Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Água – do poder à exploração

 

Agora como na afirmação das civilizações, a água tornou-se um fator de poder e de relevante importância para a sobrevivência das pessoas e das sociedades. Se repararmos as cidades mais significativas estão situadas na bacia de algum rio ou na proximidade ao mar. Por isso, a água é nitidamente um fator de desenvolvimento e de consolidação das civilizações, antes como agora.

1. Nos tempos mais recentes assistimos a alterações graves e quase repentinas onde a água está como sujeito: umas vezes por excesso (inundações e tempestades) e outras por ausência (secas e condicionamentos). De bem quase normal e sem restrições tornou-se a água num bem precioso e do qual devemos cuidar com toda a atenção. Cresce a consciencialização de que já não é inesgotável, sobretudo se atendermos à água potável.

2. Hoje, na nossa sociedade (dita) ocidental, temos acesso à água como produto fornecido por entidades municipais ou regionais e fomos descobrindo sobre a água múltiplas contingências, desde a captação até ao consumo e mesmo à sensibilização para o bom uso de um produto que, sendo de todos, deve ser preservado (no uso e na vivência coletiva) com ainda com maior cuidado.

3. Além do abastecimento de água, que inclui o consumo e uma tarifa de disponibilidade, os consumidores também pagam os serviços de saneamento e de recolha e tratamento de lixo na sua fatura da água. Foi com base nestes três valores, definidos pelo Estado, por cada município e/ou conjunto de municípios (dependendo da zona do país), tendo deixado de fora os impostos que acrescem às faturas. Se consultarmos com atenção a faturação da água veremos que o consumo desta é a parte mais ‘barata’ do leque de itens…

4. Surgiram recentemente notícias sobre as discrepâncias de custos da mesma quantidade de água nos vários municípios, segundo uma entidade reputada do âmbito das questões ambientais e, em concreto, deste tema da água. Eis alguns dados: para consumos anuais de 120 metros cúbicos de água – em Amarante o custo é de 494,47 euros, em Oliveira de Azeméis de 491,94 euros, em Ovar de 477,81 euros, em Albergaria-a-Velha de 477,15 euros, em Baião de 476,24 euros...os cinco preços mais elevados do país. Foz Côa – 94,09 euros, Castro Daire – 108 euros, Terras de Bouro – 108,38 euros, Vila Flor – 114 euros e Vila Nova de Paiva – 124,20 euros...estão no extremo oposto, cobrando os valores mais baixos.

5. Este tema da água vai-se tornando um assunto de primaz importância, não só pela necessidade que temos dela, como dos riscos que corremos em fazermos perigar o bom uso e a correta relação dos cidadãos como este bem precioso e essencial para a vida. Para além de ser um assunto presente em todas as expressões religiosas, a água é, de facto, um sinal da vida humana, psicológica e mesmo espiritual. Por isso, temos de incluir na nossa educação – geral e específica – a reflexão sobre o significado da água e das implicações pessoais, familiares e sociais da água, enquanto elemento que guia a vida e como força geradora de mais e melhor condição de vida.

6. É pena que forças exotéricas se queiram apropriar da linguagem interpeladora do tema da água e mesmo pela manipulação de certas crenças em relação à mesma. Por vezes são os cristãos quem menos reflete sobre a incidência da água na sua expressão religiosa. Quantas vezes, a ‘água batismal’ deveria ser mais referida na prossecução dos ritos cristãos e católicos em especial. Como seria útil e essencial valorizar o nosso uso diário da água, desde a forma de hidratação até ao uso na higiene/limpeza, passando pela ação recorrente nas atividades económicas, ambientais e religiosas.

7. A água é vida e deve ser tratada como dom de Deus, isto é, nas palavras de S. Francisco de Assis: louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, que é tão útil e humilde, precisa e casta!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Dupla beneficiação da RTP

 

Mais uma vez somos induzidos em erro pelas forças mais estatizantes do nosso espetro político: a empresa de comunicação Rádio e Televisão de Portugal (RTP) usufrui de uma dupla beneficiação: recebe dinheiro dos contribuintes e ainda (em quase concorrência desleal) pode ter publicidade paga pelos anunciantes e, por consequência, pelos clientes-telespetadores... Segundo dados consultáveis a RTP tem quase mil e seiscentos empregados...em diferentes plataformas e canais (oito), não esquecendo os centros de produção (dois), as delegações nacionais (doze), os correspondentes internacionais (treze)... num mundo nem sempre claro ou totalmente aberto.

1. Vejamos situações e contributos que todos (de forma indistinta e anónima) damos para esta empresa, que gera e gere tantos interesses, de forma direta e indireta. Se atendermos à fatura da eletricidade veremos que a ‘contribuição para o audiovisual’ é significativa, preenchendo no contexto geral das receitas da RTP mais de 190 milhões de euros (números do ano passado). Mesmo que não tenha qualquer aparelho de receção de televisão todos contribuem de forma universal e quase coerciva...

2. A publicidade na (dita) televisão pública significa mais de 20 milhões de euros anuais, o que representa dez por cento das suas receitas. Nas regras gerais da publicidade televisiva, a lei determina que só haja publicidade até doze minutos por hora, isto é, vinte por cento em programas de acesso livre. No caso do estatuto da RTP o contrato de concessão só permite seis minutos de publicidade por hora. Está previsto que, durante os noticiários, programas de informação política ou filmes, a publicidade só pode interromper a programação a cada trinta minutos de duração.

3. Não deixou de ser uma questão ideológica a medida que o governo em funções viu derrotada na votação do Orçamento para 2025 de pretender retirar a publicidade até 2027 na RTP. Qual foi a razão de fundo desta união em defesa da publicidade na televisão (ainda) estatal? Não andará ainda a flutuar a ideia de que convém ter uma ‘voz do dono’ quando se está no poder? Quem tem medo da concorrência: a acomodação ou a competência? A desconfiança para com a comunicação social privada revela que algo está escondido no serviço da televisão estatal? A ver pela unicidade em defesa da RTP e afins não parecerá que ainda paira na mente de muitas pessoas o saudosismo da voz única e sem discordância?

4. Fique claro: defendo que a comunicação social (seja qual for a forma de se apresentar) deve ser livre de tutelas e de influências, podendo e devendo cada um escolher quem quer ver e ouvir, sem teias nem peias. Ora isto que vimos de tutelar a comunicação social sob proteção do Estado não passa de uma visão protecionista e condicionadora da escolha, tanto de quem faz como de quem consome. De uma forma um tanto infantil se pretende que todos (ou a maioria) seja doutrinado pela forma de dizer ou de perspetivar quem se deixa guiar pela televisão estatal. Talvez desta forma não se evolua na qualidade nem se ganhe na diversidade/pluralidade de leituras das coisas e das pessoas.

5. De facto, mais de três décadas decorridas parece existir um nítido servilismo ao que vem do estatal. Quem acompanhou o emergir das rádios locais (início dos anos 80) e, posteriormente, o surgir das televisões privadas como que sente um certo arrepio quanto a esta uniformidade dependurada no vetor da comunicação social do Estado. Acumular as duas fontes de rendimento – contributo do audiovisual e da publicidade – além de desonesta é dar mais meios do que os outros têm: para além de injustiça é falta de imparcialidade.

6. Até quando teremos de suportar a subsidiodependência de tantos a sobreviverem nas ondas do poder e da ideologia reinante, mesmo que já tenham terminado a validade?



António Sílvio Couto

sábado, 23 de novembro de 2024

Campanhas enganosas… à custa da ignorância

 


Nesta época prévia ao Natal vemos surgirem diversas campanhas (ditas/apelidadas/pretensamente) de solidariedade, seja com gestos ‘fraternos-e-solidários’, seja com artimanhas de empresas de consumo, seja mesmo através do recurso à recolha de bens e de serviços, usando mesmo o contexto eclesial. Há casos que são apresentados como de benemerência à custa de falsa participação dos compradores, noutros casos como que se usa a menos boa condição dos ‘pobres’ para fazer deles matéria de simulação.

1. Quem não foi já às compras – numa certa cadeia comercial, que não identifico por respeito aos usados – e, na hora de pagar, lhe é perguntado se quer participar na campanha de ajuda a uma determinada instituição, doando um montante relativamente pequeno? Se estou imbuído no espírito de querer participar lá deixo adicionar à conta mais uma pequena ajuda. Só que esta aparece como sendo da cadeia comercial-consumista e não do cliente participante, mas, quando forem apresentadas as contas, surge que foi dele e não minha, embora o tenha feito de forma enganosa, servindo-se da minha boa vontade manipulada. Os milhares angariados (e são muitos em todo o país) – e posteriormente distribuídos com pompa e circunstância – não são de facto dos compradores mas da entidade benemerente. Pior, a grande cadeia comercial entra no role dos mecenas, sem nada ter feito, antes só usando os clientes, que nem compraram nem doaram nenhum produto, só deram aceção a ser acrescentada uma pequena migalha ao bolo do capital recetador.

2. Para os mais céticos estas campanhas natalícias soam a aproveitamento dos mais desfavorecidos – prefiro esta palavra à expressão ‘mais necessitados’ – como se eles só precisassem de comer e de bens essenciais por ocasião do Natal. Outros replicam: mas se já nem no Natal os lembrássemos seria ainda pior. De facto, ainda vamos vivendo esta sensibilidade aos outros, partindo da realidade humana-divino emergente do mistério da Encarnação de Jesus e do seu nascimento, que celebrámos no Natal. Com efeito, a nossa comunhão de uns com os outros ganha nova forma e força desde a presença e participação de Jesus com os humanos. De resto, a mera filantropia horizontalista, que move tantos dos nossos contemporâneos, poderia ser melhor informada se soubéssemos e fossemos capazes de a transcender no mistério do Natal de Jesus.

3. É quase repugnante – digo-o do ponto de vista cristão – que se fale do Natal revestindo-o de certas roupagens, que têm tanto de populista, quanto de abjeto e de melindroso: reduzir o Natal a mesa farta e a consumo materialista, soa a algo que deixará amargo de boca na hora da avaliação. Alimentar o espírito de Natal com o mero flamejar de luzes, que já nem são velas nem aquecem, antes só fascinam quem as vê. Celebrar o Natal esquecendo O festejado, torna-se algo de ilusão e sem nexo de causalidade. De que interessa fazer ‘jantares de natal’, se, ao longo do ano, as pessoas se ignoram ou mesmo detestam? Que interessa reunir para comer, se não se consegue confraternizar no resto ano? Não andaremos, mais uma vez, a ficcionar aquilo que deveria nortear a nossa vida social, familiar e pessoal?

4. Recristianizar o Natal é urgente, se ainda conseguirmos perceber o que está em causa, pois, seria de duvidosa consciência querer usufruir daquilo que nos favorece e menosprezar as causas da mesma celebração. Deveríamos refletir sobre as razões que levaram tantas pessoas a quedar-se pelo ‘natal consumista’, mesmo que já tenham tido a vivência do natal cristão. Como poderemos, enquanto cristãos/católicos, traduzir em gestos, palavras e sinais o Natal de Jesus nos nossos ambientes? Já paramos um pouco para tentar encontrar a quem vamos anunciar o Natal de Jesus com simplicidade e verdade?

5. Não esqueçamos a mensagem central do Natal: hoje vos anúncio que nasceu para vós o Salvador, Jesus Cristo Senhor! Usemos as ferramentas já provadas – coroa do Advento, presépio ou até presentes (que não as prendas)– para que Jesus possa estar mais vivo e não meramente decorativo. Será que Jesus tem lugar no meu coração, na minha casa e na minha família?



António Sílvio Couto

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Carta aberta aos antigos frequentadores do Seminário Menor de Braga

 

Agora que se completam cem anos dessa casa que nos serviu de ‘escola’ de vida – educativa e intelectual, religiosa e espiritual, humana e cultural – durante significativas etapas da nossa vida, desejo partilhar convosco o que foi para mim esse tempo – de 1969 a 1974 – e como que deixar sugestões para os que viveram idêntica experiência.

* Dizem que passaram pelo Seminário Menor – apelidado ainda de Nossa Senhora da Conceição ou da Tamanca – cerca de dez mil alunos. Desses tantos talvez só tenham sido ordenados padres dez por cento. Mas quantos bons homens e homens bons – que são mais do que ‘sacristães’ qualificados – estiveram e estão na vida da nossa sociedade. É a esses – vós, para usar a linguagem nortenha – que me quero dirigir com verdade e sinceridade, com humildade e espírito de compreensão… mesmo que boa parte nem eu conheça nem me conheçam, mas todos recebemos uma marca que reputo de boa, mesmo que pedindo desculpa ou perdão àqueles que se possam sentir mais magoados, melindrados ou escandalizam por isso…

* Desse tempo recordo quem nos educou – nalguns casos segundo métodos hoje considerados pouco pedagógicos – dando o que sabia, mesmo que fosse resultado dos traumas que lhes foram incutidos anos antes por outros destinados a serem prefeitos, embora nem sempre perfeitos…

* Fique, desde já claro, causa-me náuseas e repulsa essas insinuações sobre ‘abusos’, tão propalados nos tempos mais recentes. Será que não quer dizer nada que não tenhamos conhecimento público de acusações saídas da ‘nossa’ casa, que nos formou e formatou? Na minha memória nada está registado sobre o assunto… E como era exigente a formação religiosa e espiritual dos jesuítas – com o célebre Padre Fernando Leite à testa – que nos foram dados como ‘diretores espirituais’/confessores! Certamente homens santos e acrisolados…diante de Deus e na dureza da vida!

* Fomos, todos o sabemos e experimentamos, educados na contenção, na exigência, com parcos recursos (materiais e económicos) – afinal saímos quase todos de meios também eles algo indigentes – norteando o fazer pela qualidade do ser, despojados de todo o parecer, que as meditações diárias nos acrisolavam para maior virtude, sem disfarce e pela verdade.

* O aproveitamento escolar era fomentado como forma de afirmação, dentro e fora de portas. Muitos de vós vingastes na vida porque aprendestes a procurar atingir fins respeitando os meios. Quantos de vós, que sois, hoje, figuras reputadas na vida social e política, no campo laboral e intelectual, nos meios escolares e da afirmação universitária e que deveis ao Seminário Menor as vossas raízes.

* Tenho pena que, nas paróquias e na vida eclesial, não vos sintamos – digo por mim – tão presentes e ativos como seria desejável. Não vos censuro, mas tenho pena de perder a sintonia de onda – aqui como noutras paragens – que podíamos cultivar e viver…ao menos como forma de diálogo e, porque não, como confronto de ideias para a purificação dos ideais…

* Há quem considere que a passagem pelo Seminário quase imprime caráter, isto é, deixa marcas nem sempre fáceis de disfarçar. O tempo pode ter sido pouco, mas o sinal ficou…Por vezes, há quem destoe desta boa impressão e como que contradiga o tempo de ter andado no Seminário, mas a semente foi lançada…mais tarde ou mais cedo frutificará.

* Por ocasião deste centenário do nosso Seminário Menor, considero um por-maior podermos revisitar os lugares, sentir a memória e guardar no compromisso tudo quanto nos foi dado viver, de entre os melhores aspetos, a fraternidade – camaradagem seria o termo mais correto, pois vivemos tantos na mesma camarata – que se prolonga pela vida fora. Para o bem ou para o mal, a expressão – ‘no tempo do seminário já era assim’ – continua a fazer caminho, sejamos ou não padres.



= Deixo este meu testemunho, na esperança – o órgão de comunicação do Seminário Menor é ‘voz da esperança’ – de sermos dignos continuadores dos milhares de antecessores e de outros tantos sucessores. Neste ano jubilar da Esperança, assim continuemos a semeá-la com simplicidade e verdade.



António Sílvio Couto

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Quem tem medo do ’25 de novembro’?

 

Decorridos quase cinquenta anos sobre a efeméride ainda há quem não consiga perceber o significado da data de ’25 de novembro de 1975’, como uma segunda etapa do que aconteceu em abril de 74. Embora haja quem compreenda o significado do ’25 de novembro’, outros continuam aferrados aos seus preconceitos, mesmo que a expressão eleitoral se venha a tornar quase residual... o tempo passa e as convicções deixam a nu a falta de razão.

1. Um dos arietes do ’25 de novembro’ foi Ramalho Eanes, comandante operacional do acontecimento e que foi presidente da República entre 1976-1986. Será útil recordar o que ele disse e escreveu sobre esta data em apreço. «Não percebo que estigmatizem o 25 de Novembro, porque o 25 de Novembro é a continuação do 25 de Abril; é a reafirmação de que as promessas feitas pelos militares à população portuguesa se mantêm, e se mantêm com toda a força, seja como for, quaisquer que sejam os obstáculos”. É altura de reconhecer que “houve um período muito complicado entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, que houve movimentos que tentaram – compreensivelmente, em minha opinião – impor as suas ideologias, o que, obviamente, o MFA não permitiu, porque isso seria, de alguma maneira, contrariar, não responder, não respeitar a promessa de Abril. E portanto, tivemos de fazer o 25 de Novembro, mas, a partir daí, o país criou unidade, unidade plural, obviamente... Entendo que o esquecimento do 25 de Novembro não ajuda a democracia, porque a história não se apaga. É com a história, e regressando à história, de forma não endémica nem nostálgica, que aprendemos a evitar erros futuros»

2. Quem assim se exprime sabe daquilo que fala e deve-nos fazer tomar consciência de que pode haver erros, exageros e tropelias, mas também podem ser corrigidos, atenuados ou servirem-nos de lições para o futuro. Foi isso que o ’25 de novembro’ quis operar. Com efeito, a maioria dos deputados assentados no atual parlamento eram, pelo menos imberbes, à data da revolução de abril. Uns tantos – e no feminino também – são filhos dos que desenvolveram o PREC, entre assaltos e atentados, com brigadas revolucionárias e acusações de capitalismo... afundando empresas e atirando para o desemprego os seus apaniguados. Alguns contestaram a adesão à União Europeia e a pertença ao euro, mas usufruem boas maquias quando são deputados no Parlamento Europeu.

3. Recordemos, por isso, sucintamente alguns dos acontecimentos ocorridos nos dezanove meses entre o ’25 de abril de 74’ e o ’25 de novembro de 75’. Datas como o ‘11 de março’ ou o ‘28 de setembro’, sem esquecer os comícios inflamados em certas zonas da ‘margem sul’ do Tejo, a destruição da Rádio Renascença... com a resposta das manifestações em Braga, em frente à Sé catedral, a cadeia de limpeza de certas sedes partidárias, a avalanche de cidadãos (rotulados) de ‘retornados’, as emboscadas e rusgas arbitrárias em várias zonas do país, as perseguições e confrontos por ocasião da ordenação do primeiro bispo de Setúbal, em outubro de 1975... são alguns dos acontecimentos que perfizeram o hiato entre o ‘25 de abril de 74’ e o ‘25 de novembro de 75’. Varrer para debaixo do tapete da História esses factos – nalguns casos com forte repercussão em famílias e sociedades – seria esconder algo que traumatizou o país...irremediavelmente.

4. O ’25 de novembro’ não foi nem pode ser a esponja sobre algumas das malfeitorias de pessoas que agora têm medo que se descubra o passado pessoal e familiar. Não podemos continuar a tratar como heróis figuras que contribuiram – e desgraçadamente ainda hoje – para o retrocesso do país só porque querem ficar nos louros revolucionários da adolescência. Basta de afrontas. Assumam o que fizeram e deixem que o país real caminhe para o desenvolvimento. Quando serão responsabilizados pelas fábricas que fizeram ruir e levaram para o desemprego tantos que os seguiram acriticamente? A história não se reescreve como faziam noutras paragens que eles queriam impor em Portugal e que o ’25 de novembro’ corrigiu... A verdade, sempre!



António Sílvio Couto

sábado, 16 de novembro de 2024

Movimento 4B – que significa entre nós?

 


Em 2019, teve origem na Coreia do Sul, um movimento atualmente conhecido como 4B, no qual as mulheres negam principalmente quatro ações, todas começadas por B: ‘bihon’ - a recusa do casamento heterossexual; ‘bichulsan’ - recusa de engravidar; ‘biyeonae’ - recusa de namorar; ‘bisekseu’ - recusa de relações sexuais heterossexuais. Este dito movimento feminista tem vindo a crescer em visibilidade, sobretudo, nos Estados Unidos da América e por ocasião das recentes eleições presidenciais.

1. Que implicações – a curto ou a médio prazo – pode ter este movimento no nosso país? Será mais uma moda, recauchutada pelos americanos, ou uma vaga mais profunda das sociedades? Como se pode entender mais a fundo esta questão? Que razões – lá (Coreia do Sul e EUA) e por cá – levam a encetar estas reações? Não será que este movimento 4B é mais do que simbólico, mas paradigmático das contestações feministas à volta do planeta? Até onde irá esta onda de ideologia de género tácita ou explícita?

2. Atendendo aos mentores, promotores, difusores e patrocinadores deste movimento 4B, temos de estar atentos às raízes da questão, bem como às consequências da sua difusão. Com efeito, mais do que rejeitar – casamento heterossexual, ter filhos, namorar ou ter relações heterossexuais – tudo isto implica uma outra opção homossexual presumida ou assumida, como se fosse um grito de libertação contra tudo quanto possa alembrar outro sexo, o masculino. Embora se possa revestir de luta contra as manifestações de machismo – primeiro na Coreia do Sul e depois nos EUA – isso tenho ganho maior proporção em países e culturas onde a mulher continua desfavorecida e mesmo explorada… tanto em casa como na vida laboral, social e pessoal.

3. Efetivamente estamos no século XXI, com problemas que são e se prolongam do século da industrialização: a discrepância de salários entre homens e mulheres continua a ser algo de significativo, até porque muitas delas têm habilitações e instrução superior a eles. Agora que estamos numa crescente alfabetização torna-se ofensivo, degradante e mesmo provocatório que os homens, pela simples razão de o serem, continuem a usufruir de vencimentos superior às mulheres, mesmo que exerçam trabalho idêntico e a par uns dos outros. Esta vertente agravante nalgumas sociedades não pode uma razão tão extremista que se capta no subterrâneo do movimento 4B.

4. Consideremos, no entanto, algumas das causas do movimento 4B: a rejeição da vida transmitida pela via sexual entre homem e mulher, a abjuração da complementaridade sexual e a repulsa ao não-feminino. Ao nível cristão nada disto tem razão de ser nem sustenta a vida de compromisso social e cultural da família. Aliás, esta parece estar fora dos critérios do dito movimento 4B. A família poderia ser algo à la carte, nesse sentido tão difundido por setores com maior ou menor propaganda na comunicação social.

5. De uma coisa parece que podemos ter presente: este movimento tem poder não só de intervenção, mas também económico e com expressão transnacional. Esta tendência de internacionalizar questões locais e regionais tem vindo a crescer nos nossos dias, criando a sensação de que alguém comanda isto tudo e faz com que, algo que parecia lateral e secundário, emerja como normal e com larga difusão ao longe e ao largo. Aquilo que noutros tempos soaria a disfunção de uma pessoa contestatária e fora dos esquemas gerais, agora assume foros de normalidade e como manifestação generalizada de uma certa cultura.

6. Algo ainda preocupante é perceber que muitos destes motivos de luta, de confronto ou de dissonância se situam no contrário dos valores do Evangelho ou como repulsa deles mesmos. Depois da família e da vida podemos encontrar outras vertentes bem mais pessoais e com incidência na personalidade de cada um. Aquilo que foi considerado tabu em certas culturas e expressões religiosas, agora saiu do armário e pavoneia-se na via pública. Até quando conviveremos com esta multiplicidade de éticas? Estaremos preparados para responder, cristãmente, à altura dos factos e das situações?


António Sílvio Couto

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Sínodo dos Bispos apresenta orientações

 


Terminada a segunda sessão da XVI Assembleia Geral ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu, em Roma, de 2 a 27 de outubro de 2024, foi apresentado o documento final. Neste lê-se no número onze: «O Documento Final exprime a consciência de que o chamamento à missão é, ao mesmo tempo, chamamento à conversão de cada Igreja particular e de toda a Igreja, na perspetiva indicada na Exortação Apostólica Evangelii gaudium (cf. n.º 30). O texto é composto por cinco partes.

A primeira, intitulada O coração da sinodalidade, delineia os fundamentos teológicos e espirituais que iluminam e alimentam o que se segue. Reafirma a compreensão partilhada da sinodalidade que emergiu na Primeira Sessão e desenvolve as suas perspetivas espirituais e proféticas. A conversão dos sentimentos, imagens e pensamentos que habitam os nossos corações prossegue juntamente com a conversão da ação pastoral e missionária.

A segunda parte, intitulada Juntos, na barca, é dedicada à conversão das relações que constroem a comunidade cristã e configuram a missão no entrelaçamento de vocações, carismas e ministérios.

A terceira, “Lançai a rede”, identifica três práticas que estão intimamente ligadas: discernimento eclesial, processos de decisão e cultura da transparência, da responsabilidade e da avaliação. Também em relação a estas, somos convidados a iniciar caminhos de “transformação missionária”, para os quais é urgente uma renovação dos organismos de participação.

A quarta parte, sob o título Uma pesca abundante, descreve como é possível cultivar em novas formas a permuta de dons e o entrelaçamento dos laços que nos unem na Igreja, numa altura em que a experiência de estar enraizado num lugar está a mudar profundamente.

Segue-se uma quinta parte, “Também eu vos envio”, que nos permite olhar para o primeiro passo a dar: cuidar da formação de todos no Povo de Deus em sinodalidade missionária».

No número subsequente explica-se o método usado para o percurso feito pelo mesmo documento: «a elaboração do Documento Final é guiada pelos relatos evangélicos da Ressurreição. A corrida ao túmulo na madrugada de Páscoa, a aparição do Ressuscitado no Cenáculo e na margem do lago inspiraram o nosso discernimento e alimentaram o nosso diálogo… Com este documento, a Assembleia reconhece e testemunha que a sinodalidade, uma dimensão constitutiva da Igreja, já faz parte da experiência de muitas das nossas comunidades. Ao mesmo tempo, sugere caminhos a seguir, práticas a implementar, horizontes a explorar. O Santo Padre, que convocou a Igreja em Sínodo, dirá às Igrejas, confiadas ao cuidado pastoral dos Bispos, como prosseguir o nosso caminho apoiado na esperança que “não engana” (Rm 5,5)».

= Traçadas estas linhas gerais precisamos de encetar o difícil e quase-complexo processo de receção do mesmo, atendendo à participação de todos os fiéis – nessa linguagem do Código de Direito Canónico (cânone 204 § 1) – que inclui nesta terminologia todos os batizados, sem os classificar por vocações ou por ministérios, na sua diversidade e/ou complementaridade.

= Embora a terminologia ‘sinodalidade’ continue a deixar alguns setores da Igreja na reserva, ela já fez caminho suficiente para que não nos interroguemos todos – clérigos e leigos, bem como religiosos – sobre a nossa tarefa que nos compete por direito próprio e não por exclusão de nada e muito menos de ninguém…

= O que é a espiritualidade sinodal? «A sinodalidade é, antes de mais, uma disposição espiritual que permeia a vida quotidiana dos batizados e todos os aspetos da missão da Igreja. Uma espiritualidade sinodal nasce da ação do Espírito Santo e requer a escuta da Palavra de Deus, a contemplação, o silêncio e a conversão do coração… Uma espiritualidade sinodal exige também ascese, humildade, paciência e disponibilidade para perdoar e ser perdoado. Acolhe com gratidão e humildade a variedade de dons e tarefas distribuídos pelo Espírito Santo para o serviço do único Senhor (cf. 1 Cor 12, 4-5)…Ninguém pode percorrer sozinho um caminho de espiritualidade autêntica. Precisamos de acompanhamento e apoio, incluindo a formação e a direção espiritual, como indivíduos e como comunidade» (‘Documento final’, n.º 43).



António Sílvio Couto

Como responsabilizar quem ofende a fé dos outros?

 

Por estes dias circulou nas (ditas) redes sociais um vídeo de uma rapariga cantando e tendo gestos de representação ao pé do altar e do sacrário de uma igreja na Covilhã. Para além da atuação quase descontrolada da ‘artista’ era audível ainda uma espécie de chacota com a letra de um refrão sálmico: ‘Senhor, Senhor, tu tens palavras de vida eterna’… A duração do episódio foi curta, mas deixou marcas aos mais atentos e alertados.

1. Embora ela seja já useira e vezeira neste tipo de provocações, desta vez deixou transparecer que, para além do desrespeito para com a fé dos outros – neste caso católicos, mas o que seria se fossem outras expressões religiosas? – pareceu não olhar a meios para atingir os seus fins, isto é, criar escândalo e com isso tentar ser conhecida e – como dizem no meio digital – seguida. A rapariga sofre de alguma lacuna psicológica e vai andando ao sabor desse critério tão normal quão vulgar: quanto pior melhor. Outros seguem-no nas áreas sociais, esta ‘artista’ da sua vulgaridade promove-se sem nexo nem pejo…

2. Se pararmos um pouco para analisarmos e avaliarmos o modo como muitas pessoas participam nas celebrações religiosas – sobretudo as de incidência social, batizados e casamentos, bem como outros momentos que implicam entrar e estar na igreja – podemos perceber que muitas pessoas não tem o mínimo de educação nem reparação adequadas aos atos e ao lugar: quantas vezes os trajes – tanto femininos como masculinos – seriam apropriados para outros ambientes, mas na igreja não colhem nem têm sentido. Por vezes faz-se mais imitação de cenas de filme ou de telenovela do que se atende às cerimónias religiosas. Em muitos casos tornar-se-ia conveniente chamar a atenção, mas isso seria dar importância a quem não tem bom senso nem sentido de respeito por si mesmo nem pelos outros…

3. Já estive em lugares de veraneio e com que banalidade víamos pessoas vestirem-se – mais seria correto dizer despirem-se – como se fossem para a praia, desde os mais simples pormenores até aos adereços menos corretos. Situações houve em que referi o exemplo de como reagiram as pessoas se me vissem com trajes litúrgicos na praia, considerariam, certamente, que estava fora do lugar e do modo de vestir. Com efeito, uma das formas mais fáceis de alertar para a anormalidade pode ser pela ridicularização.

4. Vivemos num tempo e num mundo onde uns tantos gostam de dizer e de fazer o que lhe dá gosto e, como referem, à sua maneira, mas não está proporcional a assunção de responsabilidade quanto aos seus atos, sobretudo aqueles que podem destoar da normalidade e do senso comum. Com bastante frequência encontramos pessoas que aduzem a ‘liberdade de expressão’ para saírem fora da caixa, mas se esquecem de assumir as consequências dos seus atos, por vezes, ofensivos até da liberdade alheia. A reciprocidade quanto àquilo que pode manifestar a maturidade das pessoas nem sempre é visto, entendido e atendido convenientemente.

5. Quem não se lembra do ‘ano internacional da tolerância’ em 1995? Desde então para cá esta palavra simples e acolhedora tornou-se mais sensível na conduta social. Desde 1996 que o dia 16 de novembro é considerado o ‘dia internacional da tolerância’, onde se prevê e se preconiza o respeito e a valorização da variedade de culturas, de formas de expressão e de maneiras do ser humano. Na promoção deste ‘dia da tolerância’ considera-se que se deve combater os discursos e as atitudes que podem conduzir ao medo e à exclusão. Segundo ainda a proposta deste ‘dia da tolerância’ a diversidade de religiões, de línguas, de culturas e de etnias no mundo não pode ser um pretexto para o conflito, mas uma oportunidade de enriquecimento de todos. Será?

6. Pena seja que a tolerância não se verifique nas partes de diálogo e não só na imposição unívoca de uma delas. Se queres ser respeitado, respeita quem seja diferente de ti, a começar nas pequenas coisas diárias…



António Sílvio Couto

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

S. Martinho – ‘carnaval de inverno’?

 

A celebração da festa de S. Martinho ocorre precisamente quarenta dias antes do Natal, um pouco à semelhança do Carnaval por ocasião da Páscoa. Atendendo aos festejos exteriores e à coincidência de dias antes de uma e de outra das festas cristãs, há quem faça o paralelo entre uma e outra das datas.

De facto, numa sociedade ritmada pelas vivências dos mosteiros, como era a do tempo posterior à vida de grande São Martinho de Tours, vivia-se com intensidade, mesmo nos jejuns e nas penitências a preparação para o Natal.

Assim, essa espécie de folia que vemos associada ao ‘magusto’, por ocasião do S. Martinho, como que corresponderia aos folguedos do Carnaval para entrar nas penitências quaresmais.

Este paralelo entre S. Martinho e Carnaval dá-nos a perceber a seriedade com que se vivia a preparação tanto do Natal como da Páscoa... Será desta forma simples, alegre e exigente que vivemos o ‘S. Martinho’ para preparar a vivência cristã do Natal?

* Dada a importância e influência até popular da figura de São Martinho de Tours citamos o Papa Bento XVI na oração de Angelus do dia 11 de novembro de 2007.

«A Igreja recorda hoje, 11 de Novembro, São Martinho, Bispo de Tours, um dos santos mais célebres e venerados da Europa. Tendo nascido numa família pagã na Panónia, atual Hungria, por volta de 316, foi orientado pelo pai para a carreira militar. Ainda adolescente, Martinho encontrou o Cristianismo e, superando muitas dificuldades, inscreveu-se entre os catecúmenos para se preparar para o Batismo. Recebeu o Sacramento por volta dos vinte anos, mas teve que permanecer ainda por muito tempo no exército, onde deu testemunho do seu novo género de vida: respeitador e compreensivo para com todos, tratava o seu criado como um irmão, e evitava as diversões vulgares. Tendo-se despedido do serviço militar, foi a Poitiers, na França, junto do santo Bispo Hilário. Por ele ordenado diácono e presbítero, escolheu a vida monástica e deu origem, com alguns discípulos, ao mais antigo mosteiro conhecido na Europa, em Ligugé. Cerca de dez anos mais tarde, os cristãos de Tours, tendo ficado sem Pastor, aclamaram-no seu Bispo. Desde então Martinho dedicou-se com zelo fervoroso à evangelização no campo e à formação do clero.

Mesmo sendo-lhe atribuídos muitos milagres, são Martinho é famoso sobretudo por um ato de caridade fraterna. Quando era ainda jovem soldado, encontrou na estrada um pobre entorpecido e trémulo de frio. Pegou no seu manto e, cortando-o em dois com a espada, deu metade àquele homem. Nessa noite apareceu-lhe Jesus em sonho, sorridente, envolvido naquele mesmo manto.

O gesto caritativo de São Martinho inscreve-se na mesma lógica que levou Jesus a multiplicar os pães para as multidões famintas, mas sobretudo a deixar-se a si mesmo como alimento para a humanidade na Eucaristia, Sinal supremo do amor de Deus, ‘Sacramentum caritatis’. É a lógica da partilha, com a qual se expressa de modo autêntico o amor ao próximo. Ajude-nos São Martinho a compreender que só através de um compromisso comum de partilha, é possível responder ao grande desafio do nosso tempo: isto é, de construir um mundo de paz e de justiça, no qual cada homem possa viver com dignidade. Isto pode acontecer se prevalece um modelo mundial de autêntica solidariedade, capaz de garantir a todos os habitantes do planeta o alimento, as curas médicas necessárias, mas também o trabalho e os recursos energéticos, assim como os bens culturais, o saber científico e tecnológico».

* Atendido ao essencial da vida e do ministério de São Martinho talvez devamos colher as lições de partilha e de fraternidade que ele viveu e testemunhou, não aconteça de que o nosso comportamento se possa tornar mais de escândalo do que de edificação, dentro e fora dos espaços da Igreja. Como seria útil e conveniente que colhêssemos de São Martinho mais as causas do que as consequências, mesmo na degustação do magusto, tão típico e simbólico nesta época do ano…



António Sílvio Couto

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Eleições nos EUA – gorgulho do preconceito

 

O resultado das eleições nos Estados Unidos da América trouxeram à luz do dia uma certa confusão que reinava e continua a singrar nalguns setores da comunicação social, dizemo-lo, simbolicamente, só na vertente de expressão lusitana. Com efeito, os mais de duzentos milhões de eleitores americanos escolheram de forma clara quem querem que os governe, mesmo que isso possa criar engulhos em que se sente (sentimental e ideologicamente) derrotado… De facto, vimos proliferar nas nossas hostes jornaleiras posições de pessoas que se apelidam de ‘democratas’, mas só o são quando ganham os da sua simpatia.

1. O vencedor, Donald Trump não colhia muita preferência em diversos níveis da Europa e de outros países ditos do arco ocidental. No entanto, nas hostes nacionais Trump foi o mais votado em vinte e nove estados (294 votos de grandes eleitores) e Kamala Haris em dezanove estados (com 225 voto no colégio eleitoral)… Estes resultados como que contrariaram as sondagens, especializadas em confundir e em deixarem cada qual na expetativa de ganhar a sua preferência, mesmo naqueles que nada tinham a pronunciar-se.

2. No título deste texto apresentamos a palavra ‘gorgulho’ como adjetivo deste ambiente suficientemente preconceituoso com que tivemos (ou teremos) de viver nos tempos mais recentes e na leitura ideológica dos resultados das eleições americanas. ‘Gorgulho’, conhecido também como ‘caruncho’ é uma espécie de praga que ataca as culturas agrícolas (milho, arroz, trigo) e, quando dá para proliferar, torna-se de difícil combate. O gorgulho penetra nas sementes, deixando-as sem conteúdo e só com a parte exterior… Ao nível psicológico o gorgulho é de tremenda complexidade, pois mina a confiança, embora pareça que nada acontece; deixa um rasto de destruição só percetível mais tarde; cria nas pessoas e nas instituições graves consequências…

3. A gorgulhocracia tem hoje foros de pandemia, pois vemos emergirem tantas posições políticas, sociais e culturais que temos de saber discernir onde se enraízam certas tomadas de comportamento: tantos/as que se engrandecem à custa do mal alheio, numa espiral de maledicência que se vai tornando um modo de ser e de estar generalizado. Efetivamente há muitas pessoas que colocam uns óculos de manobra para tentarem pronunciarem-se sobre estas questões que têm envolvido as eleições nos Estados Unidos da América: qual verme que corrói, assim nos querem condicionar a pensarmos segundo aquilo que temos visto e ouvido nas televisões e veiculado pelos jornais.

4. Será que temos de duvidar da sanidade dos americanos, quando escolheram Trump em detrimento de Kamala? Onde está a verdade, lá, onde conhecem os candidatos e aquilo que propõem, ou por cá, onde nos tentam intoxicar com ideias que são mais ideologias do que notícias? Com que direito podemos interferir nas escolhas dos americanos, se vão ser eles quem irão ser governados por quem escolheram? Não andaremos a ser manipulados por mentores transnacionais sem crença nem lugar para Deus?

5. Repare-se no sururu que foi a resposta que o Papa Francisco deu à pergunta sobre em quem votaria, se pudesse, nas eleições americanas? Respondeu que em nenhum, pois ambos apresentavam propostas contra a vida… Seríamos capazes de seguir este critério nas nossas escolhas na hora de votar? Com efeito, as propostas contra os valores do Evangelho são mais do que muitas e saber ter opinião é estar esclarecido para decidir…

6. Os tempos que vivemos são de grande desafio. Lá como cá, temos de não confundir o essencial com o secundário nem de trocar o verdadeiro pelo efémero.



António Sílvio Couto

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Abstenção de carne à segunda-feira?

 

A representante única de um partido no Parlamento fez a seguinte proposta (na classificação de projeto de resolução): «considerando o impacto significativo das escolhas alimentares na emissão de gases com efeito de estufa, a Assembleia da República deverá instituir, para os deputados e demais funcionários, o projeto "segundas-feiras sem carne… [isto é] uma vez por semana apenas opções totalmente vegetarianas… A adoção de um dia vegetariano na semana visa não apenas contribuir diretamente para a diminuição das emissões no setor público, mas também estimular uma reflexão mais ampla sobre os hábitos alimentares e o seu impacto ambiental e de saúde».

Eis uma proposta na linha dessa pretensa ‘nova religião’ vegan e afins, com bastantes seguidores de fachada.

1. Esta senhora é de um partido dito de incidência ecologista (pessoas-animais-natureza), mas talvez desconheça – ou seja ignorante – sobre o tema da abstinência semanal de carne, já vivenciada noutras instâncias com outra expressão, relevando o significado cultural e espiritual. As grandes religião monoteístas e sobretudo as do Livro – judeus, cristãos e muçulmanos – propõem aos seus seguidores tempos e etapas de jejum, mais em função do autodomínio (ou temperança) do que como ricochete de panteísmos subterrâneos.

2. Mesmo que sucintamente o que é o veganismo? O veganismo é um estilo de vida que tem como objetivo excluir o uso de animais na alimentação, como carne, ovos, peixes, laticínios e mel. A pessoa vegana também não usa roupa feita de couro ou pelos naturais e produtos com ingredientes de origem animal ou testados em animais. Assim, na dieta vegana é priorizado o consumo de alimentos de origem vegetal, como cereais, leguminosas, frutas, vegetais, tubérculos, óleos vegetais, sementes e oleaginosas, por exemplo.

3. Este tema da contenção para com certos ingredientes na alimentação podem ser tão interessantes quão bizarros, na medida em que, alguns desses difusores vegan, são poucos democráticos para com quem não alinha nas suas pretensões e nalguns casos tornam-se fundamentalistas sem respeito pela diferença. A sugestão apresentada neste contexto é mais do que evidente dessa espécie de sobranceria com que certas forças se consideram a submeterem outros às suas ‘ideias’…

4. De facto, estas novas ‘modas’ de restrições alimentares como que sofrem de um substrato sem nexo e de uma razoável falta de respeito para com quem passa fome, pois certas propostas não passam de subterfúgios do excesso por contraste com quem não tem o suficiente para se alimentar. Se o veganismo – e outras sugestões afins – fossem a solução para a fome no mundo já teriam conseguido apresentar resultados. Mas não, o que têm conseguido é gastar ainda mais recursos para levarem a sua pretensão à (possível) vitória.

5. De entre todas as expressões religiosas mais significativas somente os católicos não impõem qualquer restrição a nenhum dos alimentos. Em quase todas as religiões há algo que é proibido. Entre os católicos não se apresenta nada que possa não servir de alimento. Isso exige mais capacidade de discernimento quanto a todos os ingredientes usados na alimentação, onde a moderação (temperança, domínio de si mesmo) se deve sobrepor ao exagero seja nos que quer possa ser.

6. Sem querermos julgar a sugestão do jejum de carne à segunda-feira, isto soa a uma espécie de farisaísmo laico, que deseja dar boa impressão, mas não modifica nada de cada pessoa nem contribui minimamente para a mudança do mundo. Segundo as palavras do Papa Francisco, o verdadeiro jejum é partilhar com o faminto, ajudar o pobre ou o que tem menos que tu; é estender uma mão à viúva; é fazer companhia ao ancião; é dar do teu tempo para servir ao outro.

Podemos começar já e não esperar pela segunda-feira da desintoxicação!



António Sílvio Couto