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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

‘Coração, cabeça e estômago’… em versão autárquica


Este é o título dum romance de Camilo Castelo Branco, publicado em 1862 – há cento e cinquenta e cinco anos – no qual se referem etapas/épocas da vida do personagem principal até à morte... A fase do coração narra os amores enganadores e desfeitos de Silvestre Silva, vividos numa Lisboa libertina. A fase em que a cabeça se sobrepõe ao coração, retrata essa etapa em que o protagonista faz uma aproximação às herdeiras ricas do Porto. Por último, a vertente do estômago refere-se ao Silvestre cansado das solicitações citadinas e que procura refúgio em Soutelo, terra dos seus antepassados.

As mais de duas centenas de páginas do romance camiliano poderiam ser agora apropriadas às múltiplas leituras dos resultados eleitorais das recentes autárquicas...sobretudo se tivermos em conta as multiformes facetas dos vencedores: figurados que foram já pelo coração, depois aturdidos por alguma dor de cabeça – de que todos viemos a pagar as consequências! – e, nos tempos mais próximos (antes e depois), intencionados a darem conforto aos apetites mais ou menos insaciáveis do estômago...

A correta concatenação destas várias dimensões – coração, cabeça e estômago – ajudar-nos-iam a ter opções mais acertadas e bem discernidas não só para deixarmos emergir o que nos interessa, mas essencialmente para que se possa manifestar aquilo que nos deve guiar, incentivar e impulsionar nas escolhas e no desenvolvimento do bem comum. 

= Partamos, então, das palavras supra enunciadas...para tentarmos elucidar alguns aspetos mais subtis, que poderemos encontrar dissiminados nas eleições autárquicas, tendo em conta o antes de (tempos de campanha), o durante (votação) e o depois (duração do mandato):

* Coração – com que habilidade se podem manipular os diversos intentos emocionais/afetivos, podendo levar os mais incautos eleitores a darem voto de confiança a quem os possa ludibriar... desde que se coloque um pouco de emoção. Com efeito, as promessas de campanha são feitas mais ao jeito da emotividade do que da racionalidade...mesmo que haja uma razoável desconfiança, envolvida nas fímbrias mais ténues do coração... À boa maneira do Silvestre do romance de Camilo, assim muita leviandade da capital – lugar e posicionamento – pode fazer enganar os intuitos mais simples, tornando-os algo vulneráveis pela manipulação de arranjos e de desejos de ocasião!  

* Inteligência – esta fundamental faculdade da pessoa humana pode ser, com alguma subtileza, quase revertida da sua função de pensar, se for considerada no contexto de ser reduzida àquilo que queremos que seja feito: por mais vezes do que seria desejável vemos ser usada a inteligência confundida com esperteza, numa espécie de antecipação aos outros daquilo que eles irão descobrir se pensarem um pouco mais. Em quantas situações se deixa que a inteligência seja ofuscada pelo oportunismo e até a inconveniência. À semelhança do protagonista do romance camiliano, vemos uns tantos pretenderem suplantar os outros na habilidade em se acercarem das riquezas alheias...mesmo que à socapa!  

* Estômago – este simbolismo de sucesso – desejado, concretizado ou pretendido – conquista muitos votos e os ardilosos em os conseguirem exercer com habilidade. Talvez tenha sido pela satisfação das pretensões do estômago – ter que comer, que beber e uns cobres para passear – que foram ganhas as últimas eleições. Aconchegados os estômagos, cabeça e coração como que se desligam das reivindicações... mesmo as mais ideológicas e significativas. Com mais dinheiro agora, pode-se afrouxar a exigência, pois já se tem o necessário e suficiente para viver desafogado... Talvez se esteja a pensar com horizontes muito redutivos e quem governa sabe como isso conquista votos e faz ganhar eleições... Amanhã poderemos voltar à exigência, mas, desde que nos convençam que a austeridade já ‘acabou’ há que gozar sem atender ao futuro...mais incerto, rigoroso e sombrio.

 

As eleições autárquicas de 2017 foram ganhas pelo estômago. A cabeça precisa de voltar a pensar... o futuro. O coração tem pressa em sentir...as razões do passado. O presente é muito curto e breve!       

 

António Sílvio Couto



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