços litúrgicos: com uma cruz, uma toalha branca e um recipiente com água…à mistura com não muita luz. É sugerido que se possa seguir uma transmissão (televisiva ou via internet) das celebrações de 6.ª feira santa. A leitura da paixão segundo o evangelho de São João – Jo 18,1-19,42 – ocupa um largo espaço. Depois faz-se a adoração da cruz, que termina com uma oração de um autor do século IX, lembrando várias facetas de pedido de perdão e de adoração ao sinal da Cruz. Em família faz-se a ‘sepultura’, que consta em envolver a cruz numa toalha, que simboliza o ‘sudário’…entrando-se no grande silêncio de ontem e de hoje.

Segundo alguns costumes, nesta noite de 6.ª feira santa, far-se-ia a procissão ‘do enterro do Senhor’, termo indevido, pois não levamos ninguém a enterrar e tão pouco a sepultar, antes, pelo silêncio e a meditação – onde a música pode e deve ajudar-nos – caminhamos escutando textos do sepultamento de Jesus. É algo anacrónico que alguém participe na ‘procissão do enterro do Senhor’ se não viveu o resto da liturgia desse dia… Certos folclores precisam de ser purificados e exorcizados, à luz duma formação simples, aceite e crescente…   

– Sábado santo: do silêncio à explosão da luz…ressuscitada e ressuscitadora

Num dia sem celebrações litúrgicas, preparamo-nos para a significativa vivência da vigília pascal, que nos coloca diante de quatro grandes dimensões litúrgicas: da luz, da Palavra, batismal e eucarística. Cada uma delas é longa e essencial para a nossa fé cristã. Por isso, a vigília pascal não pode ser feita a correr e talvez seja uma abuso fazer mais do que uma nessa mesma noite… Na liturgia da luz contemplamos, em forma de oração, o mistério da redenção operada pela ressurreição do Senhor, luz que brilha nas trevas; na liturgia da Palavra percorremos os momentos essenciais da história da salvação em ordem à ressurreição do Senhor; na liturgia batismal acolhemos novos irmãos e renovamos o nosso batismo; na liturgia eucarística damos graças e recebemos o dom do Senhor vivo e ressuscitado para sempre.

= Na proposta da ‘cruz em rede’, a sugestão diocesana coloca-nos, desde a manhã deste dia de sábado santo na expetativa, incluindo os elementos figurativos: a toalha que envolveu a cruz, tem um certo espaço de simbólica, merecendo que junto dela se acenda uma vela, em sinal de respeito e alguma reverência. É proposta a leitura de uma homilia antiga de sábado santo, onde se fala do grande silêncio que ‘cobre a terra’. Os momentos de oração comuns são extraídos do livro do Cântico dos cânticos.

A noite de oração – réplica da vigília pascal – desenvolve-se à mesa, que deve ser festiva. O início da ‘celebração’ dá-se à entrada da porta de casa, num misto de alusão judaica e de liturgia cristã…de liturgia da luz, com a intervenção da mãe e do pai. Chegados junto da mesa todos ficam em pé, enquanto a mãe coloca a vela no centro da mesa. Lê-se, então, a narrativa de São Mateus (28,1-10) da ressurreição de Jesus. Após um breve tempo de silêncio é feita a proclamação da Páscoa com o ‘glória a Deus nas alturas’, saudação da paz, acendendo-se as velas na mesa e prosseguindo o jantar… durante o qual se reza o credo e o pai-nosso. O pai dá graças sobre o pão, repartindo-o por todos… Na conclusão da ceia far-se-á uma oração a Nossa Senhora, como por exemplo o ‘Regina Coeli’…

Sobre a dinâmica do domingo de Páscoa falaremos depois.

 

António Sílvio Couto

 

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