Mais
do que algo irónico, este ‘episódio’ resulta de uma visita esporádica a um
cemitério – no final deste texto diremos qual (*) – onde
pude constatar o estado de abandono de tantos lugares de repouso dos restos
mortais lá colocados. Embora seja um espaço primigénio de sepultamento de uma
cidade média no nosso país, por ali se podem já verificar as conquistas de uma
etnia que vai adquirindo os jazigos abandonados, dando-lhes o seu toque de aparente
modernidade, embora sem gosto nem enquadramento adequado...
1. Com a
vaga de mortes da recente pandemia – onde tantas vezes faltou o tempo de luto
necessário – vemos que o tema da morte saiu de um certo armário (quase)
ideológico: embora deixado à distância, o assunto surgiu de roupante na vida de
tantas pessoas, umas tentando fugir-lhe, outras como que varrendo-o para debaixo
do tapete de uma certa existência fútil e outros ainda querendo resolver o caso
foram incinerando os restos para não mais voltar a enfrentar-se com fantasmas e
medos.
2. Várias
questões me têm assaltado, neste últimos anos: por que não conseguiu esta
pandemia atrair as pessoas a Deus, pelo contrário mais pareceram exorcizá-lo
das suas vidas? O confinamento social não foi mais uma desculpa do que um modo
de enfrentar o problema? As agruras para debelar o vírus não trouxeram outros
vírus bem mais mortíferos e insanáveis? O enquistamento de tantas mentalidades
não será resultado de más opções, mesmo religiosas, nas diversas fases de
fechamento de uns aos outros? Os cuidados higiene-sanitários não conspurcaram muitas
cabeças, que agora vemos mais vazias e ocas?
3. Confesso,
na minha possível tacanhez inteletual, que me custa entender as reações dos
nossos contemporâneos às questões de morte, seja antes dela se verificar, seja
nas manifestações a ela referidas: dá a impressão que muita gente não se
considera na possibilidade certa – a única que temos em toda a vida – de virem
a morrer, isto é, vivem como se isso seja coisa para outros, mas não consigo
mesmas. Já lá vai o tempo em que as pessoas viviam em função da morte, cuidando
de terem medos para o funeral, guardando um-pé-de-meia para esse derradeiro
momento. Quantas vezes as pessoas deixavam modos e meios de sufrágio para
depois de falecerem. Quem podia até doava os seus bens (ou parte deles) para as
obras da Igreja... daí termos tantos templos e espaços de fé com dignidade e
dignificação.
4. Nesta
sociedade, que trata tão atenciosamente o corpo (na sua dimensão material),
como que podemos perceber a desvalorização da dimensão espiritual e religiosa. É
confrangedor que vejamos tantas pessoas a desperdiçarem a força psicológica que
contêm, menosprezando o que há de mais forte na dedicação aos valores
espirituais: ver rastejar quem devia erguer-se, torna-se impressionante no
descalabro e, sobretudo, na perda de experiência de quanto é mais belo e forte
do que as meras sensações pouco-mais-do-que-animalescas.
5. Urge, por
isso, que não vivamos só nesta onda de horizontalismo – esse estar só na
horizontal, sem capacidade de se elevar nem de ser elevado – com que tantos
cidadãos gastam o seu tempo. Não podemos continuar a cuidar só do corpo,
tornando-o um tanto saudável, mas depreciando as coisas da alma, pois sem esta
nada seremos nem vida teremos. Do tempo em que se descurava o corpo e se enfatizava
a alma, caímos no oposto, apresentando as pessoas saudáveis biologicamente, mas
vazias de valores, de princípios ético/morais e ao sabor de um epicurismo
demasiado materialista... É preciso equilíbrio tanto na vida como na morte! Os
saramagos na campa florescem como mensagem nova!
(*)
A campa era do zeca afonso, no cemitério da Piedade, em Setúbal, onde está
sepultado o cantautor revolucionário, mas de cuja tumba retiram os adereços –
percebe-se pelo espaço vazio na lápide – ideológicos a que o quiseram
aferrar...indevidamente!
António Silvio
Couto
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