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sábado, 4 de abril de 2020

Não ‘vai ficar tudo bem’!


Espalhou-se numa espécie de estandarte-slogan, dizendo ‘vai ficar tudo bem’…associando à frase um grafismo com aquilo que faria lembrar o arco-íris. E, de repente, isso pareceu tornar-se um exorcismo coletivo sobre a pandemia em curso. Abstenho-me de tecer qualquer comentário à imagem que quiseram associar a esta iniciativa. Seria bem dispensável para que não se gerassem confusões ou, se as quiseram incluir, foi um ato de aproveitamento de mau gosto e de duvidosa ética….cultural e social.

Independentemente do motivo que fez crescer este desejo de que ‘ vai ficar tudo bem’, nota-se algum exagero naquilo que se quer exprimir ou, pior, parece que nos querem levar ao engano, enganando-nos e sendo enganados. Não, não ‘vai ficar tudo bem’. Este parece mais um daqueles mitos urbanos, onde uns tantos habilidosos, querem fazer-de-conta de que nada está a acontecer, levando os demais a esvoaçarem sobre as ruínas de algo que tinha sido criado sobre conceitos de utopia…com sabor a materialismo.  

– Efetivamente seria um desperdício de tempo – querendo dar a entender que ‘vai ficar tudo bem’ – o distanciamento social a que a maioria das pessoas se reduziu nas últimas semanas. Pequenos grandes gestos podem ter ajudado a suster a disseminação do vírus. Atos de contenção na exposição à vida pública podem ter contribuído para ganhar breves batalhas nesta grande guerra.

Talvez se tenham dados alguns passos para recuperar a casa – muitas vezes dita de família, mas que não passava de um rótulo frágil e ténue – como espaço de presença das pessoas umas às outras. As refeições, tomadas em casa contrastam com as longas filas de espera nos restaurantes, agora em risco de fecharem temporária ou definitivamente. Andávamos – nós portugueses em especial – a dar um ar de rico, mas que tinham medo de se enfrentarem à mesa e no reduto da habitação, que é (ou deve ser) algo de sagrado e não exposto à interferência alheia. Não teremos nada a mudar, depois desta experiência forçada e necessária? Não sentimos já que a nossa casa está mais aquecida porque nela se cozinha ou se come à mesma mesa?

Os hábitos que tínhamos precisavam de mudar, senão por convicção ao menos por coação!  

– Dizem por aí que as igrejas fecharam. Não, a assembleia dos irmãos – na origem etimológica ‘ecclesia’, igreja – é que deixou de se reunir com a presença de maior número de fiéis. Esta crise de pandemia veio trazer à luz do dia possibilidades diferentes de aproveitamento das (ditas) ‘novas tecnologias’ de serem colocadas mais organizadamente ao serviço da evangelização. Missas e outros atos de culto chegam a casa dos fiéis – leigos ou clérigos – de uma forma idêntica à de outras informações, notícias ou comentários. Novas ferramentas trazem novos requisitos. Não basta transmitir, por exemplo uma missa, como se os que nos vem fossem a parte tolerada, fazendo-a para aqueles que estão na nossa presença física. Agora é o destinatário da nossa mensagem que está para além daquela câmara, por detrás de um visor ou diante de um écran…

É um facto que a participação tocada não se estabelece. Não se pode comungar o corpo de Cristo, no momento da comunhão, mas temos de reaprender certas noções talvez menos bem explicadas, como a ‘comunhão espiritual’ ou de desejo, preparando-nos melhor para o momento celebrativo presencial.

Algo de idêntico se pode referir do sacramento da penitência pela celebração da confissão. Há reaprendizagens que urge fomentar e talvez devamos ser inventivos para que possa haver mais consciencialização da noção de pecado, de ofensa a Deus e de agravos aos irmãos… O distanciamento físico pode criar mais qualidade nas relações humanas e espirituais.  

– Não ‘vai ficar tudo bem’, se por ‘bem’ se entender, tudo igual. Veja-se a área da economia (trabalho, empresas, trabalhadores, mercadorias, contas, dinheiro): num instante as ruas, avenidas e autoestradas ficaram desertas e o turismo escafedeu-se; os ordenados baixaram e as finanças (pessoais e familiares) faliram; o sucesso governativo de excedente orçamental evaporou-se num ápice; o desemprego triplicou num só mês… Não, não ‘vai ficar tudo bem’… Dizer o resto é enganar as pessoas e pode ser considerado crime de lesa-majestade, pois os outros merecem-nos respeito sempre e não só em maré de crise… do vírus!        

 

António Sílvio Couto

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