Quando,
no final do jubileu do ano 2000, o Papa João II escreveu a carta apostólica, ‘À
entrada do novo milénio’, deixou-nos uma expressão desafiante: ‘fantasia da
caridade’ (n.º 50), a qual se deve manifestar «não só nem sobretudo na eficácia
dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidário com quem
sofre, de tal modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola
humilhante, mas como partilha fraterna». Seguidamente é apontado «o anúncio do
Evangelho como a primeira caridade… [Pois], a caridade das obras garante uma
força inquestionável à caridade das palavras».
= Perante
este texto com mais de uma década, fica-nos a sensação de que muitos dos atos
de ajuda aos pobres estão mais voltados para a assistência às necessidades
primeiras e que nem sempre a dádiva de ajuda está associada à evangelização,
isto é, anúncio de Jesus Cristo. Com efeito, quantos dos que recebem ajuda,
mesmo das instituições ligadas ou conotadas com a Igreja católica, e, com isso que
recebem, percebem que é Jesus quem lhes dá isso e não a mera pessoa que lha
entrega? Quanto esforço para matar a fome, para vestir quem está necessitado,
para ajudar a pagar os medicamentos e as rendas… e os beneficiados não se tornam
um pouco mais gratos, fazendo parte da Igreja celebrativa? Será que isto
acontece por ingratidão ou por vergonha e inabilidade da parte de quem presta
ajuda… ao não falar claramente de Jesus?
= Ainda
um destes dias foram publicados dados que manifestam que alvo vai mal na
hierarquia de valores do nosso tempo: há mais pessoas com acesso ao telemóvel (quatro
mil milhões de aparelhos) do que aquelas que têm infraestruturas higiénico-sanitárias
mínimas ao nível mundial… Quantas vezes vemos pessoas a pedirem ajudar para
comer ou para pagar a fatura da eletricidade ou da água, exibindo telemóveis de
alto custo! Quantas vezes vemos os mais necessitados serem aliciados para
consumirem produtos de custo elevado! Quantas vezes parece que as pessoas se
deixam fascinar pela aparência e não pela honestidade!
= A
caridade – mal entendida ou mesmo distorcida – pode tornar-se um tanto
fantasiosa para aqueles que a ministram e daqueles que dela usufruem. Há, por
vezes, figuras que se servem das necessidades alheias para se promoverem ao perto
e ao longe… particularmente pela comunicação social. Com efeito, estar ao lado
dos pobrezinhos – ou será, antes, com os pobrezinhos ao lado? – dá promoção e
alguns daí até se tentam projetar em pretensões políticas, sociais e sindicais!
Nalgumas situações podemos entender que foram pessoas, que, de necessitadas, se
tornaram defensoras dos necessitados, mas outros como que fazem dos
necessitados uma espécie de alfinete de lapela em desfile de benemerência! Num
tempo tão propício a aproveitamentos – alguns menos honestos do que seria
desejável – podem surgir tentações de menos boa índole, podendo até desvirtuar
o que se diz e, sobretudo, o que se faz!
-
obriga-nos a sermos leais uns para com os outros, sem disfarces nem segundas
intenções, explícitas ou tácitas;
- exige
que tenhamos – como diz o Papa Francisco – mãos sujas do fazer, mas limpas dos
apegos mais subtis; - impele-nos em tudo e acima de tudo a nunca perder de
vista que o nosso Mestre Jesus deu de comer pela Palavra e pelo Pão do corpo,
da alma e do espírito.
Esta ‘fantasia
da caridade’ poderá colher frutos de vida eterna e não de meros votos, de
condecorações ou de aplausos, se nós virmos em cada irmão/ã mais fragilizado –
com fome, nu, doente, preso, peregrino, desempregado, etc. – o rosto, a
presença e a pessoa de Jesus. É assim que vemos e vivemos?
António Sílvio Couto
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