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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Ditadura do sucesso num colapso dos valores?


Parecem ser cada vez mais os sinais de que algo anda confuso no reino da portugalândia (*). Podemos ver o sucesso e questionar os seus efeitos. Podemos descobrir as consequências sem termos de identificar as causas. Podemos sacudir a responsabilidade e culpar os outros, que, embora possam ser companheiros na desgraça, se diluirão como a mensagem do agente secreto em poucos segundos…

É nessa terra imaginária em que se tornou o nosso país que vamos centrar a nossa reflexão sobre aspetos que podem parecer reais, mas que não passam de virtuais e onde uma boa maioria vive em perfeita alienação… até um dia acordar da letargia geral.

= Vivemos numa Europa onde há paz – isto é, sem guerras entre os países na totalidade, embora tenhamos tido a guerra dos Balcãs ou mais recentemente os conflitos entre a Rússia e a Ucrânia – desde o final da ‘segunda guerra mundial’. Os portugueses ainda tiveram as guerras ultramarinas, terminadas em 1974. No geral a Europa tem vivido numa espécie de paz social, embora podre, mas minimamente aceitável. Com a queda do ‘muro de Berlim’, em 1989, distendeu-se a todo o continente a pretensa paz com os tentáculos do progresso, do consumo, da qualidade de vida e de tantas outras proclamações mais ou menos efabuladas dos regimes políticos e ideológicos. Até a construção da União Europeia tem contribuído para o sucesso da maior parte dos países e nações. A inclusão de certos povos procedentes da ex-cortina de ferro fez com que o sucesso ultrapassasse fronteiras e barreiras alfandegárias. A livre circulação – sem necessidade de passaporte – de pessoas e bens foi construindo a utopia de que teremos sucesso com mérito ou sem ele.

= Uma espécie de interregno eclodiu entre 2008 e 2015, tanto na Europa e no mundo ocidental, quanto em Portugal em particular. É dessa época o termo que usamos supra – ‘portugalândia’ – e com isso os seus autores quiseram alertar para a possibilidade de não ser aproveitada a circunstância de ‘crise, mas antes para nos continuarmos a iludir, usando os velhos truques de recurso a técnicas menos claras ou de pretendermos ser melhores jogadores do que os outros, numa palavra: acabe-se com o chico-espertismo e o desenrascanço, que tão simplesmente nos tipifica…como portugueses.

= Agora que atingimos o sucesso de superavit orçamental – ainda não consegui compreender com que artimanha – poderá ser útil reparar nalguns sinais de que a ditadura do sucesso talvez possa trazer à luz um certo colapso de valores considerados fundamentais. Cingimo-nos tão simplesmente ao setor da família. Esta deveria ser o reduto mais sagrado para cada pessoa, mas tem-se tornado uma espécie de campo de batalha entre os vários elementos, sem respeito nem consideração. Os tempos de presença de uns aos outros vão sendo encurtados ou mesmo suprimidos, de entre eles destaco as refeições. Estas, feitas em espaços exteriores à casa de família, esfriam o ambiente de partilha, de encontro e de comunhão. Como alguém referia em jeito de piada: antigamente as filhas cozinhavam como as mães, agora bebem como os pais. Com alguma mágoa e tristeza vemos que a família deixou de ser um espaço de convívio para se tornar mais um espaço de conflito. A desconstrução da família é hoje mais propagandeada do que a estabilidade afetivo-emocional. Com que velocidade foram cortados os laços de relacionamentos alicerçados no compromisso entre os mais velhos – avós, pais e outros – para viverem mais ao ritmo da oscilação e, quantas vezes, dos interesses pessoais e não familiares.

Não deixa de ser sintomático que, geralmente, a causa para que possa ser anulado um matrimónio seja aduzida a ‘imaturidade dos noivos’…ao tempo. Estamos até a falar de pessoas com mais de vinte anos e que se revelaram imaturas para assumir tal compromisso. Nota-se uma catadupa de razões para que se tente explicar o insucesso. Efetiva e afetivamente custa a perceber por onde caminha o presente e com apreensão olhamos o futuro, se a família for a principal vítima da ditadura do sucesso. Com efeito, construir a família (com tantas coisas) em consonância fará com que todos se sintam participantes do mesmo projeto…sempre.     

 

(*) Portugalândia é o nome do local onde a ação toma lugar, num jogo criado por quatro especialistas do Instituto Superior Técnico (IST), da Universidade Técnica de Lisboa, uma editora nascida em 2012, com o objetivo de criar jogos inteligentes e que promovam o convívio e o espírito entre os participantes. Este é um jogo de cartas que satiriza a realidade vivida nas sociedades democráticas, dos jogos de poder às pressões e influências obscuras. O nome é sugestivo - «Vem aí a Troika» -, num jogo que desafia os concorrentes a levar um país à bancarrota. Esta é uma nação em queda livre. Qualquer semelhança com factos, entidades ou pessoas, dizem eles, “é pura coincidência”.


António Sílvio Couto

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