2. Anás e Caifás: decisores religiosos
São duas autoridades religiosas que intervieram no processo
da paixão de Jesus, apresentando ‘assuntos’ religiosos que O pudessem
incriminar… Anás e Caifás como que simbolizam os inquisidores de todos os
tempos, mesmo dos nossos.
Sigamos, então, o interrogatório de Anás a Jesus sobre a sua
pessoa, a sua doutrina e os seus seguidores.
Quem não conhece a expressão popular - ‘andar de Anás para
Caifás’? Por certo quem usa tal frase, para além de conhecer, minimamente o
contexto bíblico, quererá dizer que alguém quer adiar a solução de um problema
e com isso, burocraticamente, usa os outros para não-resolver.
É precisamente nesta passagem de Jo 18,19-24 que encontramos
a referência à expressão popular citada, isto é, Jesus é jogado e julgado –
como num tribunal – entre os dois sumos-sacerdotes em funções na circunstância
do seu julgamento (2).
Em primeira instância Jesus é interrogado por Anás sobre a
ortodoxia da sua doutrina. Já em Jo 7,26 se fazia uma alusão àquilo que Jesus
ensinava: «vede como Ele fala livremente e ninguém lhe diz nada! Será que as
autoridades se convenceram de que Ele é o Messias?».
Uma questão: por que é que João narra este interrogatório de
Anás a Jesus? Porque ele teve acesso ao espaço onde Jesus foi interrogado, em
razão de ser «conhecido do sumo-sacerdote e pode entrar no seu palácio ao mesmo
tempo que Jesus» (Jo 18,15)... coisa diferente aconteceu com Pedro, que só
entrou em razão de ‘o outro discípulo’ ter conseguido tal favor...
No interrogatório, através da resposta de Jesus – «Eu
tenho falado abertamente ao mundo; sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde
todos os judeus se reúnem, e não disse nada em segredo. 21 Porque me interrogas? Interroga os que ouviram
o que Eu lhes disse. Eles bem sabem do que Eu lhes falei» (vv. 20-21) –
podemos perscrutar que Jesus sabia que fosse qual fosse a sua resposta, o
veredito já estava traçado, por isso, apela a que sejam chamados a serem
testemunhas aqueles que, anteriormente, O escutaram e se entusiasmaram com as
suas palavras, isto é, os seus discípulos: eram eles quem credibilizavam a sua
doutrina...Jesus falou publicamente - na sinagoga e no templo - não andou a
subverter pela calada da noite, como eles engendram na suas conspirações e
artimanhas.
A agressão de um dos guardas a Jesus como que deixa expresso
o desrespeito por Ele e que culminará na troça dos soldados romanos, após a sua
condenação política, através de Pilatos. Não deixa de ser significativo que
Jesus, silencioso em todo o processo, riposte à agressão: «Jesus replicou:
«Se falei mal, mostra onde está o mal; mas, se falei bem, porque me bates?»
(v. 23). Quererá dizer que, quando a injustiça é excessiva, não se pode ficar
calado? Quererá dizer que, mesmo previamente sentenciado, não se pode calar a
revolta, se ela for causada pela falta de conformidade entre a causa e o
efeito? Como noutros momentos da paixão de Jesus, há perguntas que continuam a
ecoar na História e exigem-nos, como discípulos de Jesus, uma resposta coerente
e consequente...
E manietado, Jesus é enviado a Caifás, o tal que tinha
profetizado após a ressurreição de Lázaro: «Mas um deles, Caifás, que era
Sumo-Sacerdote naquele ano, disse-lhes: «Vós não entendeis nada, nem vos
dais conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo, e não pereça a
nação inteira.» Ora ele não disse isto por si mesmo;
mas, como era Sumo-Sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus devia morrer
pela nação» (Jo 11,49-51) e posteriormente, já no contexto do
interrogatório de Anás, voltado a dizer: «tinha dado aos judeus o conselho:
convém que morra um só homem pelo povo» (Jo 18,14). Com efeito, «o conteúdo da
‘profecia’ de Caifás é, antes de mais, de natureza absolutamente pragmática e,
sob este aspeto, possui para ele, uma razoabilidade imediata; se por meio da
morte de um indivíduo (e somente assim) se pode salvar o povo, a morte desse
indivíduo é o mal menor e a via politicamente justa. Mas aquilo que soa assim e
é entendido primariamente em sentido puramente pragmático alcança todavia, com
base na inspiração ‘profética’ [do sumo-sacerdote Caifás], uma profundidade
muito diferente. Jesus, o indivíduo, morre pelo povo, transparecendo o mistério
da função vicária, que é o conteúdo mais profundo da missão de Jesus» (3). Esta função vicária vemo-la já, nos textos
do Antigo Testamento, na figura do ‘bode expiatório’ (cf. Lv 16, 7-10) e mesmo
na figura do ‘servo de Javé’ em Isaías (cf. Is 53,11), em que um morre por
todos, tal como se diz em Jo 11,52: «E não só pela nação, mas também para
congregar na unidade os filhos de Deus que estavam dispersos».
Em jeito de transição para o interrogatório perante o
governador romano Pilatos, poderemos considerar que Jesus, ao ser levado diante
do Sinédrio – composto por sacerdotes, anciãos do povo e escribas – foi
inquirido sobre a sua identidade messiânica: «és o Messias, o filho de Deus»
(Mt 26,63); «és tu o Messias, o filho de Deus bendito» (Mc 14, 61); «declara-nos
se tu és o Messias… Tu és, então, o filho de Deus» (Lc 22,67.70).
Por seu turno, as respostas de Jesus abrangeram temas diferentes, segundo cada
um dos evangelistas, nunca negando nem furtando-se a dizer quem era. «Jesus
assumiu o título de Messias, que, com base na tradição, apresentava diversos
significados, mas ao mesmo tempo o especificou de tal modo que só podia
provocar uma condenação; esta, porém, poderia tê-la evitado com uma rejeição ou
uma interpretação atenuada do messianismo» (4).
O gesto simbólico da condenação vemo-lo nos rasgar das vestes, acompanhado da
expressão: blasfemou! (cf. Mt 26, 65), com a declaração da sentença, que
Pilatos haveria de ratificar, politicamente…
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1. Anás é um sumo-sacerdote judeu, cujos cinco filhos e o
genro, Caifás, e o neto Matias, foram também sumos-sacerdotes. No Novo
Testamento é mencionado três vezes: Lc 3,2 - em referência ao ministério de João
Batista; Jo 18, 13.19.24 - no contexto do interrogatório a Jesus; At 4,6 - no
interrogatório a Pedro e João. Caifás aparece-nos nas mesmas passagens
referidas a Anás, seu sogro. Em Mt 26, 3-4 coloca-se em relevo a intervenção de
Caifás naquilo que foi a decisão de prender Jesus, à traição, e matá-lo. Vide Dicionário
enciclopédico da Bíblia, Petrópolis,
Vozes, 1992, col 69 e 222.
2. Em Lc 22,66-71 refere-se
que Jesus foi submetido a um tribunal, o Conselho dos judeus, termo que
designava a assembleia ou o lugar das reuniões. Segundo Lucas, só há uma sessão
do Conselho de manhã; Mateus e Marcos falam de duas, uma de noite, outra de
manhã. Lucas omite os depoimentos das testemunhas, apresenta o mistério de
Jesus como Filho de Deus entronizado no seu Reino pela Páscoa e ignora a
sentença do Conselho. Vide nota a Lc 22, 66, na Bíblia Sagrada (dos
capuchinhos).
3. Cf. Joseph Ratzinger/Bento
XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até à Ressurreição,
Cascais, Principia, 2011, p. 143.
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