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sábado, 6 de abril de 2019

Da ataraxia estoica…à paixão silenciosa de Cristo


Por estes dias ouvi alguém que, referindo-se ao seu estado de saúde, dizia que não estava habituado a queixar-se… até porque estamos em tempo de Quaresma.

A capacidade de não-inquietude dos estoicos deixou alguns resquícios na forma como nos foi transmitida uma certa dose de tranquilidade de ânimo ou a ausência de inquietude na paixão de Cristo através dos Evangelhos: o longo, profundo e interrogativo silêncio de Jesus em todo o processo a que foi submetido como foi apresentado aos seus discípulos para quando estivessem em maré de perseguição, de provação ou mesmo de confronto consigo mesmos e/ou com o exterior.  

= Sem querer abusar dos três sinais que caraterizam o nosso tempo – aspirina, micro-ondas e fraldas descartáveis – percebe-se como se torna difícil não reagir ao mais pequeno contratempo e ao constrangimento dos nossos prazeres. Com efeito, a ‘apatia’, que fundamentava o processo de ataraxia dos estoicos, está contraditado ao mais ínfimo pormenor pessoal, social e mesmo cultural. Nada nem ninguém pode afetar a nossa ‘felicidade’, muitas vezes feita de casmurrices se não mesmo de vícios e má-educação.

Quem ousa apresentar a fé cristã onde se contenha pinceladas de sacrifício? Quem tenta referir a dimensão sacrificial da missa, se sentir indícios de comichão no assento dos ouvintes/praticantes? Quem não tenta ‘inovar’ na via-sacra para que esta não nos confronte com os sofrimentos (físicos, psicológicos e morais) de Jesus? Quem não dará voltas à imaginação para que não afugente o resto dos praticantes, se lhes falarmos da entrega dos nossos sacrifícios em vez das reivindicações habituais?

Estas e outras questões se podem levantar quando nos aproximamos da vivência da ‘semana santa’, onde meditamos o mistério pascal da paixão-morte-ressurreição de Cristo. Ele, que tanto sofreu por nós e em cujas chagas fomos curados, continua a ser uma provocação ao nosso melaço de vida, onde nem os mínimos sacrifícios enquadramos nesse Seu mistério de entrega por nós e pela nossa salvação. 

= Escutemos a voz do magistério sobre o modo como devemos conduzir-nos neste tempo, que não é pior do que outros momentos do passado. Temos, sim, de saber compreender os sinais de Deus para connosco.

«É salutar recordar-se dos primeiros cri­stãos e de tantos irmãos ao longo da história que se mantiveram transbordantes de alegria, cheios de coragem, incansáveis no anúncio e capazes de uma grande resistência activa. Há quem se console, dizendo que hoje é mais difícil; temos, porém,de reconhecer que o contexto do Império Romano não era favorável ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à defesa da dignidade humana. Em cada momento da história, estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos. Isto está sempre presente, sob uma roupagem ou outra; deriva mais da limitação humana que das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje é mais difícil; é diferente. Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram as dificuldades próprias do seu tempo. Com esta finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a recuperar algumas motivações que nos ajudem a imitá-los nos nossos dias» - Papa Francisco, ‘Alegria do Evangelho’, n.º 263.

À luz do silêncio de Jesus, na sua paixão, poderemos aprender também nós o modo como Ele nos conduz, verdadeiramente! Não haverá, por aí, muito desperdício de sofrimento que poderia ser redentor e salvador? Não teremos de viver esta continuada entrega de tudo e de quanto nos faz sofre para que haja abertura à graça divina de tantos que precisam de intercessão?

Olhemos a cruz vazia e ofereçamo-nos com Jesus. Adoremos o Senhor que jamais passará pela cruz. Contemplemos a irradiação do Céu, quando soletramos a jaculatória: ‘nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus, que pela vossa santa cruz remistes o mundo’… ontem, hoje e por toda a eternidade!

A cruz não esmaga, pelo contrário, levanta e eleva! A quietude estoica paralisa e embaraça. A cruz é sinal de caminhada, os exoterismos estoicos fazem mergulhar no narcisismo…

Os estoicos serenam-se, os cristãos incomodam-se para que outros acolham a salvação trazida por Jesus. O resto poderá ser pietismo barato ou devocionismo de circunstância. Deixemos entrar Jesus, serenamente!

 

António Sílvio Couto

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