Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Procissão: entre manifestação de fé e cortejo etnográfico

 


Nos tempos mais recentes sinto-me um tanto confuso com certas ‘procissões’, onde parece caber tudo e o resto, dando a entender que algo vai mal no reino desta preciosidade religiosa com especial significado na expressão pública da fé católica. Se em certos lugares ou regiões se podem incluem alguns elementos sociais e associativos (estandartes ou pessoas trajadas com as suas roupas típicas), noutros isso correrá o sério risco de ser confundido com outras manifestações extrarreligiosas e por que não parecer uma espécie de cortejo etnográfico, que noutras localidades é um número específico das festas. Esta partilha não está isenta do reconhecimento de já ter tentado algumas destas vertentes e agora reconhecer que me enganei e fui enganado.

Recorremos, por isso, ao ‘Diretório sobre piedade popular e liturgia’ (DPPL) da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (n. os 245-247) para elucidar, esclarecer e (talvez) corrigir alguns pontos, perspetivas e vivências.

* Significado e modalidades das procissões – «na procissão, expressão cultual de caráter universal e de múltiplos valores religiosos e sociais, a relação entre a Liturgia e a piedade popular reveste-se de particular relevo. A Igreja, inspirando-se nos modelos bíblicos, determinou algumas procissões litúrgicas que apresentam uma tipologia variada»: algumas evocam acontecimentos salvíficos referidos ao próprio Cristo (apresentação, Ramos, a da vigília pascal; outras são votivas, como a procissão eucarística na solenidade do Corpo de Deus, as rogações e a romagem ao cemitério nos Fiéis Defuntos; outras ainda são necessárias para a realização de algumas ações litúrgicas (nalguns momentos da celebração da eucaristia, entrada, para a proclamação do evangelho, na apresentação das oferendas, comunhão), o cortejo fúnebre.

* Por que fazem (ou podem fazer) procissões com imagens de santos? «A piedade popular, sobretudo a partir da Idade Média, deu vasto espaço às procissões votivas que, na época barroca, atingiram o apogeu: para honrar os santos padroeiros de uma cidade ou de uma corporação, levavam-se processionalmente as relíquias ou uma estátua ou efígie, pelas ruas da cidade». Partindo deste enquadramento histórico-social o DPLL refere-se às procissões nas suas formas genuínas como «manifestações da fé do povo e têm frequentemente conotações culturais capazes de despertar o sentimento religioso dos fiéis». No entanto, considera que as procissões votivas dos santos, na perspetiva da fé cristã, «estão expostas a alguns riscos e perigos: que as devoções prevaleçam sobre os sacramentos (…), as manifestações exteriores sobre as disposições interiores; considerar a procissão como momento culminar da festa; concebe o cristianismo como uma ‘religião de santos’; degeneração da própria procissão que, de testemunho de fé, acaba por se converter em mero espetáculo ou num ato folclórico».

Quanta coisa está denunciada neste excerto do DPLL sobre a maior parte das ‘nossas procissões’, ditas como majestosas, grandiosas ou imponentes. Só se for na ignorância e má-fé! Quantos nem conhecem os santos/santas, evocações/invocações de Nossa Senhora ou de Cristo. Que temos feito para explicá-los correta e simplesmente? Deixar correr não desacreditará o que temos vindo a fazer?

* Dimensões das procissões: «para que a procissão conserve o seu caráter genuíno de manifestação de fá, é necessário que os fiéis sejam instruídos sobre a sua natureza, do ponto de vista teológico, litúrgico e antropológico».

= Do ponto de vista teológico a procissão é um sinal da condição da Igreja, povo de Deus a caminho que, com Cristo e atrás de Cristo, percorre os caminhos da cidade terrena, é um testemunho de fé e é ainda sinal da tarefa missionária da Igreja pelas estradas do mundo. Não serão muito mundanas tantas das procissões?

= Do ponto de vista litúrgico deverão as procissões, inclusive as de caráter mais popular, orientarem-se para a celebração da liturgia, de igreja para igreja, sob a presidência eclesiástica, iniciada com um momento de oração, onde não falte a Palavra de Deus e com sinais de fé cristã, com velas (em referência ao batismo) acesas, terminando com a bênção de um ministro da Igreja. Velas levadas por não-batizados, porquê?

= Do ponto de vista antropológico, a procissão lembra o caminho percorrido com os outros, unidos para a mesma meta, solidários no compromisso de vida. Será compatível serviço com exibição social?



António Sílvio Couto

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Identidade ou identidades – família ou famílias

 


Cerca de seis meses decorridos um novo livro sobre questões idênticas, embora sob perspetivas muito diversas. Em março passado saiu – ‘Identidade e família’; por estes dias foi publicado – ‘Identidades e famílias’. O primeiro tinha por subtítulo – entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade. O segundo livro apresenta como antetítulo – reflexões sobre a liberdade… e em pós-título – uma visão múltipla do futuro do país. Nitidamente o segundo livro sobre ‘identidades e famílias’ é uma reação sobre o primeiro, mesmo que as suas coordenadoras rotulem o livro saído em março de reacionário, elas escreveram em reação algo assanha e verrinosa.
Façamos uma resenha dos dois livros, claramente em campos ideológicos diferentes e, por vezes, antagónicos.

1. O livro «Identidade e família – entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade», é uma obra coordenada pelos quatro fundadores do ‘Movimento acção ética’ – António Bagão Félix, Pedro Afonso, Paulo Otero e Victor Gil. Este livro, editado pela «Oficina do Livro», reúne vinte e dois textos de vários autores (22), tais como (pela ordem alfabética que aparece na capa): Fernando Ventura, Gonçalo Portacarrero de Almada, Guilherme d’Oliveira Martins, Isabel Almeida e Brito, Isabel Galriça Neto, Jaime Nogueira Pinto, João César das Neves, João Duarte Bleck, José Carlos Seabra Pereira, José Ribeiro e Castro, Manuel Clemente, Manuel Monteiro, Manuela Ramalho Eanes, Margarida Gordo, Nuno Brás da Silva Martins, Paulo Otero, Pedro Afonso, Pedro Vaz Patto, Pureza Mello, Raquel Brízida Castro, Ruiz Diniz e Vasco Pinto de Magalhães.

Neste livro com duzentas e oito páginas fala-se da importância da família, como um pilar central da vida em sociedade, considerando-a “natural, universal e intemporal”. Refere-se ainda a cultura de morte, onde se enumeram os adversários da família que, de maneira subtil ou explícita, contribuem para sua destruição. Por último, apresenta-se a ideologia de género, considerando-a impositora de um novo modelo de pensamento único, ideologia essa que compromete o desenvolvimento humano fundado em valores, liberdade e autonomia.

2. Por seu turno, no livro «Reflexões Sobre a Liberdade – Identidades e Famílias”: uma visão múltipla do futuro do país». Editado também pela «Oficina do Livro», reúnem-se vinte textos, dos seguintes autores: André Coelho Lima, Carla Castro, Catarina Furtado, Catarina Marques Rodrigues, Daniel Oliveira, Fabíola Cardoso, Fernanda Câncio e Maria Fernanda Câncio, Francisca Van Dunem, Hilda de Paulo, Henrique França, Isabel Moreira, Joana Mortágua, João Maria Jonet, Leonor Caldeira, Maria Castello Branco, Maria Leonor Beleza, Pedro Strecht, Susana Peralta, Teresa Leal Coelho e Teresa Violante.

Numa espécie de autoapreciação, as coordenadoras do livro dizem que podem todos raramente estar de acordo no campo político, mas têm como objetivo comum abrir uma janela para a multiplicidade de pontos de vista, opções individuais e caminhos de vida, o que caracteriza a sociedade diversa e moderna que Portugal quer ser. É referido ainda que para os autores e autoras, é um imperativo de justiça que a sociedade seja construída com base no respeito e proteção dos direitos e escolhas de todas as pessoas, incluindo as que fazem parte de grupos historicamente discriminados...


3. Depois da tese veio a antítese e procura-se agora uma síntese. Antes de tudo é significativo que se usem formas diferentes de tratar o problema: os de influência judaico-cristã preferem o singular – identidade e família; enquanto os de linguagem menos vinculada (embora alguns se digam dessa área) ao teor cristão usam a fórmula no plural – identidades e famílias. Por outro lado, agora como anteriormente nota-se uma pretensão mais democrática (à sua maneira e vivência) das forças que se reclamam capciosamente da liberdade por contraste com a tradição. Não deixa de ser intrigante que haja quem pretenda influenciar o futuro como se fosse a pedra-de-toque exclusiva da modernidade... Visões e perspetivas, respeitem-se!


António Sílvio Couto

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Por que excluem (normalmente) a Igreja?

 

Na televisão estatal há um programa – visto e revisto nos vários canais de difusão – intitulado ‘portugueses pelo mundo’, numa apresentação diversificada de lugares e de temas, que conta com quase uma dezena de temporadas. Verdadeiramente é daqueles programas que confirma que em qualquer parte do mundo se pode encontrar um português, com ligações mesmo que ténues à mãe-pátria e onde surge irrepreensivelmente a palavra ‘saudade’ e quanto isso significa fora das fronteiras do território (continente e ilhas) nacional.

1. Ocasionalmente tenho visto e percorrido os lugares mostrados e as intervenções dos mais diversos intervenientes. Aprende-se muito e viaja-se com aqueles que saíram do chão-pátrio. As intervenções andam quase sempre nas áreas do social, no campo profissional, em espaços de diversão ou de desporto, com referências às comidas locais (quase sempre em confronto com a de cada um dos entrevistados), a organização socioeconómica dos países de acolhimento, o mundo do trabalho, os aspetos culturais de lá em comparação com os de cá… Os lugares visitados em cada cidade ou região mostram-nos a riqueza humana e civilizacional dos povos, das nações e das diversas linguagens.

2. Sem pretender ser menos correto – e muito menos desonesto na apreciação – na leitura de tais programas, há uma dimensão que quase nunca aparece e em muitas circunstâncias ela é o vínculo unitivo de tantos dos nossos emigrantes: o papel e lugar da Igreja católica entre esses portugueses, pois os ditos ‘centros culturais’ deixam muito a desejar quanto às atividades e processos de unificação dos portugueses no estrangeiro, promovidos e realizados pelas missões católicas. Vi-o e pude testemunhá-lo nalgumas das missões na Alemanha e na Suíça, nos Estados Unidos da América e mesmo em Itália. Para muitos portugueses a missa de domingo ainda é o ponto de referência aos seus conterrâneos e daí se gera partilha humana e emocional de uns para com os outros e todos para com o nosso país.

3. Quando vemos a polarização dos portugueses no estrangeiro à volta da seleção nacional de futebol masculino fica-me um amargo de coração, pois as procissões e os momentos de devoção a Nossa Senhora de Fátima fazem mais pela identidade do país lá fora do que a bandeira nacional ou o hino. Quando olhamos para esses programas televisivos e vemos como que ser varrida da referência, que não da memória, a alusão à fé católica somos levados a suspeitar que há uma pretensão subterrânea de confundir o papel de embrulho com o presente embrulhado. Sim, embora pouca esclarecida na maioria dos casos, a fé desses portugueses espalhados pelo mundo não serve os intentos de tantos catequizadores anticristãos como pretendem insinuar-se…de forma repetida e contumaz.

4. Efetivamente há um fogo que crepita sob as brasas do afã de trabalho de tantos desses emigrantes. Eles, na sua maioria, saíram do país para conquistar melhores condições de vida económica para si e para os seus, mas a sua crença mais profunda, embora um tanto suspensa, não perdeu a energia de fundo. O problema é que se nota um certo discurso anódino de muitos dos que apresentam os valores e critérios dos nossos emigrantes, fazendo crer a quem veja tais programas televisivos que tudo se reduz à festança e à beberragem…sem Deus nem santa Maria!

5. Este panorama quanto aos portugueses espalhados pelo mundo tem de nos fazer rever a nossa atitude para com os imigrantes – já são de um milhão – que têm chegado ao nosso país. Da mesma forma como quisemos que os nossos portugueses tivessem assistência religiosa através de padres enviados para essas missões, assim temos de saber estar atentos aos que chegam para que lhes demos idênticas condições àquelas que foram dadas aos nossos compatriotas. Numa igreja no norte da Alemanha havia dez línguas diferentes que se serviam do mesmo espaço para celebrarem a sua fé. Estaremos capazes de fazer o mesmo nas nossas igrejas, abrindo-as aos imigrantes nas suas línguas? Demos aos outros o que outros nos deram a nós…



António Sílvio Couto

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

É pecado grave rejeitar os migrantes

 


«Nesses mares e desertos mortais, os migrantes de hoje não deveriam estar – e infelizmente estão. Mas não é através de leis mais restritivas, não é mediante a militarização das fronteiras, não é através de rejeições que alcançaremos este resultado. Ao contrário, só o conseguiremos ampliando as rotas de entrada seguras e regulares para os migrantes, facilitando o refúgio para quantos fogem das guerras, da violência, da perseguição e de muitas calamidades; só o conseguiremos favorecendo, em todos os sentidos, uma governance global das migrações fundamentada na justiça, na fraternidade e na solidariedade. E unindo forças para combater o tráfico de seres humanos, para impedir os traficantes criminosos que exploram sem piedade a miséria dos outros».

Este excerto da audiência semanal do Papa Francisco de 28 de agosto passado – dia litúrgico de S. Agostinho (santo do norte de África, hoje não-cristão) – contém denúncias e desafios, projetos e provocações, riscos e recomendações.

Vejamos cada um destes paralelos:

1. Denúncias e desafios. Que grande contraste encontramos nestas palavras do Papa com as posições de certos políticos ditos da área do cristianismo: essas posições cheiram mesmo a pecado. Diz o Papa: «há quem trabalhe sistematicamente com todos os meios para afastar os migrantes – para afastar os migrantes. E isto, quando é feito de modo consciente e responsável, é um pecado grave». Digo, do ponto de vista da prática religiosa e concretamente ao abeirar-se para a comunhão eucarística: se, um desses políticos que têm vindo a acirrar as pessoas contra os imigrantes, viesse para comungar, recusar-lhe-ia dar a hóstia (com Jesus sacramentado), pois não pode receber o Cristo feito comunhão quem gera e faz divisão e mesmo anuncia atrocidades para com os seus irmãos, mesmo que estes nem sejam crentes e tão pouco cristãos. Não podemos brincar com conceitos nem ser fomentadores da violência tácita ou explícita…como alguns políticos são e, desgraçadamente, se comportam.

2. Projetos e provocações. De muitas e variadas formas o Papa Francisco tem vindo a colocar no centro das suas preocupações tantos e tantos concidadãos do mundo que sucumbem ao procurarem melhores condições de vida ou ao fugirem da perseguição e da miséria. Referiu na audiência que estamos a seguir: «Na era dos satélites e dos drones, há homens, mulheres e crianças migrantes que ninguém deve ver: escondem-nos. Só Deus os vê e ouve o seu clamor. E esta é uma crueldade da nossa civilização». Isto dever-nos-ia envergonhar como cultura e como civilização, na medida em que uns tantos exploram outros e uma fatia significativa de pessoas continua a ser explorada. Esses seres humanos são desumanizados em razão dos mais funestos e ignóbeis interesses e com a conivência silenciosa de quase todos…

3. Riscos e recomendações. Segundo dados disponíveis, em Portugal, atualmente, os imigrantes asseguram muitos dos serviços e trabalhos: na construção civil, na restauração e turismo, pesca e agricultura… e noutros serviços que os portugueses já não querem fazer e que, em tempos remotos, foram realizar nos países para onde emigraram. Efetivamente, as coisas mudam e as tarefas menos agradáveis são deixadas para outros que, por vezes, são considerados numa escala social inferior. Como referiu o Papa na audiência que estamos a seguir: «estes homens e mulheres corajosos são sinal de uma humanidade que não se deixa contagiar pela cultura negativa da indiferença e do descarte: o que mata os migrantes é a nossa indiferença, a atitude de descarte». De facto, entraríamos em colapso social e demográfico se nos faltassem os imigrantes. Por isso, soa a falta de senso o que certas forças partidárias dizem dos imigrantes, embora alguns nada seriam se não tivessem sido emigrantes ou quando estudaram no estrangeiro.

4. Urge, portanto, mudar de registo, aprendendo com as circunstâncias de cada tempo e com as condicionantes de cada lugar. Se assim não for estaremos sempre desarticulados da História, toda ela feita de grandes ou de pequenas migrações… Esta riqueza engrandece-nos e faz-nos ser humildes!



António Sílvio Couto