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domingo, 29 de setembro de 2024

Não me diz nada, não sou contra

 


Conta-se, numa terra onde a dedicação aos toiros era de grande relevo, que um visitante perguntou a um residente: aqui, quando há touradas? Ao que o inquirido ripostou: aqui há corridas de toiros, touradas só se for na sua casa! De facto, pelas palavras se pode compreender o conteúdo da comunicação. Com efeito, quem seja ‘aficionado’ (termo usado para referir quem gosta de toiros e de algo de ‘desporto’ a ele ligado) não usa um termo que tem tanto de inoportuno quanto de desadequado, pois a semântica de ‘tourada’ até pode ser depreciativa e mesmo algo confuso nos resultados.

1. Desde já apresento uma declaração de interesses: estive, nos últimos catorze anos, numa localidade onde o ‘culto do toiro’ – uso esta terminologia até com alguma relutância à evolução cultural subjacente – se nota em larga escala. Nos anos em que ali estive (Moita) só fui, no primeiro ano, a uma corrida de toiros em praça, embora visse (ou pudesse ver) da varanda da casa onde morava, as largadas de toiros e que, em cada ano, eram abundantes… Embora o ambiente fosse aquele tal nada me dizia por isso não fazer parte do meu underground cultural, dado ser oriundo de outra parte de Portugal e com outros (diferentes que não melhores nem piores) conceitos culturais. Feita esta observação tentarei ser objetivo para justificar por que digo que nada (ou muito pouco) me sinto agregado àquele espírito e ainda porque não sou totalmente contra certas manifestações taurinas.



2. Sigo nesta apresentação da questão, dados do Instituto Nacional de Estatística apresentados recentemente: os dados referentes à temporada tauromáquica de 2023 contabilizam cerca de 240 mil participantes em espetáculos de tauromaquia em Portugal continental e cerca de dezanove mil na Região Autónoma dos Açores. Segundo a Inspeção Geral das Atividades Culturais, no ano passado, foram licenciados 166 espetáculos tauromáquicos, enquanto, em 2022, se realizaram 174 espetáculos tauromáquicos, com um total de 289 mil espectadores.

De entre os três países europeus (Portugal, Espanha e França) onde ainda são permitidas as atividades tauromáquicas, os portugueses são – a fazer fé em dados difundidos – os que mais concordam com a abolição dessas atividades (a par dos franceses), os que mais discordam com o gasto de fundos públicos (71% contra 67% dos franceses e 64% dos espanhóis) e os que mais defendem que a União Europeia deve proteger o (dito) bem estar animal nas tradições culturais (74% contra 72% dos franceses e 69% dos espanhóis).



3. Deixo-nos de hipocrisias mal disfarçadas: as associações a favor ou contra as atividades ligadas aos toiros – refira-se que este termo se coaduna com os animais não-domesticados e pretensamente bravos – como que escondem outros intuitos e interesses, por vezes mal encobertos, tanto na teoria como na conduta prática. Usando a linguagem do mundo taurino, dos dois lados da barricada se escondem ideologias nem sempre consequentes como as tiradas citadas. Com efeito, custa muito considerar que algumas das posições contra a tourada (termo desadequado na terminologia) possam ser discutidas à volta da degustação de caracóis ou de lagostas, esses sim, cozinhados vivos! Há coisas da incongruência que chocam com as palavras, muitas delas ao sabor das modas e sob a manipulação de habilidosos sem rosto…



4. Fique claro: se um dia aparecer a patética ideia de levar a referendo popular este tema das (ditas) touradas serei a favor da manutenção desta atividade, que de si já não é generalizada, deixando ao critério atual e futuro do pronunciamento cultural de cada região. Pena seja que alguns dos que lutam contra esta ação regional se mantenham silenciosos quanto a outras ‘atividades culturais’ de duvidosa expressão de interesse para todos. Há tantos sinais de alienação coletiva que, quase se tornaria fastidioso, não incluir o futebol na rede de interesses ou de sentir que alguns precisam de tais manifestações contra-qualquer-coisa para sobreviverem na nesciência das suas motivações. Há maior exploração da pessoa humana do que ver escravos com a boa nos pés a serem vendidos, exaltados ou vilipendiados segundo a cor da camisola ou o resultado obtido? Os toiros são explorados e os jogadores de futebol não são ainda mais?



António Sílvio Couto

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