Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Caridade: fantasia ou fantasiosa?


Quando, no final do jubileu do ano 2000, o Papa João II escreveu a carta apostólica, ‘À entrada do novo milénio’, deixou-nos uma expressão desafiante: ‘fantasia da caridade’ (n.º 50), a qual se deve manifestar «não só nem sobretudo na eficácia dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidário com quem sofre, de tal modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola humilhante, mas como partilha fraterna». Seguidamente é apontado «o anúncio do Evangelho como a primeira caridade… [Pois], a caridade das obras garante uma força inquestionável à caridade das palavras».

= Perante este texto com mais de uma década, fica-nos a sensação de que muitos dos atos de ajuda aos pobres estão mais voltados para a assistência às necessidades primeiras e que nem sempre a dádiva de ajuda está associada à evangelização, isto é, anúncio de Jesus Cristo. Com efeito, quantos dos que recebem ajuda, mesmo das instituições ligadas ou conotadas com a Igreja católica, e, com isso que recebem, percebem que é Jesus quem lhes dá isso e não a mera pessoa que lha entrega? Quanto esforço para matar a fome, para vestir quem está necessitado, para ajudar a pagar os medicamentos e as rendas… e os beneficiados não se tornam um pouco mais gratos, fazendo parte da Igreja celebrativa? Será que isto acontece por ingratidão ou por vergonha e inabilidade da parte de quem presta ajuda… ao não falar claramente de Jesus?

= Ainda um destes dias foram publicados dados que manifestam que alvo vai mal na hierarquia de valores do nosso tempo: há mais pessoas com acesso ao telemóvel (quatro mil milhões de aparelhos) do que aquelas que têm infraestruturas higiénico-sanitárias mínimas ao nível mundial… Quantas vezes vemos pessoas a pedirem ajudar para comer ou para pagar a fatura da eletricidade ou da água, exibindo telemóveis de alto custo! Quantas vezes vemos os mais necessitados serem aliciados para consumirem produtos de custo elevado! Quantas vezes parece que as pessoas se deixam fascinar pela aparência e não pela honestidade!

= A caridade – mal entendida ou mesmo distorcida – pode tornar-se um tanto fantasiosa para aqueles que a ministram e daqueles que dela usufruem. Há, por vezes, figuras que se servem das necessidades alheias para se promoverem ao perto e ao longe… particularmente pela comunicação social. Com efeito, estar ao lado dos pobrezinhos – ou será, antes, com os pobrezinhos ao lado? – dá promoção e alguns daí até se tentam projetar em pretensões políticas, sociais e sindicais! Nalgumas situações podemos entender que foram pessoas, que, de necessitadas, se tornaram defensoras dos necessitados, mas outros como que fazem dos necessitados uma espécie de alfinete de lapela em desfile de benemerência! Num tempo tão propício a aproveitamentos – alguns menos honestos do que seria desejável – podem surgir tentações de menos boa índole, podendo até desvirtuar o que se diz e, sobretudo, o que se faz!

 = A ‘fantasia da caridade’:

- obriga-nos a sermos leais uns para com os outros, sem disfarces nem segundas intenções, explícitas ou tácitas;

- exige que tenhamos – como diz o Papa Francisco – mãos sujas do fazer, mas limpas dos apegos mais subtis; - impele-nos em tudo e acima de tudo a nunca perder de vista que o nosso Mestre Jesus deu de comer pela Palavra e pelo Pão do corpo, da alma e do espírito.


Esta ‘fantasia da caridade’ poderá colher frutos de vida eterna e não de meros votos, de condecorações ou de aplausos, se nós virmos em cada irmão/ã mais fragilizado – com fome, nu, doente, preso, peregrino, desempregado, etc. – o rosto, a presença e a pessoa de Jesus. É assim que vemos e vivemos?

 

António Sílvio Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário