Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Quem chorará um padre na sua partida?


Um destes dias fui participar no funeral de um padre. Foi na minha diocese de origem… mas podia ser noutra qualquer. Envolveu um padre octogenário…mas podia ser mais velho ou mais novo. Conhecia-o (foi meu professor há mais de quarenta anos)... mas podia ser um quase incógnito. Recebi dele lições académicas… e também outras de índole moral e de valor pragmático… Numa palavra: acostumei-me a olhá-lo com respeito e veneração, tal era a idade e a consideração por alguém superior, se não no intelecto ao menos no mérito.

Observei a sua figura repousada e as flores em seu redor. Senti as lágrimas… sobretudo de familiares, à mistura com a circunspeção de outros presbíteros e muitos (tantos e entretantos) leigos extra laços de sangue… poderá ser de amizade ou até de ligação de fé. Naquele ambiente formal e funerário iam-me perpassando interrogações e avaliações, inquietações e propósitos, recordações e desafios… numa mistura quase anacrónica de sentimentos, de emoções e mesmo de provocações.
 

No título desta partilha/reflexão está contida uma distinção – como se fosse uma técnica de raciocínio tomista – entre a ‘partida’ ocasional e a ‘partida’ definitiva, isto é, entre a mudança de um espaço para outro e a mais dramática e definitiva que é a partida da morte… terrena, localizada e de saída do circuito dos vivos…
 

= Para quem já teve de sair de um lugar para outro, a ‘partida’ exige deixar laços dalguma segurança e ser capaz de ir à descoberta de algo de diferente, de novo e quase instável. Há idades para ainda se ser capaz de mudar, mas, noutras circunstâncias, tudo se pode tornar mais ou menos difícil de gerir e até de digerir. Certas ‘festas de despedida’ como que soam a falso, tais são os elogios que nunca cobrirão em segundos os obstáculos colocados ao longo do tempo e de espaços percorridos… muitas vezes por entre lágrimas e tragos em engolir em seco e com dor.
 

= Nessas horas de saída, fica-nos o amargo da não-correspondência pelos destinatários àquilo que foi proposto… Se bem que a acomodação possa ser a resposta de outros tantos momentos de fraqueza e de desânimo. Nessas horas de saída, não é difícil encontrar aduladores, sob a capa de abutres, que tentam disfarçar uma certa esperteza, camuflando a inteligência não possuída.

= Na hora da despedida torna-se importante e quase fundamental recordar essa palavra de São Paulo: um é o que semeia, outro é o que cuida e outro ainda é aquele que colhe. Com efeito, por muitas e diversas razões será no tempo de pós-despedida que se poderá compreender o significado mais credível daquele que parte bem como do seu razoável trabalho, pois, segundo a leitura de entendidos na matéria, cada um será tanto mais apreciado pelo que deixa nos outros (discípulos, seguidores ou colaboradores) do que por aquilo que pensa que vale… O mestre mede-se pela eficiência do discípulo!
 

= Breves inquietações… quase espirituais

- Que importa pretender ser importante se numa semana após a morte já ninguém se lembra as façanhas do falecido?

- Que importa deixar bens materiais a quem não os aprecia: não custou a ganhar também não custará a gastar?

- Quem lhe chorará lágrimas de saudade, se não soube lançar (humilde, sincera e serenamente) sementes de salvação?

- Quem poderá ser lembrado em memória se lhe faltou horizonte de eternidade naquilo que disse e pretendeu fazer… mais ou menos bem?

Muito honestamente: talvez ninguém me chorará, pois os laços de sangue foram coartados muito cedo, os laços de amizade têm sido muito ténues e os laços de espiritualidade tenho a impressão que não foram compreendidos… É verdade que ninguém nos chora porque não pertencemos a nada nem a ninguém… talvez só a Deus. Será?

  

António Sílvio Couto (asilviocouto@gmail.com)

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