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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Memória dos mortos: culto ou desprezo?


Por decisão do atual governo, foi revertida a suspensão do feriado do 1 de novembro – à semelhança de outros três (1) – criando novamente a regalia de, por ocasião de uma vivência católica, todos usufruem de um dia sem trabalho, mesmo que não o usem para a finalidade com que foi criado…

Embora não seja diretamente voltado para a veneração dos mortos – isso acontece na liturgia católica no dia seguinte (dia 2) em que se recordam os fiéis defuntos – o feriado do primeiro dia de novembro é usado em muitas circunstâncias – sociais e religiosas, mas também afetivas e económicas – para cuidar dos espaços de relação com os mortos/defuntos.

Embora tenha sido reposto o feriado, este pode continuar a ser mais um dia de não-trabalho do que um dia feriado para ser santificado com a veneração de Todos os Santos. Atendendo às circunstâncias humanas e históricas, este feriado é vivido nalgumas localidades à borda do rio Tejo e não só como momento celebrativo comunitário para agradecer a Deus, a Nossa Senhora e aos Santos a proteção recebida por ocasião do terramoto de 1755… 

= Se atendermos a esta data poderemos interrogar-nos sobre a razão para que tenhamos vindo a assistir à conexão entre este feriado e a promoção do Halloween. Também aqui teremos de recorrer à história dos povos e do cristianismo em particular para encontramos razões e enquadramento desta ligação.

Há, no entanto, questões que se podem colocar: estaremos a viver um processo de neopaganismo, relegando para plano secundário o que antes era motivo de fé cristã mais ou menos sociológica? Ao entrarmos na promoção e na vivência – como acontece em tantas jardins-de-infância e escolas, coletividades, etc. – do Halloween não estaremos a entrar numa lógica do mal, prestando-lhe culto e fazendo-o presente na sociedade? Não estaremos a viver mais uma paganização em contraste com a desacreditação do cristianismo e do catolicismo em particular? Como se pode conciliar o ‘pão por Deus’ com as travessuras do Halloween? Não será que estas coisas do Halloween são menos infantis do que nos querem fazer entender? 

= Surgida no contexto da religião celta, a vivência – para alguns já quase se torna uma celebração – do Halloween pretendia prestar culto ao deus dos mortos, fazendo rituais de fogo e de memória para com os que já morreram, invocando-os e até deixando-se guiar por eles.

Nesta como noutras festas de índole religiosa não-cristã, a Igreja católica tentou, já nos séculos VII e VIII, ‘batizar’ primeiro o panteão romano, tornando-o um templo cristão e depois dedicando a capela de Todos os santos, na Basílica de São Pedro, em Roma, no dia 1 de novembro… Mais tarde, século IX, esta festa de Todos os Santos foi estendida a toda a Igreja. 

= Atendendo à conexão entre a veneração de Todos os Santos, com os resquícios do culto dos mortos na cultura celta, entretanto cristianizada, vemos que a comemoração dos Fiéis Defuntos se tornou fácil de conjugar: num dia celebrámos os Santos e no outro os que já morreram ‘marcados com o sinal da fé e dormem agora o sono da paz’, como se reza no cânone romano da missa.

Se tivermos em conta a evolução da privatização da morte e de quanto a ela está ligado, tornou-se um tanto razoável ver que, em muitos lugares e contextos sociais do nosso país, vamos assistindo a um certo desprezo pelos que morreram… mesmo quando os falecidos eram ainda praticantes da fé cristã. Por contraste com certos meios onde a civilização do cemitério ganha foro de afirmação social – veja-se a cultura das sepulturas bem arranjadas e cuidadas… com mausoléus e jazigos – vemos crescer algum afastamento da atenção aos defuntos/mortos… nem sendo lembrados nas datas de falecimento ou com o recurso ao sufrágio religioso/católico.

Talvez precisemos de refletir cobre o sentido da nossa vida e o feriado (dia santo) de 1 de novembro pode e deve ser aproveitado para sermos gratos para com quem partiu e de termos um tempo de reflexão sobre nós mesmos e quanto ao sentido da nossa vida… tão rápida, apressada e talvez um tanto fútil! 

 

(1). Se repararmos no que se refere ao dito feriado de 1 de novembro – Todos os santos – só incluiu, desde 2013, um dia em tempo de trabalho efetivo…

 

António Sílvio Couto



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