Partamos de factos simples e (quase) inocentes. Ao meio da tarde da véspera
do dia 13 de maio partiram da moita cerca de duas centenas de excursionistas/peregrinos
para Fátima...rumo à noite de vigília (vulgo procissão das velas)... Mais de
dois terços dos integrantes dos quatro autocarros não são praticantes da fé
católica na paróquia de onde saem...
Desde logo me surgiram várias questões – umas mais rebuscadas e outras mais
recorrentes; umas um tanto desagradáveis e outras mais ou menos inofensivas;
umas mais do plano eclesiástico e outras tendo em conta a dimensão eclesial –
deixamos, por isso, breves exemplos: Que leva esta gente a ir a um ato que só
se entende numa fé cristã/católica minimamente esclarecida? Que motiva estas
pessoas irem a Fátima – mesmo regressando por alta madrugada – algo de divino
ou qualquer coisa mais tradicional? Por que razão estas pessoas ‘fogem’ da fé
próxima e vão praticá-la à distância? Que ligação tem esta experiência
religiosa se não tem raízes (visíveis) nos espaços em que vivem?
Fique claro que em nada deste questionamento está juízo algum sobre nenhuma
pessoa em concreto, mas tão- somente uma tentativa de tentar enquadrar tudo
isto na relativa multidão dos ‘peregrinos de Fátima’, sejam eles centenas ou
milhares...fossem até milhões.
Fique ainda mais esclarecido que raramente me enquadro em peregrinações de
grande multidão – das ditas ‘aniversárias’ (de maio a outubro) sou mesmo pouco
frequentador – se bem quem tenha estado nalgumas suficientemente significativas
da vinda dos papas ao santuário...
As observações que pretendo apresentar são somente de índole de reflexão,
em ordem a fazermos do ‘altar do mundo’ – como lhe chamou Paulo VI – uma
experiência de fé sincera, esclarecida e comprometida...agora e para o futuro.
1. Muito daquilo que acontece em Fátima está eivado mais de religiosidade popular
e, em certas circunstâncias, vive dum razoável mimetismo cristão, de onde
culturalmente temos evoluído muito pouco. Na maior parte dos casos as pessoas
rezam particularmente por si mesmas e pelas suas intenções, deixando-se pouco
envolver pela dimensão comunitária, embora a multidão circunstancial possa (até)
ofuscar os sinais mais significativos...de sermos muitos juntos, embora não
unidos. Quantas vezes as pessoas deambulam cumprindo as suas promessas por
entre as celebrações (pretensamente) comunitárias... Quantas vezes os ritos
pessoais têm dificuldade em serem inseridos nos aspetos com os outros... Até as
esmolas – boa fonte de receita do santuário – são vividas mais num quadro de
cumprimento de promessas do que na vivência mais coletiva... Quem viu alguma
vez ser feito um peditório nas missas do santuário? E mesmo o ofertório nas
missas oficiais só tem maior expressão na recolha do trigo na peregrinação de
agosto...e mesmo assim reduzido quase à diocese de Leiria...
2. Possivelmente o que há de mais grave na ritualização da fé – se de tal
se tratar corretamente – em Fátima é uma vertente de descompromisso com os
outros...depois de ali terem estado. Velas e rezas, ‘avé-marias’ e lenços a
dizer ‘adeus’, flores e jaculatórias...podem dar consolo a muitas almas, mas
talvez não criem uma onda de fraternidade, de solidariedade e de compromisso
político após as celebrações na Cova de Iria.
Nossa Senhora salvou Portugal do perigo da ditadura do materialismo
(comunismo), mas só poderá ser novamente um baluarte da nova evangelização –
que é muito mais do que uma recristianização – se mergulhar e fizer aprofundar
a mensagem de Fátima no seu sentido mais genuíno e teológico...
3. Agora que caminhamos para a celebração do primeiro centenário das
aparições de Nossa Senhora não deixa de ser significativo que tenha sido
lançado o símbolo do coração como elemento representativo e propulsor duma nova
dinâmica de Fátima para o mundo...enquadrada no jubileu da misericórdia e na
visita da «imagem peregrina» às várias dioceses... Que seja Ela a visitar-nos e
não nós a fazermos atos de religião tradicionais de visitação à imagem quando
nos tocar em sorte tê-la por perto... Inovação na fé, precisa-se!
António
Sílvio Couto
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