Dá a impressão que cada terra tem a sua forma de se referir a esse vício nacional: falar – normalmente mal – da vida dos outros. Aquelas palavras, que ouvi em lugares diferentes – mexericos, no contexto ribatejano; murmurações, nas franjas da margem sul; calhandrices – na beira-mar mais piscatória. Mas podemos acrescentar outras palavras e dar-lhes conotação – bisbilhotice, sinónimo de intriga ou mexerico; ‘cabaneirice’ como coscuvilhice – termo do alto Minho; fofoquice – termo provindo do linguajar brasileiro… A riqueza de vocabulário para este fenómeno cada vez mais popular e roça as instâncias da comunicação verbal direta, nas redes sociais e noutros meios de comunicação… onde se fala mais dos outros do que dos próprios.
1. Será um vício nacional esta vontade e quase necessidade de falar da vida alheia? Por quer teremos de falar dos outros, quando nos devíamos preocupar essencialmente connosco mesmos? Em que ‘escola’ aprendemos tal atitude de vida? Será que não é na família onde aprendemos e exercitamos esta mazela nacional? Quem educa – escola, Igreja ou outra entidade que ministre conhecimentos e sentido ético – não deveria fazer um pouco mais e até melhor do aquilo que se vê, sente e perceciona?
2. Mesmo em surdina o ambiente que se cria com falar dos outros é muito mais do que uma forma de estar, já se tornou uma maneira de ser, quase sem nos darmos conta: engendramos uma espécie de cultura da qual como que fazemos derivar a forma de estarmos e de nos posicionarmos. Àquela recomendação: quem fala dos outros a ti, vai falar de ti aos outros…deveríamos dar mais importância, pois, se cada um de nós não estancar esta onda de má-língua, tornar-se-á insuportável a sociedade em que vivemos, nos movemos e existimos…
3. Houve uma fase da vida pastoral do Papa Francisco em que ele invetivou veementente este vício social de falar nas costas da vida dos outros. Eis uma breve citação da oração de ‘Angelus’ de 10 de setembro de 2023: «Infelizmente a primeira coisa que muitas vezes se cria à volta de quem erra é a coscuvilhice, em que toda a gente fica a saber do erro, com todos os pormenores, exceto a pessoa em questão! Isto não está certo, irmãos e irmãs, isto não agrada a Deus. Não me canso de repetir que a coscuvilhice é uma chaga na vida das pessoas e das comunidades, pois traz divisão, traz sofrimento, traz escândalo, e nunca ajuda a melhorar, nunca ajuda a crescer. Um grande mestre espiritual, São Bernardo, dizia que a curiosidade estéril e as palavras superficiais são os primeiros degraus da escada da soberba, que não eleva, mas abaixa, precipitando o homem na perdição e na ruína (cf. Os graus da humildade e da soberba).
Jesus, porém, ensina-nos a comportarmo-nos de forma diferente. Eis o que ele nos diz hoje: «Se o teu irmão cometer uma falta contra ti, vai e repreende-o a sós» (v. 15). Fala com ele «cara a cara», fala com lealdade, para o ajudar a compreender onde erra. E fá-lo para o seu próprio bem, superando a vergonha e encontrando a verdadeira coragem, que não significa falar mal, mas dizer-lhe as coisas na cara com mansidão e gentileza».
4. De facto, somos pouco sinceros uns para com os outros, pois damos mais ouvidos às coisas negativas dos outros do que às suas qualidades, dons ou mesmo virtudes. Na maior parte dos casos preferimos falar ou difundir o que é negativo dos outros do que aquilo que nos pode ofuscar a sua presença ou até a sua personalidade. Recorrentemente vemos os outros a serem difamados ou mesmo sendo posta em causa na sua honra e calamo-nos cobardemente, permitindo, assim, que se crie um ambiente de mal estar, senão mesmo de maledicência sem recuo. É nesta sociedade doente em que quase nos comprazemos em sobreviver, julgando que isso só acontecerá aos outros, mas, um dia, isso pode acontecer com cada um de nos e aí já não haverá retorno para não sermos engolidos por essa onda malfazeja e fétida.
5. Não será tempo de converter-nos, agora que estamos na Quaresma, deste defeito pessoal e social?
António Sílvio Couto
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