Levar a cruz dos outros não é mera filantropia, mas antes decisão assumida de querer ser discípulo de Jesus, ontem como hoje. Simão de Cirene é-nos apresentado como um modelo de discípulo de Jesus, levando a cruz ‘atrás de Jesus’… o discípulo segue nas peugadas do Mestre.
«21 Para lhe levar a cruz, requisitaram um homem que passava por ali ao
regressar dos campos, um tal Simão de Cirene, pai de Alexandre e de Rufo. 22 E
conduziram-no ao lugar do Gólgota, que quer dizer ‘lugar do Crânio’» (Mc 15,
21-22 // Mt 27, 32-33; Lc 23, 26-32).
Esta
passagem sobre Simão de Cirene só aparece nos evangelhos sinóticos. São João
não lhe faz referência, e sobre a cruz é o único que refere que Jesus a levou
às costas (cf. Jo 19,17), enquanto os outros evangelhos colocam Simão a ajudar
Jesus a levar a cruz. Com efeito, a cruz que Jesus transportava seria apenas a
parte transversal da mesma. A haste vertical já estava fixa no lugar das
crucifixões (1).
Quem era este Simão? Onde ficava ‘Cirene’ de onde ele seria natural? Qual o
significado deste gesto de Simão? Ele foi obrigado a levar a cruz de Jesus? Que
‘campo’ seria esse de onde se diz que ele vinha? Quem são e que significam –
Alexandre e Rufo – no contexto do evangelho?
Situemo-nos quanto a entender onde ficava Cirene: era uma colónia grega,
situada na costa do norte de África, correspondendo hoje a sua localização na
Líbia; a partir de 75 a. C. tornou-se província romana. Moravam muitos judeus
em Cirene – cf. 2 Mac 15,23; At 2,10; 11,20; 13,1. Por isso, a designação dada a
Simão ‘de Cirene’ (genitivo de lugar) diz-nos que Simão era procedente daquele
cidade e que estaria em Jerusalém nesses dias, não se sabendo se de forma
ocasional para a peregrinação da Páscoa ou se residia já em Jerusalém, embora
continuasse a registar a localidade de procedência, até como forma identitária
de si mesmo. Quanto a esta possibilidade será de questionar porque é que o
texto nos diz que ‘passava por ali ao regressar do campo’ (v. 21). Vinha de
trabalhar?
Um outro aspeto poderá ser adstrito à inclusão de Simão de Cirene para levar a
cruz de Jesus. Diz o texto que ‘requisitaram’ (Mc), ‘obrigaram-no’
(Mt),’lançaram mão’ (Lc)… em qualquer destes termos se nota que ele foi feito
ajudante de Jesus, para levar a cruz, à força. Por que razão, foi ele o
escolhido e não outro? Seria por ele, possivelmente, ter uma tez diferente do
resto dos outros homens, dado que era procedente de África, mesmo que do norte?
Se virmos algumas pinturas e ilustrações diversas, a figura de ‘Simão de
Cirene’ parece ser diferente do resto dos outros? Sem qualquer laivo de
‘racismo’ Simão de Cirene é uma figura, não meramente uma personagem sem
conteúdo…
A atitude de ‘levar a cruz’ de Jesus, por parte de Simão de Cirene, envolve
algo mais do que um gesto de suplência daquele condenado exausto – depois de
horas de interrogatório, de noite, perante o sinédrio, de manhã, diante de
Pilatos, no intervalo até à condenação torturado pelos soldados romanos e, por
fim, carregando a própria cruz…rumo ao local da execução. Simão entra numa fase
decisiva e crucial do processo: ajudar a cumprir a condenação, levando o
instrumento condenatório. Que significa, então, levar a cruz? Como é que Simão
de Cirene é nosso modelo e condutor espiritual neste levar a cruz com Jesus?
Simão caminha com Jesus – atrás dele, não ao lado e muito menos à frente –
porque é o modelo do discípulo? Como é que, cada um de nós, deve fazer para ser
discípulo de um Mestre que se entrega totalmente?
Atendendo a que a presença da figura de Simão de Cirene faz parte das estações
da via-sacra (5.ª), deixamos um excerto de uma meditação escrita pelo Papa João
Paulo II, por ocasião da 6.ª feira santa do ano 2000:
«Obrigaram Simão (cf. Mc 15, 21). Procederam assim os soldados romanos, porque
temiam que o Condenado, exausto, não chegasse com a cruz ao Gólgota. E não
poderiam executar a sentença da crucifixão que pesava sobre Ele. Procuravam um
homem que O ajudasse a levar a cruz.
O olhar deles caiu sobre Simão. Obrigaram-no a carregar aquele peso. Pode-se
facilmente imaginar que ele não estivesse de acordo e se opusesse. Levar a cruz
com um condenado podia ser considerado um ato ofensivo para a dignidade dum
homem livre. Embora contra vontade, Simão pegou na cruz para ajudar Jesus.
(...) Simão recebe um presente. Tornou-se “digno” d’Ele. Aquilo que, aos olhos
da multidão, podia ofender a sua dignidade, na perspetiva da redenção
conferiu-lhe, pelo contrário, uma nova dignidade.
O Filho de Deus fê-lo participante, de modo singular, na sua obra salvífica.
Será que Simão sabe disto? O evangelista Marcos identifica Simão de Cirene como
sendo “pai de Alexandre e Rufo” (15, 21). Se os filhos de Simão de Cirene eram
conhecidos na primitiva comunidade cristã, pode-se pensar que também o pai,
precisamente quando levava a cruz, tenha acreditado em Cristo. Passou
livremente da imposição à disponibilidade, como se tivesse ouvido intimamente
estas palavras: “Quem não Me segue com a sua cruz, não é digno de Mim”. Levando
a cruz, foi iniciado no conhecimento do evangelho da cruz. Desde então, este
evangelho tem falado a muita gente, a cireneus sem conta, chamados no decurso
da história a levar a cruz juntamente com Jesus» (2).
1. Cf. Nota a Mc 15,21, na Bíblia Sagrada dos
capuchinhos.
2. Cf. João Paulo II, ‘Meditações e
orações’: Coliseu, sexta-feira santa, 21 de abril de 2000 (5.ª estação)
António Sílvio Couto
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