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sexta-feira, 15 de março de 2024

Adoramos pobrezinhos, é pena é o cheiro

 




Uma cantora bastante badalada na nossa praça resumiu a sua avaliação dos resultados das eleições do passado dia 10 de março e lançando um slogan para quem venha a governar: ‘adoramos pobrezinhos, é pena é o cheiro’!

Algo ainda mais encriptado foi a ligação que ela fez àqueles, da sua família, que se sacrificaram e fizeram a revolução de abril, deixando escapar a observação: ‘ receio que a coragem se tenha vindo a gastar com o tempo e tenhamos dado a liberdade como garantida’.

1. É notório que os resultados das últimas eleições tenham baralhado muitas mentes, sobretudo aquelas que estavam formatadas para ler e interpretar tudo em quadro de esquerda ou a roçar a grelha dialético-marxista mais primária. Para muitos sempre assim foi e para eles sempre assim seria. Boa parte da comunicação social tem vivido com esse esquema subjacente e tirá-lo da execução ‘literária’ confunde e quase aterroriza. São todos muitos democratas, mas seguindo a sua cartilha e devocionário de preferência… há anos!

2. Efetivamente fizeram de nós – como povo e, na sua linguagem, como indivíduos – uma espécie bem comportada, se guiada pelos clichés de ‘direita’ e de ‘esquerda’, como se isso resolvesse todos os problemas das pessoas. Estas, por vezes, funcionam como números e, ocasionalmente, têm rosto se se lhes pretendem impingir algum produto pré-fabricado na empresa do Estado.

3. De forma séria e sensata precisamos de voltar a questionar os interesses que motivam tantos dos agentes políticos – seja qual for a instância – na medida em que se notou, na noite eleitoral, que muitos viram esvair-se o seu lugar de emprego ou a perderem as benesses adquiridas em tempos de maior fulgor da sua ideologia. De facto, foi revelador do que estava em causa nas eleições de 10 de março, as imagens e as palavras e ordem dos dois maiores partidos em concurso: uns clamavam por ‘Portugal’ e outros suplicavam pelo seu ‘partido’… Os resultados mostraram as pretensões!

4. Estamos e estaremos por muitos meses, até que chegue o tempo de voltar a haver eleições, num impasse. Parece que ninguém tem razão e todos se acham senhores de se apropriarem desses que dão votos e fluam ao sabor dos acenos malfazejos: os tais ‘pobrezinhos’, mesmo que cheirem mal, sejam incómodos com as suas exigências e reais direitos ou não exibam o perfume que nos consola e inebria. Confesso que me cria admiração e ao mesmo tempo repulsa ver que muitos dos agentes políticos sejam tão hábeis disfarçados para se manterem no poder…

5. Mais uma vez me vêm à lembrança os números da pobreza, o valor do salário mínimo, a demonstração do vencimento médio e o (pretenso) nível de vida dos portugueses. Adicione-se a isso a vaga de migrações – os que chegam e os que partem – com a particularidade de já haver muitos portugueses que não fazem certos serviços, deixando-os para os que chegam e são mais mal pagos.

[Nota de arrepio]

Estava a escrever este texto quando tive de ir a Lisboa esperar uma pessoa que vinha de Coimbra. Segundo o telefonema, o senhor chegaria à ‘estação do Oriente’… Preveni o tempo suficiente de estar no local de chegada. Porque tinha espaço resolvi dar uma volta pelo ‘mundo’ em redor… Desci umas escadas que davam acesso ao metro e sob a estação do caminho-de-ferro. Surpresa: de repente dei comigo diante de mais de duzentos metros de pessoas, de um de outro lado, da longa galeria numa espécie de camas, onde se viam pessoas enroladas, era por volta do meio-dia, outros zicando o telemóvel e tantas ‘camas’ à espera de quem venha ocupá-las na hora do sono… Todos passavam impávidos e serenos como se aquelas pessoas – muitas delas migrantes – acolhendo-se à sombra do anonimato e longe dos holofotes dos interessados nos pobres.



António Sílvio Couto

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