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quarta-feira, 21 de março de 2018

Para não ser como um mocho!


Ao final da manhã, o vizinho estava a sair de casa para levar a passear, mesmo em cadeira de rodas e por entre alguma chuva, a mulher um tanto entrevada desde há meses… Este ritual é, nas palavras do marido, uma forma de ter contato com as outras pessoas, não sendo, na sua visão, alguém como o mocho, que viveria taciturno consigo mesmo e sem ligar aos demais…

Num tempo em que as pessoas se vão fechando – ou talvez mais encerrando – em si mesmas, sem olharem aos outros, esta perspetiva de sair de casa e de levar alguém ao contato com os outros é – ou devia ser – uma boa dose de abertura para com os mais próximos, podendo ser os vizinhos muito mais do que a presença dos familiares diretos…tão ‘ocupados’ andam com as suas vidas! 

= Como ave notívaga, o mocho encerra alguma simbólica ambígua, tanto podendo significar algo que tenha a ver com a sabedoria, a vigilância e a contemplação – aparece, por vezes, associado à representação da matemática – como ainda pode ser interpretado numa vertente mais sombria, associado a episódios portadores de más notícias, onde a morte seria um deles, e mesmo com um sentido algo exotérico relacionado com a bruxaria e afins…

Em certos contextos socioculturais a alusão ao mocho é algo mais alusivo ao prenúncio malévolo do que como portador de boas notícias…

Porque vive e anda de noite, a sua visão é associada a uma capacidade invulgar de ultrapassar as dificuldades e mesmo entendido como uma expressão de sabedoria acima da média…sobretudo humana. 

= Quando o tal vizinho utilizou o recurso de ‘não ser como o mocho’ talvez tenha pretendido fazer sair da escuridão e da penumbra em que tantas pessoas – ele dizia-o por experiência familiar – se escondem e refugiam, evitando o contato com os outros e podendo fecharem-se numa espécie de ensimesmamento…

Há, no entanto, uma outra possibilidade de valorização de ‘não ser como o mocho’, na medida em que as pessoas saindo da circulação como que podem entrar num processo de pré-morte, sendo relegadas para um espaço onde (quase) perdem a sua identidade e marginalizadas, mesmo que inconscientemente, abdicam de incomodarem os mais próximos e até os familiares… Todo este processo pode deixar marcas irremediáveis, sobretudo, se as pessoas que assim vivem, têm tendências para o isolamento e a autoexclusão…

Hoje há uma larga fatia da nossa população que vive isolada, passando uma boa parte do seu dia votada a uma espécie de abandono… Não basta tentar fazer sair essas pessoas de casa, se não forem valorizadas e atendidas às suas necessidades e potencialidades mais básicas e essenciais.    

= Vivemos efetivamente numa encruzilhada, onde a egolatria tem mais espaço e oportunidade do que a capacidade de repararmos no Cristo de braços abertos e de coração trespassado na Cruz. Esta deverá polarizar a nossa atenção nos dias que se aproximam… de semana santa e de Páscoa. Com efeito, quando andamos tanto a olhar para baixo – até parece que perdemos algo e tentamos encontrá-lo avidamente – tornar-se num grande desafio essa atitude de olharmos para o Alto e de vermos no Crucificado quem responde às nossas aspirações mais subtis e audaciosas. Enquanto não soubermos colocar o olhar na meta, andaremos a titubear por entre as quedas nas etapas…

Quem melhor do que Jesus para nos ensinar a percorrer o nosso caminho – nem sempre tão sacro quanto seria desejável – de cada dia e de toda a vida: n’Ele, por Ele e com Ele aprendemos a não ficarmos tropeçados nas quedas, mas, com a ajuda dos outros e ajudando-os também, haveremos de ser capazes de vivermos em abertura àqueles/as que Deus coloca no nosso caminho, confiando neles e sendo amparo uns para os outros.    

Desejamos para todos quantos nos possam ler que tenham um tempo de vivência do mistério pascal com serenidade e simplicidade, com ousadia e com harmonia, com fidelidade e espargindo a felicidade de acreditarmos em Cristo Jesus… O mocho foi entendido em certas épocas da cristandade como prefiguração de Cristo (Lc 1,79), como referência à capacidade de guiar as almas que estavam nas trevas…para a paz!

 

António Sílvio Couto  



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