Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 11 de novembro de 2024

S. Martinho – ‘carnaval de inverno’?

 

A celebração da festa de S. Martinho ocorre precisamente quarenta dias antes do Natal, um pouco à semelhança do Carnaval por ocasião da Páscoa. Atendendo aos festejos exteriores e à coincidência de dias antes de uma e de outra das festas cristãs, há quem faça o paralelo entre uma e outra das datas.

De facto, numa sociedade ritmada pelas vivências dos mosteiros, como era a do tempo posterior à vida de grande São Martinho de Tours, vivia-se com intensidade, mesmo nos jejuns e nas penitências a preparação para o Natal.

Assim, essa espécie de folia que vemos associada ao ‘magusto’, por ocasião do S. Martinho, como que corresponderia aos folguedos do Carnaval para entrar nas penitências quaresmais.

Este paralelo entre S. Martinho e Carnaval dá-nos a perceber a seriedade com que se vivia a preparação tanto do Natal como da Páscoa... Será desta forma simples, alegre e exigente que vivemos o ‘S. Martinho’ para preparar a vivência cristã do Natal?

* Dada a importância e influência até popular da figura de São Martinho de Tours citamos o Papa Bento XVI na oração de Angelus do dia 11 de novembro de 2007.

«A Igreja recorda hoje, 11 de Novembro, São Martinho, Bispo de Tours, um dos santos mais célebres e venerados da Europa. Tendo nascido numa família pagã na Panónia, atual Hungria, por volta de 316, foi orientado pelo pai para a carreira militar. Ainda adolescente, Martinho encontrou o Cristianismo e, superando muitas dificuldades, inscreveu-se entre os catecúmenos para se preparar para o Batismo. Recebeu o Sacramento por volta dos vinte anos, mas teve que permanecer ainda por muito tempo no exército, onde deu testemunho do seu novo género de vida: respeitador e compreensivo para com todos, tratava o seu criado como um irmão, e evitava as diversões vulgares. Tendo-se despedido do serviço militar, foi a Poitiers, na França, junto do santo Bispo Hilário. Por ele ordenado diácono e presbítero, escolheu a vida monástica e deu origem, com alguns discípulos, ao mais antigo mosteiro conhecido na Europa, em Ligugé. Cerca de dez anos mais tarde, os cristãos de Tours, tendo ficado sem Pastor, aclamaram-no seu Bispo. Desde então Martinho dedicou-se com zelo fervoroso à evangelização no campo e à formação do clero.

Mesmo sendo-lhe atribuídos muitos milagres, são Martinho é famoso sobretudo por um ato de caridade fraterna. Quando era ainda jovem soldado, encontrou na estrada um pobre entorpecido e trémulo de frio. Pegou no seu manto e, cortando-o em dois com a espada, deu metade àquele homem. Nessa noite apareceu-lhe Jesus em sonho, sorridente, envolvido naquele mesmo manto.

O gesto caritativo de São Martinho inscreve-se na mesma lógica que levou Jesus a multiplicar os pães para as multidões famintas, mas sobretudo a deixar-se a si mesmo como alimento para a humanidade na Eucaristia, Sinal supremo do amor de Deus, ‘Sacramentum caritatis’. É a lógica da partilha, com a qual se expressa de modo autêntico o amor ao próximo. Ajude-nos São Martinho a compreender que só através de um compromisso comum de partilha, é possível responder ao grande desafio do nosso tempo: isto é, de construir um mundo de paz e de justiça, no qual cada homem possa viver com dignidade. Isto pode acontecer se prevalece um modelo mundial de autêntica solidariedade, capaz de garantir a todos os habitantes do planeta o alimento, as curas médicas necessárias, mas também o trabalho e os recursos energéticos, assim como os bens culturais, o saber científico e tecnológico».

* Atendido ao essencial da vida e do ministério de São Martinho talvez devamos colher as lições de partilha e de fraternidade que ele viveu e testemunhou, não aconteça de que o nosso comportamento se possa tornar mais de escândalo do que de edificação, dentro e fora dos espaços da Igreja. Como seria útil e conveniente que colhêssemos de São Martinho mais as causas do que as consequências, mesmo na degustação do magusto, tão típico e simbólico nesta época do ano…



António Sílvio Couto

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Eleições nos EUA – gorgulho do preconceito

 

O resultado das eleições nos Estados Unidos da América trouxeram à luz do dia uma certa confusão que reinava e continua a singrar nalguns setores da comunicação social, dizemo-lo, simbolicamente, só na vertente de expressão lusitana. Com efeito, os mais de duzentos milhões de eleitores americanos escolheram de forma clara quem querem que os governe, mesmo que isso possa criar engulhos em que se sente (sentimental e ideologicamente) derrotado… De facto, vimos proliferar nas nossas hostes jornaleiras posições de pessoas que se apelidam de ‘democratas’, mas só o são quando ganham os da sua simpatia.

1. O vencedor, Donald Trump não colhia muita preferência em diversos níveis da Europa e de outros países ditos do arco ocidental. No entanto, nas hostes nacionais Trump foi o mais votado em vinte e nove estados (294 votos de grandes eleitores) e Kamala Haris em dezanove estados (com 225 voto no colégio eleitoral)… Estes resultados como que contrariaram as sondagens, especializadas em confundir e em deixarem cada qual na expetativa de ganhar a sua preferência, mesmo naqueles que nada tinham a pronunciar-se.

2. No título deste texto apresentamos a palavra ‘gorgulho’ como adjetivo deste ambiente suficientemente preconceituoso com que tivemos (ou teremos) de viver nos tempos mais recentes e na leitura ideológica dos resultados das eleições americanas. ‘Gorgulho’, conhecido também como ‘caruncho’ é uma espécie de praga que ataca as culturas agrícolas (milho, arroz, trigo) e, quando dá para proliferar, torna-se de difícil combate. O gorgulho penetra nas sementes, deixando-as sem conteúdo e só com a parte exterior… Ao nível psicológico o gorgulho é de tremenda complexidade, pois mina a confiança, embora pareça que nada acontece; deixa um rasto de destruição só percetível mais tarde; cria nas pessoas e nas instituições graves consequências…

3. A gorgulhocracia tem hoje foros de pandemia, pois vemos emergirem tantas posições políticas, sociais e culturais que temos de saber discernir onde se enraízam certas tomadas de comportamento: tantos/as que se engrandecem à custa do mal alheio, numa espiral de maledicência que se vai tornando um modo de ser e de estar generalizado. Efetivamente há muitas pessoas que colocam uns óculos de manobra para tentarem pronunciarem-se sobre estas questões que têm envolvido as eleições nos Estados Unidos da América: qual verme que corrói, assim nos querem condicionar a pensarmos segundo aquilo que temos visto e ouvido nas televisões e veiculado pelos jornais.

4. Será que temos de duvidar da sanidade dos americanos, quando escolheram Trump em detrimento de Kamala? Onde está a verdade, lá, onde conhecem os candidatos e aquilo que propõem, ou por cá, onde nos tentam intoxicar com ideias que são mais ideologias do que notícias? Com que direito podemos interferir nas escolhas dos americanos, se vão ser eles quem irão ser governados por quem escolheram? Não andaremos a ser manipulados por mentores transnacionais sem crença nem lugar para Deus?

5. Repare-se no sururu que foi a resposta que o Papa Francisco deu à pergunta sobre em quem votaria, se pudesse, nas eleições americanas? Respondeu que em nenhum, pois ambos apresentavam propostas contra a vida… Seríamos capazes de seguir este critério nas nossas escolhas na hora de votar? Com efeito, as propostas contra os valores do Evangelho são mais do que muitas e saber ter opinião é estar esclarecido para decidir…

6. Os tempos que vivemos são de grande desafio. Lá como cá, temos de não confundir o essencial com o secundário nem de trocar o verdadeiro pelo efémero.



António Sílvio Couto

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Abstenção de carne à segunda-feira?

 

A representante única de um partido no Parlamento fez a seguinte proposta (na classificação de projeto de resolução): «considerando o impacto significativo das escolhas alimentares na emissão de gases com efeito de estufa, a Assembleia da República deverá instituir, para os deputados e demais funcionários, o projeto "segundas-feiras sem carne… [isto é] uma vez por semana apenas opções totalmente vegetarianas… A adoção de um dia vegetariano na semana visa não apenas contribuir diretamente para a diminuição das emissões no setor público, mas também estimular uma reflexão mais ampla sobre os hábitos alimentares e o seu impacto ambiental e de saúde».

Eis uma proposta na linha dessa pretensa ‘nova religião’ vegan e afins, com bastantes seguidores de fachada.

1. Esta senhora é de um partido dito de incidência ecologista (pessoas-animais-natureza), mas talvez desconheça – ou seja ignorante – sobre o tema da abstinência semanal de carne, já vivenciada noutras instâncias com outra expressão, relevando o significado cultural e espiritual. As grandes religião monoteístas e sobretudo as do Livro – judeus, cristãos e muçulmanos – propõem aos seus seguidores tempos e etapas de jejum, mais em função do autodomínio (ou temperança) do que como ricochete de panteísmos subterrâneos.

2. Mesmo que sucintamente o que é o veganismo? O veganismo é um estilo de vida que tem como objetivo excluir o uso de animais na alimentação, como carne, ovos, peixes, laticínios e mel. A pessoa vegana também não usa roupa feita de couro ou pelos naturais e produtos com ingredientes de origem animal ou testados em animais. Assim, na dieta vegana é priorizado o consumo de alimentos de origem vegetal, como cereais, leguminosas, frutas, vegetais, tubérculos, óleos vegetais, sementes e oleaginosas, por exemplo.

3. Este tema da contenção para com certos ingredientes na alimentação podem ser tão interessantes quão bizarros, na medida em que, alguns desses difusores vegan, são poucos democráticos para com quem não alinha nas suas pretensões e nalguns casos tornam-se fundamentalistas sem respeito pela diferença. A sugestão apresentada neste contexto é mais do que evidente dessa espécie de sobranceria com que certas forças se consideram a submeterem outros às suas ‘ideias’…

4. De facto, estas novas ‘modas’ de restrições alimentares como que sofrem de um substrato sem nexo e de uma razoável falta de respeito para com quem passa fome, pois certas propostas não passam de subterfúgios do excesso por contraste com quem não tem o suficiente para se alimentar. Se o veganismo – e outras sugestões afins – fossem a solução para a fome no mundo já teriam conseguido apresentar resultados. Mas não, o que têm conseguido é gastar ainda mais recursos para levarem a sua pretensão à (possível) vitória.

5. De entre todas as expressões religiosas mais significativas somente os católicos não impõem qualquer restrição a nenhum dos alimentos. Em quase todas as religiões há algo que é proibido. Entre os católicos não se apresenta nada que possa não servir de alimento. Isso exige mais capacidade de discernimento quanto a todos os ingredientes usados na alimentação, onde a moderação (temperança, domínio de si mesmo) se deve sobrepor ao exagero seja nos que quer possa ser.

6. Sem querermos julgar a sugestão do jejum de carne à segunda-feira, isto soa a uma espécie de farisaísmo laico, que deseja dar boa impressão, mas não modifica nada de cada pessoa nem contribui minimamente para a mudança do mundo. Segundo as palavras do Papa Francisco, o verdadeiro jejum é partilhar com o faminto, ajudar o pobre ou o que tem menos que tu; é estender uma mão à viúva; é fazer companhia ao ancião; é dar do teu tempo para servir ao outro.

Podemos começar já e não esperar pela segunda-feira da desintoxicação!



António Sílvio Couto