«Levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura. (…) Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também» (Jo 13,4-5.14-15).
Este excerto do evangelho segundo São João é de grande importância teológica, eclesial e espiritual para todos os católicos. Deixo uma breve reflexão sobre o tema, deixando ainda sugestões neste ano jubilar da esperança.
– O texto parece dever ter alguns ‘acertos’ de tradução. Onde se diz ‘levantou-se da mesa’, está no grego: ‘levantou-se da ceia’ (deipnon), como sendo a refeição principal ao cair do dia da família judaica e onde se partilhavam os momentos mais significativos ou, nalguns casos, se discutiam assuntos de interesse para os convivas.
– Outro aspeto que pode ser atendido para que não seja incluída a palavra mesa – ao menos no sentido que nós lhe damos – era a disposição das pessoas na configuração da refeição, pois os comensais comiam recostados sobre o lado esquerdo, comendo com a mão direita. Isso daria outra imagem daquilo que vemos nas representações ‘idílicas’ de tantos quadros alusivos à ‘última ceia’…
– A necessidade de lavar os pés na forma habitual era decorrente de que os caminhos da Palestina eram muito empoeirados e de que, como usavam normalmente, como calçado as sandálias os pés estariam naturalmente sujos. Repare-se nas recomendações de ablução para os atos sociais dos tempos de Jesus… Atos esses que se tornaram, em muitos casos, situações de natureza religiosa e quase de incidência ritual-legal.
– É neste contexto religioso-espiritual que escutamos o texto em que se dá o lava-pés, por certo uma grande surpresa para os discípulos, eles que até tinham estado a disputar, momentos antes, qual deles era o maior (cf. Lc 22, 25-27) e em que fervilhava na mente de Judas a forma de concretizar o projeto combinado com os sumos-sacerdotes e os oficiais do templo (cf. Mt 26, 14-16) de lhes entregar Jesus.
– De referir ainda que se nota um certo paralelo simbólico entre a unção dos pés em Betânia (cf. Jo 12, 1-9) com o lava-pés do cenáculo: ambos acontecem com um intervalo de dias dentro da semana da Páscoa: num como noutro caso dá-se oposição de Judas e de Pedro; uma e outra das ações têm uma perspetiva futura… Poderemos ver um díptico entre a unção dos pés e o lava-pés…
= A lição da toalha
Depois de se despojar do manto – na paixão será despojado das suas vestes à força – Jesus reveste-se de uma toalha (dention, em grego) que colocou à cintura, deitou água numa bacia e começou a lavar – numa posição subalterna à deles, poderemos dizer: de joelhos diante de cada um – os pés aos discípulos. Mais do que com palavras Jesus fala com gestos: Ele serve, embora seja ‘Senhor e Mestre’. Isso de lavar os pés era tarefa dos escravos e Jesus assume essa função para com os seus discípulos.
Jesus lava os pés e enxuga-os com a toalha. Uma nova vertente se pode interpretar desta ação profética de Jesus: se o lava-pés nos faz entrar no mistério da eucaristia – é liturgicamente o sinal da Quinta-feira santa – também podemos perscrutar a necessidade do batismo o que se pode depreender do diálogo entre Jesus e Pedro (cf. Jo 13, 6-10): «Se eu não te lavar, não tens parte comigo» (v. 8b). Isto é, se Pedro não se submetesse a Jesus naquele ato, os dois não teriam comunhão. Pedro, então, respondeu: «Senhor, não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça» (v. 9). Por seu turno, Jesus diz-lhe: «Quem já se banhou não necessita de lavar senão os pés; quanto ao mais está todo limpo».
= Da imagem à missão
Retomada a normalidade da ceia (v. 12), Jesus vai ajudar, interrogativamente, os seus discípulos a colher as lições apontadas:
– Compreender corretamente o sinal, essa imagem de um Deus que se faz servo e que lava os pés. Esse sinal exige capacidade de fé para que possa manifestar esperança pela caridade… nem Judas teve um tratamento diferente, isto é, nem mesmo os ‘traidores’ (ou cobardes) deixam de ser irmãos.
– O que significa lavar os pés uns aos outros? Por quem devemos começar? Não deveria ser por quem nos está mais próximo (família, trabalho, Igreja)? Não deveria ser a esses que conhecemos ou que pensamos conhecer nos defeitos? Nos rituais de ‘5.ª feira’ não andaremos a encenar ‘lava-pés’ para escolhidos e pré-santos? Onde estão os que nos ofendem ou pensamos que tal nos fizeram? Não andaremos a adular-nos uns aos outros em vez de nos servirmos com humildade e em verdade?
= O lava-pés, neste ano jubilar da esperança, deverá ajudar-nos a sair do conforto do ritual já feito para ousarmos viver e testemunhar a novidade de sabermos lavar, hoje, os pés e de os enxugarmos uns aos outros, à semelhança de Jesus.
António Sílvio Couto
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