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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Numa cultura de afirmação do indivíduo



Escutei, por estes dias, uma observação pertinente e razoavelmente sábia: Quando uma família se aproxima dos serviços de uma paróquia para pedir o batismo, é habitual ouvir-se - temos de ver se a pessoa está bem consciente daquilo que vai fazer e, nos casos de crianças, se os pais/padrinhos estão conscientes daquilo que isso significa nas suas vidas de cristãos… Por vezes, as pessoas que procuram os serviços da paróquia ainda acrescentam que toda a família foi batizada e que esta pessoa (criança ou adulto) também pretende sê-lo no devido tempo…

Esta resposta tem tanto de simples quanto de complexa, pois, se a Igreja realça, teoricamente, tanto o papel da família como é que quer acentuar a função do indivíduo na receção do batismo? Como se concilia, então, a vertente pessoal sem agravar a dimensão comunitária (onde a família se enquadra)? Como se pode, por isso, enquadrar a perspetiva individual na afirmação comunitária e vice-versa?

Antes de mais temos de nos situar na transformação das dinâmicas sociais onde a família se insere. Vivemos numa cultura da afirmação do indivíduo enquanto existência pessoal. De alguma forma poder-se-á dizer que a célula da sociedade não é mais a família – como tantas vezes a Igreja tem dito – para constatarmos que a célula da sociedade passou a ser o indivíduo com todas as implicações que isso tem trazido à nossa cultura hodierna.

Estamos, assim, diante da afirmação do indivíduo em relação a outros aspetos que envolvem a pessoa humana e onde as linguagens têm vindo a exacerbar o ‘eu’ em confronto com o ‘nós’, seja ele o mais simples como a família ou mesmo outros conceitos do ‘eu coletivo’, como a nação ou mesmo a Igreja.

= Os meus direitos e os teus deveres

Nesta cultura de afirmação do indivíduo vemos serem afirmados mais os direitos do que os deveres, criando-se uma espécie de fragmentação global dos laços sociais, notando-se esta espécie de crise na família em particular: os diferentes elementos constitutivos – marido/esposa, pais/filhos, ascendentes/descendentes – vivem mais uma cultura do consumo, onde cada um é, simultaneamente, consumidor e mercadoria.

Cada pessoa/indivíduo procura mais a realização de si mesmo – naquele princípio da filosofia: ‘torna-te o que és’ – do que a conjugação com os outros que consigo vivem e convivem. Tudo isto exige das instituições sociais uma forte capacidade reformadora e de transformação, tanto de si mesmas como das pessoas que nelas participam.

Lemos por estes dias uma breve estória que reflete, quase de forma anedótica, esta constante necessidade de autoavaliação e de reforma, tendo em conta o significado original deste termo: voltar à forma inicial.

Um padre/pároco chegou a uma terra onde havia muitas pessoas sábias e autossuficientes, sabedoras de tudo e que não ajudavam os outros, pois cada um vivia mais os seus interesses do que as necessidades dos outros.

Depois de fazer o diagnóstico sobre a resposta a dar àquela paróquia… o pároco convocou, para o dia de sábado santo, o ‘enterro da paróquia’.

Ninguém sabia quem era o defunto… mas todos acorreram para o funeral.

Na capela-mor da igreja lá estava o caixão com velas e outros adereços de funeral… e até havia música ambiente… e o ‘requiem’ de Mozart… como música de fundo.

Chegados ao velório foram convidados a despedirem-se do ‘defunto’… e, um a um, cada um dos paroquianos foi-se aproximando do caixão… Nele havia um espelho, onde cada um via a sua imagem e aquilo que era, o que vivia e, sobretudo, como vivia em relação aos outros!

Ali estava o retrato dos egoísmos e dos interesses de cada qual… diante de si e em frente aos outros.

Ainda estamos em tempo de modificar o modo de ser e de estar, tentando ver as questões mais na lógica do comunitário – família, Igreja, nação, etc. – do que na mera afirmação do indivíduo…

 

António Sílvio Couto

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