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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Escuitar desigualdades no Natal


De entre muitas reportagens do tempo de Natal escuitei duas que me deixaram inquieto e preocupado: na sequência uma da outra viu-se a apresentação duma mesa natalícia num hotel e na outra a abordagem duma tenda onde foram servidas refeições a pessoas sem-abrigo… O número para quem se destinavam os serviços era idêntico: 300 pessoas. Os custos claramente diferentes. As razões para uns e para outros mais do que percetíveis. Os objetivos seriamente de qualidade de estatuto. As motivações da diferença talvez se possa colocar no âmbito de níveis de sociedade dispare…

Parando um pouco tentei escuitar o significado destas discrepâncias numa época – temporal e de significação mais estrita – em que se pretende apelar à igualdade, à fraternidade, à convivência entre todos, aos direitos sem diferenças, ao acesso de todos aos bens necessários e suficientes… e tudo o mais o que envolve, para um cristão, reconhecer que tudo isso advém do mistério de Jesus, Verbo de Deus encarnado, que fez de todos os homens uma só família.  

– Ao usar a palavra ‘escuitar’ quero incluir neste conceito algo mais do que escutar como se fosse um ruído ao qual não se presta a devida atenção, mas antes um cair na conta de que escuto algo que me impressiona e que me exige reflexão muito para além do superficial das franjas do ouvir sem reparar naquilo que me é dito e anunciado.

Assim escuitei aquelas desigualdades como algo que me trouxe à vontade a proposta de invasão do hotel com preços só atingíveis por uns tantos, abrindo as portas àqueles homens e mulheres que, metros ao lado, se satisfaziam com algo menos requintado na forma, mas possivelmente mais quente no conteúdo… Com efeito, não podemos ficar indiferentes a estes tiques de sociedade onde se agravam as diferenças entre iguais na cidadania e nas aspirações… Não podemos continuar a requentar a nossa fé com palavras de circunstância, quando ao lado – mais perto do que longe – outros são preteridos da mesa da fraternidade humana e social…Não podemos ignorar estes e tantos outros casos, que nos são servidos pela comunicação social – umas vezes em jeito de notícia e outras vezes à guisa de provocação – numa atenção às discrepâncias entre estratos sociais e até num escalonamento como se fossem classes…  

Nem que seja de forma breve deixamos aqui essa ‘estória’ colocada entre as piedades bracarenses. Um certo sapateiro, membro duma irmandade das que participam nas solenidades da semana santa, depois de ter feito o seu papel na procissão, já se encaminha para a saída da Sé, quando abriu, por acaso, uma porta, dando de caras com os responsáveis da irmandade em lauto banquete, tendo ele ripostado, no seu português meio atrapalhado: ‘ou haja moralidade ou comamos todos’! Interpretação: todos têm os mesmos direitos e não só os mais categorizados em hierarquia podem usufruir de benesses e prebendas…  

– Neste país em que vivemos há, gradualmente, uma propensão para que uns sejam mais beneficiados do que os outros: uns parecem ter pele mais sensível do que os demais. Uns julgam-se no direito de proteger os seus, mesmo que isso possa ofender as mínimas condições dos que não fazem parte do seu círculo de simpatia ou de categoria social, económica ou ideológica. Uns quantos nos têm pejo nem vergonha de exibirem as suas farpelas de etiqueta, enquanto vão sendo beneméritos com o desentulhar do guarda-roupa fora de moda. Há por aí muita gente que, mesmo escutando (sem escuitar) as pregações religiosas, ainda não entendeu que podem ostentar ofensas às menores possibilidades dos seus vizinhos ou parceiros de emprego.

Por mínima decência será sempre de cuidar em não permitirmos que os nossos gestos, palavras ou a mais singela apresentação possam criar desigualdades entre as pessoas, pois nem todos terão as nossas posses mais comparáveis, pois aquilo que temos deverá sempre enquadrar-se no projeto de Jesus, Ele que em tudo foi, viveu e se orientou pelos critérios da pobreza, onde o mais grave é o apego às coisas e àquilo que possa levar-nos ao egoísmo e à ostentação.

O Natal é, por isso, tempo propício para nos avaliarmos e questionarmos, pois em muito daquilo que vivemos há como que um perigo de ofuscarmos a nudez de Jesus e de não O deixarmos ocupar o lugar que merece na nossa vida pessoal, familiar, eclesial ou social. O Natal não pode ser só exterior, tem de gerar conversão!

    

António Sílvio Couto


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