Por duas vezes, no primeiro domingo da Quaresma, encontramos a expressão ‘sacramento da quaresma’, a primeira na oração coleta: «Concedei-nos, Deus todo-poderoso, que pelas práticas anuais do sacramento quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo e demos testemunho dele com uma vida santa» e a segunda na oração sobre as oblatas próprio desse mesmo primeiro domingo, quando se refere:
«fazei que a nossa vida, Senhor, corresponda à oferta das nossas mãos com a qual damos início à celebração do venerável sacramento da Quaresma». Segundo a terceira edição típica do Missal Romano (2023) algo se pretende realçar nestes dois momentos de início da caminhada quaresmal. Encetemos uma pequena descoberta.
1. Que significa acrescentar à quaresma o termo ‘sacramento’? Será que este sacraliza aquela? Como
podemos e devemos interpretar a vivência da quaresma nesta linguagem de sacramento? Para os menos
esclarecidos teologicamente dizer ‘sacramento da quaresma’ envolve o mesmo entendimento dos sete
sacramentos litúrgico-eclesiais? Qual a relação entre a ‘Igreja sacramento de salvação’ e a quaresma como sacramento? Haverá correlação e complementaridade?
2. Tentemos um percurso bíblico-teológico para esclarecermos o conceito de ‘sacramento’. Desde logo o Catecismo da Igreja católica. «Os sacramentos são sinais eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, pelos quais nos é dispensada a vida divina. Os ritos visíveis, com os quais são celebrados os sacramentos, significam e realizam as graças próprias de cada sacramento. Eles dão fruto naqueles que os recebem com as disposições requeridas» (n.º 1131). Por seu turno, realça-se que «os sacramentos são «da Igreja», no duplo sentido de que são «por ela» e «para ela». São «pela Igreja», porque ela é o sacramento da ação de Cristo que nela opera, graças à missão do Espírito Santo. E são «para a Igreja», são estes «sacramentos que fazem a Igreja», porque manifestam e comunicam aos homens o mistério da comunhão do Deus-Amor, um em três pessoas» (n.º 1118).
3. Se nestes textos do Catecismo, tendo por referência os Padres da Igreja, como S. Agostinho ou S. Cipriano de Cartago, podemos ver que os termos ‘mistério’ e ‘sacramento’ envolvem a mesma abrangência a Cristo e um traduz do grego para o latim a mesma ‘realidade’ teológica. O Concílio Vaticano II chama à Igreja ‘sacramento de salvação’ (Constituição dogmática ‘Lumen gentium’ sobre o mistério da Igreja, n.º 48 e também na Constituição ‘Sacrosantum Concilium’ sobre a sagrada liturgia, n. os 5 e 26) e faz da mesma Igreja quem atualiza o mistério de Cristo, como sacramento de salvação. Deste modo afirmar a quaresma como sacramento é uma atualização mais próxima ainda (no tempo e no espaço) do mistério de Cristo e do acolhimento, por toda a Igreja e por cada fiel, da salvação de Jesus Cristo.
4. Quais podem ser as implicações de vermos e de vivermos na dinâmica do ‘sacramento da quaresma’? Tenhamos em conta os dois momentos do primeiro domingo da Quaresma em que realçamos esta vertente ‘nova’ da quaresma como ‘sacramento’. Na oração ‘coleta’ considera-se algum nexo entre as práticas anuais da quaresma (esmola, oração e jejum) como meios de alcançar ‘maior compreensão do mistério de Cristo’, Ele que é o sacramento/mistério do Pai pelo Espírito Santo. Tais práticas não ações exteriores, mas devem radicar no interior da pessoa, isto é, no processo contínuo de conversão. Por seu turno, na ‘oração sobre as oblatas’ pretende-se que haja correspondência entre as ofertas (desde logo dos dons para o sacrifício eucarístico) e a vida, isto é, não damos coisas, mas é própria pessoa que se oferece a Deus em Igreja.
5. Sendo a Quaresma um tempo comunitário de renovação da salvação batismal, torna-se importante darmos espaço e ajudarmo-nos em Igreja a dar novo ardor à graça recebida no batismo. Isso se perceberá mais comunitariamente na celebração da vigília pascal, onde toda (na diversidade de vocações, carismas e ministérios) a Igreja e a Igreja toda (nas diversas expressões de fiéis, leigos, religiosos e clérigos)…
António Sílvio Couto
«fazei que a nossa vida, Senhor, corresponda à oferta das nossas mãos com a qual damos início à celebração do venerável sacramento da Quaresma». Segundo a terceira edição típica do Missal Romano (2023) algo se pretende realçar nestes dois momentos de início da caminhada quaresmal. Encetemos uma pequena descoberta.
1. Que significa acrescentar à quaresma o termo ‘sacramento’? Será que este sacraliza aquela? Como
podemos e devemos interpretar a vivência da quaresma nesta linguagem de sacramento? Para os menos
esclarecidos teologicamente dizer ‘sacramento da quaresma’ envolve o mesmo entendimento dos sete
sacramentos litúrgico-eclesiais? Qual a relação entre a ‘Igreja sacramento de salvação’ e a quaresma como sacramento? Haverá correlação e complementaridade?
2. Tentemos um percurso bíblico-teológico para esclarecermos o conceito de ‘sacramento’. Desde logo o Catecismo da Igreja católica. «Os sacramentos são sinais eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, pelos quais nos é dispensada a vida divina. Os ritos visíveis, com os quais são celebrados os sacramentos, significam e realizam as graças próprias de cada sacramento. Eles dão fruto naqueles que os recebem com as disposições requeridas» (n.º 1131). Por seu turno, realça-se que «os sacramentos são «da Igreja», no duplo sentido de que são «por ela» e «para ela». São «pela Igreja», porque ela é o sacramento da ação de Cristo que nela opera, graças à missão do Espírito Santo. E são «para a Igreja», são estes «sacramentos que fazem a Igreja», porque manifestam e comunicam aos homens o mistério da comunhão do Deus-Amor, um em três pessoas» (n.º 1118).
3. Se nestes textos do Catecismo, tendo por referência os Padres da Igreja, como S. Agostinho ou S. Cipriano de Cartago, podemos ver que os termos ‘mistério’ e ‘sacramento’ envolvem a mesma abrangência a Cristo e um traduz do grego para o latim a mesma ‘realidade’ teológica. O Concílio Vaticano II chama à Igreja ‘sacramento de salvação’ (Constituição dogmática ‘Lumen gentium’ sobre o mistério da Igreja, n.º 48 e também na Constituição ‘Sacrosantum Concilium’ sobre a sagrada liturgia, n. os 5 e 26) e faz da mesma Igreja quem atualiza o mistério de Cristo, como sacramento de salvação. Deste modo afirmar a quaresma como sacramento é uma atualização mais próxima ainda (no tempo e no espaço) do mistério de Cristo e do acolhimento, por toda a Igreja e por cada fiel, da salvação de Jesus Cristo.
4. Quais podem ser as implicações de vermos e de vivermos na dinâmica do ‘sacramento da quaresma’? Tenhamos em conta os dois momentos do primeiro domingo da Quaresma em que realçamos esta vertente ‘nova’ da quaresma como ‘sacramento’. Na oração ‘coleta’ considera-se algum nexo entre as práticas anuais da quaresma (esmola, oração e jejum) como meios de alcançar ‘maior compreensão do mistério de Cristo’, Ele que é o sacramento/mistério do Pai pelo Espírito Santo. Tais práticas não ações exteriores, mas devem radicar no interior da pessoa, isto é, no processo contínuo de conversão. Por seu turno, na ‘oração sobre as oblatas’ pretende-se que haja correspondência entre as ofertas (desde logo dos dons para o sacrifício eucarístico) e a vida, isto é, não damos coisas, mas é própria pessoa que se oferece a Deus em Igreja.
5. Sendo a Quaresma um tempo comunitário de renovação da salvação batismal, torna-se importante darmos espaço e ajudarmo-nos em Igreja a dar novo ardor à graça recebida no batismo. Isso se perceberá mais comunitariamente na celebração da vigília pascal, onde toda (na diversidade de vocações, carismas e ministérios) a Igreja e a Igreja toda (nas diversas expressões de fiéis, leigos, religiosos e clérigos)…
António Sílvio Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário